08 dezembro 2008

EXÍLIOS

Corre em mim seiva de um tempo que nunca encontrei
imagens de lugares cujo som
é a voz de instrumentos mortos
para sempre em exílio, para sempre em busca
do sol de um milhão de cores
do fogo inextinguível
da deusa cujo templo é rio

sempre caminho, adiante, adiante, adiante
meus pés são fibra vegetal, meus olhos
horizonte de Setembro
percorri a palma de minha mão procurando sinais
do cosmos, do que eu fui, do vir a ser
somente lágrimas deixaram pegadas
somente as luzes
de estrelas viajantes
que surgiam quando a noite alta
queria tomar o coração
nas rugas há pegadas
dessa noite de exílio
choque do espaço, choque do tempo
meu coração abre as portas em Abril
sorri em Agosto, nasce em Setembro
alma cigana, as raízes de mim estão
na poeira de uma cidade abandonada
sou círculo que se prolonga com a água
sangue dos famintos de beleza
cada vez que vejo o mar guardo as asas
penso
que o sal curará todas as feridas
minha face de espelho partido
minhas letras de mármore
minha canção de exílio.

07.12.08

ELA

Para Manasha

A Face dela transita no azul
nas piscinas que dançam entre corais
chamamos seu nome
que os ventos repetem sem cessar
está aqui nas dobras do metal
corrente contínua de caos e poesia
está aqui na pele da uva
na noite que os pássaros prolongam pela aurora
tento retardar seus passos
mas a estrada é longa
sinuosa como suas ancas de primavera
tento guardar com minhas mãos em concha
seu sangue oceânico
ela sorri como esfinge, tece notas
para o coaxar dos sapos
finge que minha voz
não cruzou o umbral
grafito as paredes do cosmos perguntando pela sua ausência
desenho mapas, roteiros de viagens
imaginando os lugares que ela pisou
meia-noite em Moscou
amanhecer em Antuérpia
tardes de verão em Tegucigalpa
é inútil
as mãos dela sobrevoam o lago Vitória
passo de compasso, num círculo tento
ultrapassar o infinito de seus sonhos
na gota d'água decifro
a aurora que ela projetou
Oh lembranças de amor infinito
é preciso nomear as ruas
com seus milhares de sorrisos
é preciso condensar no tempo
a variação infinita
de seus passos na maré
poemas são improvisos de cais
teu rosto vem em hexagramas
minha voz em trigramas incompletos
não há véus
somente
eterna transformação
língua de aço, recito os milhares de nome
que surgem do umbral de ti
é inútil
transbordo sempre o horizonte
procurando tua voz.

01 dezembro 2008

Novos Poemas

CAVERNA

Não sou humano
não gosto de lojas, templos, ruas sujas
vomito tripês e avenidas quando a noite cai
uivo sempre em silêncio
porque meus irmãos estão longe
escondidos na grama de Aldebaran
engolindo poesia no Potala

Sou nuvem de argônio 14
luminosa guiando os peregrinos perseguindo
feromônios místicos da deusa
não devia dizer, mas odeio viadutos e comida burra
minhas mãos seguram o mel que recolho das estrelas
não sei erguer montanhas de centavos
sempre confundo os meses do ano
principalmente quando outubro transborda em Vênus
e de longe uma voz de muito longe
lembra tua frase incompleta
mel-disfarce na boca do poeta
isso sou eu, essa teia entre sedas
não sou humano
nada mais e somente
uma caverna onde sussurra tua voz.


MIGRANTE

Se chove, derreto-me argila
barro cru do Horto
pedra seca de caatinga
trago sertão nos olhos
retina de constelações

e para cada pássaro, cruzo também o azul
para sempre.



O QUE É O AMOR

Quando a poesia entra
todos reúnem-se à mesma porta
todos falando ao mesmo tempo
recordações de uma foto do Alasca
a frase de amor interrompida
velhos mitos em máscaras de couro
três versos que falam da Deusa
o poeta abre sua casa
para os deuses
bebendo espíritos, conversando sobre o mundo
deuses das bolhas de sabão, deuses das esferas de arminhos
deuses da células, deusas das constelações
deusas do amor, deusas do trigo
- esse verso vem primeiro,
é preciso falar do amor como nuvem de orvalho -
diz a deusa do orvalho
- não, o amor é trovão que começa na manhã
e não termina nunca de sonhar -
enquanto o deus do trovão resmunga
a deusa do mel sibila
- amor é mel recolhido
nas estações incertas da poesia

ele anota cada letra 
que vem onda, nuvem ou gota
muda a métrica, altera a rima
mas o que ele queria
pendurar o sol no quarto dela
perfumar de orvalho as cortinas
segura-lhe as mãos e dizer
já não sei mais cruzar o tempo
sem que tua voz de trigo
esteja sempre com a minha voz.

10 novembro 2008

Alguns Novos Poemas

CIGANOS

Nunca entramos nas cidades que dizem
sejam bem vindos
parece que nunca estamos em algum lugar
por trás de cada metro de estrada
no asfalto, na Via Láctea
algo nos chama para mais além
nenhum rosto é mais o mesmo rosto
nenhuma fala se completa sozinha
do canto de um muezim a última sílaba
foi um lamento inuit
da explosão da estrela Aldebaran
houve ecos
num sol de quinta grandeza
há nas ruas do Cairo poeira de Cnossos
em Illion lembranças de New grange
útero-túmulo, mapa do futuro
cuja rota é o próximo horizonte
pé na estrada, séculos após tanto tempo
decifrando alfabetos, escrevendo enigmas
para si mesmo
esfinge no espelho de Édipo
vinde a nós as borboletas
ciganas de flores coloridas
aquecei-nos com o néctar de vossas línguas, mostrai-nos
o leite das muitas vias
há velocidade nas patas dos cavalos
quando passamos por desertos e ruínas
mulheres fecharam os olhos, fizeram sinais
para aqueles que ficaram para trás
pensei que nossos corpos se desfarão pelas estradas
pó desfeito em rodovias
amanhece novamente
cantamos, não nos cansamos do sol
o que seria se a escuridão
permanecesse.


SILVÂNIA

Vi beija-flores sobre tua cabeça
dor em teu sentimento de vidro
amanhã
os pássaros sairão em passeata
reclamando teu nome
nuvens de borboletas pousarão em teus cabelos

trago água nas palavras, bebe-a
o sal aumentará tua sede
mas o mar tomará conta de tua alma
arrebatará teu espírito para horizontes
onde os deuses ainda sabem brincar.


LIVRE

A escuridão sufoca-me
as paredes, mesmo de vidro
minhas mãos lançam palavras ao vento
preciso de ar

coração encolhe quando o dia é preso
enlatado em janelas, meios-sentimentos
preciso esticar braços e pernas
sou curupira-kaapor

não me diga para esperar
não me diga para guardar para amanhã
o amor que brotou inteiro
a terra me quer agora

céu de maio, vento frio
flor de lótus desabrocha o peito
trago fogo nos cabelos
não tentem me prender os pés.

03 novembro 2008

Então,

Então,
a verdade é que sigo por caminhos que o horizonte desdobra a cada manhã. Nunca sei ao certo os passos que vou dar, só sei que às vezes as ruas se iluminam de muitos sóis e o amor invade os espaços com sua clássica obscuridade.
Nem sei nem procuro mais nenhuma forma de certeza; para que ? sou somente isso, uma pergunta, uma interrogação, um poema que o tempo se encarrega de escrever, uma edição sempre por corrigir.
Não há saídas para a solidão. Estamos sós, porta aberta à espera de respostas, silêncio da meia-noite, mensagem que fala dos muitos nomes de nós.
Então,
passo rápido como uma página virada pelos ventos,
vela que segue o gosto do mar e assim espera,
um dia poder ressuscitar.

01 setembro 2008

Os Rebeldes

Apaguem nossos nomes da história

somos estrelas na contramão

somente alguém invadindo o mundo de flores

não temos o cinismo essencial dos vencedores

cada grito de dor ecoa em nossa carne

amor é flecha em nosso sangue

onda à onda, lutamos contra todas

somos exércitos de uma só mão



Apaguem nossas lápides, queimem nossas cinzas

o que dirão os monumentos se nossos átomos pousarem no concreto

o que dirão as vozes dos que renegaram o amor

quando abraçarmos o mundo de versos



somos somente transição, uma resposta

nosso amor é anônimo, dádiva

nossa luta é sangue, entranha

nossa carne são flores de fogo, eros incandescente na história



Apaguem nossos nomes da história

nossas vozes ficarão hasteadas até o fim dos tempos

apaguem nossos nomes

nada adiantará.

23 agosto 2008

Prometeu

O que dirão os oráculos
quando souberem
que meu fígado está em paz
mas arrancaram-me o coração

pena das penas, pago o preço
o risco
de abrir o peito no espaço
converter rochas
cobrir de flores
as escrófulas do mundo

o que dei em versos
era fogo nas palavras

não me queimei
mas abutres e toda classe de rapinas
atacam-me
troco por meu sangue a liberdade
e o amor.

16 agosto 2008

Grafites

Os ciganos chegaram de manhã
e crianças nuas desenhavam no céu
grafites e poemas de amor

acordamos como saltimbancos
dançamos na corda sobre o abismo
a esperança era
navalha sobre o coração
e crianças nuas desenhavam no céu
grafites e poemas de amor

palavras-flechas se espalham
não seguramos nada em nossas mãos
o amor, os gestos de rancor, a palha dos ninhos
a linha das espirais
nem
o olhar de gelo do tempo

olhamos a parede a espada
amor, pedra tão rara
e crianças nuas desenham pelo céu
grafites e lembranças do futuro.

Pássaros

Eis que a partir de agora somos pássaros
diante do presente e da eternidade

honramos nossas asas com gritos rasgando o espaço
renascemos sob a lua cheia

o céu é esfera de mercúrio
membrana que recobre outro útero

rompemos véus, ares, palavras
trazemos
primavera sob as asas

ah, tão distante
estamos
do que não nos fala

tão próximos
da poesia dos hipocampos
da dança das algas nas marés

eis que partir de agora sou pássaro
albatroz que sobrevoa o cosmos e retorna
para algum lugar do coração.

Sinais de um Planeta Distante

Veja bem
a cor dos olhos dos que amam
é aurora véspera da noite
conjunções de ventos, pétalas no céu
palavras se estilhaçam em vapores

amor é
sinais de uma fronteira ausente

e fomos por caminhos
que escolhemos na escuridão
cruzar o túnel em silêncio
derrubar muros, abrir espaços
amor é gesto de pluma contra o aço
na distância
não te comove meu silêncio
a fórceps extraio
da garganta um sol
febre horizontal
de galáxias antigas, de cartas perdidas, siderais
não lamento o sal sobre as feridas
bico de fênix
rasgo minha pele
para renascer.

13 agosto 2008

Em Busca do Absoluto

Não considero a busca pelo absoluto uma necessidade metafísica; se entendermos o absoluto como a superação das contradições - um território onde o humano se plenifica, o absoluto é na realidade uma necessidade existencial. Superar as contradições não significa acabar com as diferenças, mas conciliá-las num todo harmônico. Não se trata de buscar um além, mas de encontrar aqui, na terra, as condições de realizar esse estado de plenitude: superar as contradições sociais, as contradições psicológicas, as divisões que tornam o humano a criatura incompleta que é.

Sem mistificações ou mitomanias, buscar esse absoluto é procurar formas de epifanias com a natureza, é encarnar nossa humanidade em nosso sangue, nossas vísceras, nossa naturalidade máxima; é pisar a terra com os pés descalços e beber a água assim que sai da fonte.

Sempre achei que o amor fosse uma fonte do absoluto, mas sei que não podemos vivenciar o outro plenamente enquanto nós mesmos não atingimos essa plenitude, esse estar cheio de si, ou seja, cheio de possibilidades, latências, que realizamos com e pelo o outro. Uma sede de viver como não se vive mais, tornando a si mesmo um epicentro das vivências mais raras, tornando-se o locus mágico onde o amor, a revolta e a esperança se fundem em perpétua combustão. Uma vontade que não se dobra nem se entrega, que resiste nem que seja para ao fim, num ato de liberdade, determinar seu próprio fim: Catão em Útica...
É preciso fazer sexo com a terra, fecundar suas planícies, beber seus mares, aspirar de seu yoni* os sumos que tornam possível a existência; beber do leite que se espalha de seus seios siderais e tornam a via: branca.
Caminho de Santiago, caminho de estrelas, meu lingam é uma bandeira cravada entre estrelas, nave espacial entre os pelos púbicos da terra, entre a generosidade sem limites do útero e a doçura terrível da morte.
A transição dos átomos é cesura na matéria, mas nós somos seres plenamente transitórios, o absoluto é a fusão dos corpos num instante, o roçar do lingam nos lábios do cosmos, a soma cujo resultado é menor que os termos.
A todo instante somos mais e menos que ontem, a todo instante nos perdemos e nos achamos: o absoluto é o olho de fora que traça a rota do caminhar.
O absoluto é uma paisagem sempre por desenhar.
A lógica social pede que nós sejamos parte de algo e assim deve ser, quando entendemos a sociedade como um tecido composto por uma trama cujos fios somos todos nós; mas isso não impede que procuremos dar à vida possibilidades muito mais amplas, aumentar sua rede de significações e sentidos, de maneira que não precisemos reclamar do cotidiano, da rotina, já que tudo pode ser plenitude.

Eu sou irremediavelmente o outro.

Eu sou o olhar distante que só vê no espelho o rosto do amor.
Entre os corações pulsam sóis que transitam entre o azul e o vermelho.
Entre os corpos há música de câmara nos sexos.
Sou a melodia que nunca se completa; moto contínuo harmônico, sou a língua que lambe os olhos do mistério.
Amor.


* Yoni: nome indiano do órgão genital feminino, assim como Lingam é o nome indiano do órgão genital masculino.

30 julho 2008

A Morte e a Donzela

"A beleza ou será convulsiva ou não será beleza": essa frase de André Breton resume de maneira magistral a atitude romântico-revolucionária quanto à vida, um tipo de sensibilidade bem diferente da sensibilidade padrão dos nossos tempos, essa sensibilidade embotada, esse padrão conformista que não consegue enxergar novos horizontes - nem políticos, nem espirituais nem artísticos ou seja lá o que for.
Nós devemos querer a vida por inteiro, sem temores. Ainda que os tempos sejam obscuros e a mediocridade impere com todos os direitos que lhe são concedidos, não devemos temer a solidão por nos arriscarmos por aquilo que achamos certo, ainda que o mundo inteiro diga que não. Nada de ir pelo meio, prefiro arriscar o caminho dos extremos; há aqueles que, pensando em sua salvação pessoal - seja ela religiosa, política ou social - se poupam ao máximo e chamam isso de prudência. Acho que não devemos nos poupar nem no amor nem na guerra. Pensar demais em si mesmo, agir somente em proveito próprio é sintoma de uma profunda insegurança e pequenez da alma. A borboleta que morre ao contemplar o fogo pode viver menos mas é mais feliz.
Como medir o valor da vida ? Qual o metro que nos utilizaremos para saber o valor do que fazemos com a nossa vida ? Como conseguirmos dotar a vida de sentidos, de modo que ainda que um dia estivéssemos absolutamente sós no alto de uma montanha, pudéssemos olhar ao redor e dizer: valeu à pena. Creio que temos de preencher a vida de sentidos, de humanidade, em todos os gestos, em todos os atos; creio que o realmente grandioso é transformar o cotidiano em poesia.
A impressão que tenho, subjetiva, e como tal, valorativa, é que estamos o tempo todo a fugir da morte - morte aqui entendida em todas as acepções e metáforas possíveis que a palavra morte pode encarnar; não percebemos, não notamos, mas a vida é um fato permanentemente singular: tanto o substantivo - vida -, quanto o verbo - viver -, são de difícil definição: o que é viver ? o que é estar vivo ? Crescimento, expansão, memória ? Cada existência é o entrelaçamento de diversas outras no tempo e no espaço - entrelaçamento social, reunião de memórias, expansão biológica, unidade microcósmica - nossa vida é nossa e também do planeta em que vivemos. Estar vivo é algo extraordinário: só o cotidiano mecânico desfigura a existência, por isso que temos que revolucioná-lo.
Representar a vida como uma mulher jovem é uma alegoria plausível: a essência da vida é feminina, é fértil, é criação. Talvez por isso entenda e sinta toda a força que emana do quarteto de cordas A MORTE E A DONZELA, do Schubert. A imagem que deu origem ao quarteto é a de uma jovem - donzela - a fugir da morte; e ao longo de todo o quarteto, essas imagens antitéticas e complementares se traduzem em batalhas sonoras de altíssima voltagem, a morte e a vida, se anulam, se buscam, se completam: duas faces de uma só moeda. Talvez a morte seja só um aspecto da vida e vice-versa. Só sei que a música de Schubert tem uma força que surpreende, assusta, e é de uma modernidade avassaladora.
Schubert é de uma geração que viveu pouco: Mozart morreu com 36 anos, Schubert com 31, Pergolesi com 26, mas é de uma geração que viveu intensamente. Contra o mundo maquiavélico-burguês, temos que buscar, aqui e agora, o absoluto, manifestar o absoluto, conversar com o sol como fez Mayakovsky; viajar pelo tempo-espaço, como fez Klebnikov; ver o infinito numa praia da Riviera, como Montale, ou deus num prato de estanho, como Boheme. É preciso reagir ao cálculo e à mecanicidade, beijar os olhos úmidos das estrelas e converter todo crepúsculo em azul sem fim. Não sejamos cínicos, não aceitemos nunca a indiferença, a frieza frente à vida e suas manifestações. Tudo em nossa época quer nos fazer crer que a história já chegou ao fim e que o cinismo e a indiferença são partes da nossa existência. Não, nada está terminado, tudo está ainda por fazer.
Enquanto corremos em direção a nossas esperanças, a morte nos segue passo a passo. Como se fosse um livro que escrevemos, a vida precisa desse capítulo final, é ele quem dá fecho à obra. De certa forma, a vida só existe em função da morte, essa regressão para o inorgânico, como diria Freud, esse movimento final, coda do que fomos e do que somos.
Nesse final, violinos, viola e violoncelo se erguem num estranho sim. Quando se vive plenamente, a morte é só uma donzela querendo voltar para casa.

14 julho 2008

Férias

Estou em ritmo de férias... vontade de ficar hibernando, beber muito vinho e não fazer nada. Como isso não é possível, me recolho um pouco para depois voltar à tona: estrelas brotando dos dedos, constelações nos cabelos, revolta nos pés...e um fogo iluminando o amanhecer...
aguardem.

24 junho 2008

Outros poemas de Zoétopia

Primeira Paisagem


Da chuva brotam
carneiros de sonhos
flores douradas
com vozes de cítaras
e os homens na estrada
descalços como a terra
colhem o pão que brota
de suas mãos de trigo
colhem o canto que sai
de suas vozes de milho
sonhos de crianças
no amanhecer
encontram a terra pura
cheiro de chuva, estrada
os homens repartem
suas fatias de estrelas.


Sexta Paisagem
A Cidade das Crianças
P/Fadinha, Vitória e Ariadne


Matemática é não fazer nada
ficar desenhando nuvens
bebendo água
da chuva nas pedras
ruas sempre curvas ou retas até não ter mais fim
para que os cavalos possam levantar vôo
em busca da princesa aprisionada
casas de ladrilhos doces
vozes suspensas no ar lendo poesia
o espaço redimido
enquanto mãos
tão pequenas
moldam o barro dos dias.




03 junho 2008

Quarta Paisagem - Dos poemas de Zoétopia

Rios em espirais desafiam
a geografia
fontes brotam ao mais puro acaso
quando pisas com sede nesse chão
os frutos que trazias eram a madrugada, os sorrisos, o rosto de deusa
de um tempo que ainda não chegou

essas ondas suaves
vêm de um mar desconhecido
compasso de música indiana

essa relva amarela
alguma vez brotou
de teu cabelo azul
Oh, não há mais linhas retas
toda a terra é curva
útero sedento, faminto
de poesia
todo o ar respira
o perfume das mulheres
todo água bebe
de tua saliva
elixir da longa vida, minha vida
em tua língua
nas palavras que não pronuncias
nas frases que recito nas ruas,
nas cidades
nas montanhas
bela deusa de tantos corações
te amo da primeira à última vida
não sou mais que luz que sai de teus olhos
nada mais que ar
que sai de tuas narinas
flores de jade
que tocam violinos
escutas essa voz que sai
de desertos de vidro
deusa que se derrama pelas encostas
que brilha de infinitos em teu ventre
deusa dos vivos e dos mortos
do germe e do câncer
do riso e do choro
estou em cada raio que partiu
de tuas estrelas
eu sou
a voz que plenamente se consome
em busca de ti
mãe cruel, doce amante
mar de rosas, chá de espinhos
silêncio que rodeia de sons o mundo
eu sou
o que te ama
deusa, deusa, universo.


21 maio 2008

Três Poemas

Natureza Morta

Lápis, chave, mesa
espaços vazios, elétrons dançando
horizontes sem fim
no grafite
poesia no aglomerado da mesa
sinais de manhãs sempre presentes
a boca
emudece.



Tudo longe

Se partir de uma a outra estrela
pisando em palavras
fazendo bolhas de sons
cantando mantras dos poucos nomes que tive
talvez consiga
entender os horizontes
scalinata no peito
rios de fogo se cruzam
em meu coração
tudo longe, tudo perto
amor
água que trago nas mãos.



Mar Nas Veias

Luzes descem em meu cérebro
não é pentecostes
somente glossolália da poesia
sangue jorrando versos de Rimbaud
barco bêbado meu nome
nasci num dia de silêncio
o dia de longos cabelos negros
me chamava
há mescalina em minha mente, eu sei
somente os cegos conseguem ver
a cor dos girassóis
só os surdos conseguem ouvir
o desejo das fadas
sim
meu nome é nada
queria beber água do mar
não posso
o mar está
em minhas veias.

12 maio 2008

Os gestos, os sentidos

O que vou escrever hoje é uma nota bem pessoal; aliás, muito pessoal. Acho que ela fará jus à natureza intimista de um blog, talvez só não faça jus ao caráter massivo do próprio meio (a internet), porque a própria escrita se responsabilizará por criar suas barreiras discursivas contra aqueles que querem tão somente bisbilhotar as vidas alheias.
Vê-se que a intimidade dessa nota segue por caminhos cruzados, falas paralelas, marcadas pelos símbolos e pelo silêncio; mas quero dizer, sem receio, que nossa vida está sempre por um fio e que a cada dia lutamos contra o silêncio e a morte, contra a indiferença e o medo. É isso que tenho feito dia após dia, hora após hora: não sei se me faço entender, mas é preciso tirar a vida da suspeita e do vazio em que ela está inserida, e para isso precisamos carregar de sentidos nossos gestos - as expressões de amor, os nãos, os sins, a vontade, os apertos de mão, os abraços - precisam ser carregados de eletricidade amorosa, de plenitude; eles não precisam ter significados, a não ser o significado próprio ao gesto, à sua expressão, ao seu próprio universo - um gesto de amor é somente isso, e mais nada - e precisa ser algo mais?
Revelará essa nota algum desespero? Alguma afronta à esperança? Não, a esperança não é uma deusa cega - só esperamos algo porque acreditamos na realização apesar de todos os nãos, apesar de todos os obstáculos, apesar da presença constante do vazio e da morte. A morte nos ronda o tempo todo - de diversas maneiras: a morte física, a morte dos afetos, a morte da esperança, a morte de deus, a morte das utopias, a morte do homem... -; crescemos lutando contra a morte, crescemos lutando contra aqueles que dizem que nossas esperanças morreram, que o amor nunca se realizará, que o homem é um animal "cínico"; crescemos, ironicamente, sobre os despojos dessa luta sem fim contra a morte; aliás, contra as mortes. Engraçado que crescer seja também caminhar para a morte. Mas será possível transformar a morte em algo mais que o nada?
Estar pleno, estar cheio de si, realizar-se enquanto humano nos afasta desse horizonte sombrio, mas essa auto-realização não é pacífica, ela é uma permanente luta, e como toda luta tem seus dias de paz, seus dias de festa, além dos seus dias obscuros. É essa plenitude que deve ser buscada, não num horizonte além, mas aqui-agora, não em nenhum além, mas no dia a dia, com as pessoas com as quais vivemos, com as pessoas às quais amamos: dos mais simples gestos aos mais grandiosos - isso não é um roteiro de atitudes piegas: na realidade, afirmar a nossa humanidade e plenitude no cotidiano é uma maneira de vencer a estupidez das relações mecanizadas, vencer a massacrante rotina imposta pela sociedade massificada, é resistir à permanente desumanização a que estamos submetidos. Estamos longe dos horizontes religiosos, queremos que os seres se afirmem humanamente sem precisarem de outras esferas que justifiquem o que elas são, que se afirmem corajosamente como se cada dia fosse o último.
Às vezes sonho sonhos estranhos, alguns sombrios, outros luminosos. A vida parece-me um oceano de estrelas e constelações, onde mergulhamos infindavelmente: cada gesto na água espalha luz, mesmo quando não vemos nada, estamos mergulhados em luz que não vemos, em sentidos que construímos em silêncio ou não; a simbologia onírica atribui às estrelas o valor de numens do melhor de nós, portadoras de esperanças e realizações. Não sei que valor atribuir às estrelas, não sei nem como dimensioná-las numa axiologia pessoal, numa simbólica interior - o que sei somente é que elas trazem para mim a grata sensação de universo sem fim, de uma beleza magnífica, da qual faço parte; o que sei é que certas pessoas aparecem para mim como estrelas, a brilharem num horizonte que às vezes só eu sei. A essas estrelas, anunciadoras de novos dias, guardo palavras e músicas que resgatei dos dias em que eu era somente alguém que contemplava uma terra de ninguém, dias em que estava à espera de notícias que viriam de longe e que anunciariam que toda guerra terminara, principalmente aquela que fazia contra mim mesmo. Essas estrelas trouxeram à tona o melhor de mim.
Esse texto é ele mesmo um gesto - espero que ele tenha sentidos. Porque sinto que cada dia, agora, tem um valor inestimável, e que é preciso brandir aos ventos o amor, a beleza, a sede de justiça, a esperança.
Sim, é preciso portar a bandeira da esperança, para que sua estrela brilhe acima de todos os edifícios, para que sua luz se faça plena em nós.
Esse é meu gesto de amor.

08 maio 2008

Silêncio

4:00 hs, madrugada fria, a cidade quase dorme. Eu precisava desse silêncio; por mais que viva numa cidade e num mundo que, regra geral, despreza o silêncio, ele é mais que necessário. Parece que tentamos, nas sociedades contemporâneas, preencher a todo custo nosso próprio vazio interior nos enchendo de sons e imagens, como se eles fossem operar a mágica de preencher os espaços vazios dentro de nós ou então como se eles tivessem a virtude terapêutica de diminuir nossas angústias, amenizar a solidão, trazer respostas.
Os sons estão onipresentes, seja como músicas, como vozes de comando, como barulho de máquinas; nas estações de metrô, uma voz onipresente nos diz como nos comportar, o que fazer, o que não fazer; nos supermercados, outra voz nos guia pelos labirintos das promoções imperdíveis, das delícias de ocasião, das novidades anunciadas; nos consultórios e repartições, há sempre aquela música que não cessa e que todo mundo ouve mas ninguém escuta, tão mecânicos nos tornamos em nossos sentidos: olhamos, mas não vemos; ouvimos, mas não escutamos.
Há um distanciamento entre o ato da percepção (ouvir, olhar) e atenção consciente sobre as percepções (ver, escutar), o que só revela nossa alienação em relação a nós mesmos e o mundo ao redor. Quantas vezes passamos por uma mesma praça e nunca reparamos na quaresmeira que quase nos assalta com seu colorido ? Ou seja, olhamos, mas não percebemos, não sentimos sua beleza ? Quantas vezes percebemos o canto tímido dos beija-flores pousados sobre os fios ou em alguma árvore em frente à nossa casa, no meio do amanhecer ? Quase nenhuma, com certeza, porque estamos cada vez mais alienados das nossas próprias possibilidades, embotados em nossa sensibilidade, brutalizados que somos em um cotidiano que nos rouba, ou tenta nos roubar, o direito à esperança e ao sonho.
É uma estratégia do capitalismo, via senhores do marketing(que nunca é inocente), essa manipulação constante dos nossos sentidos, porque dessa maneira nos mecanizamos cada vez mais, atrofiamos nossa sensibilidade, nossa capacidade de discernimento e aí não sabemos mais o que é real, o que são de fatos nossos desejos e necessidades e aquilo que é uma imposição mercadológica: quantas vezes não presenciei, nos supermercados, as pessoas sairem correndo desesperadas ao serem anunciadas novas promoções, sem ao mínimo pensarem, refletirem, como robôs acionados a um comando de voz: a máxima de Marx em carne viva - as pessoas tornadas "sujeitos para os objetos".
Ser possuído continuamente por sons e imagens embota nossos sentidos, atrofia nosso senso estético, nos mecaniza; sem falar que aquilo que é veiculado - imagens e músicas -, invariavelmente são "produtos" que primam pela absoluta falta de gosto, de cultivo estético, tornando padrão justamente aquilo que numa crítica do gosto nem entraria numa escala de valores. Além do que essa é uma maneira de transformar todo o tempo privado, subjetivo, num tempo igual ao da produção. Como bem já haviam observado Adorno e Horkheimer, "o tempo de lazer é igual ao tempo de trabalho".
A natureza conhece os tempos de atividade e os tempos de repouso: o capitalismo é essa ruptura absoluta com a própria natureza, de maneira que a sujeita não só externamente, mas também internamente: é preciso não só controlar o curso dos rios, derrubar florestas ou transformar genes, é preciso controlar, subjugar a natureza dentro do homem - controlar sua fisiologia, seus ritmos, controlar sua psique, pois só assim o homem se torna disponível para o capital, quando ele, o homem, se mecaniza. Por isso a onipresença dos sons, das imagens, dos movimentos: maneiras de mecanizar, controlar e destruir nossa verdadeira natureza, para assim ficarmos livres para o capital.
De minha parte, amo o silêncio, objeto de luxo que a madrugada me permite desfrutar de modo quase absoluto. É uma maneira de estar a sós consigo mesmo, de ouvir nossas vozes interiores, de distinguir o que somos e o que não somos. Por trás de minha aparência errante se esconde um bicho: como qualquer animal, me escondo quando estou doente, me estresso quando enjaulado, quero hibernar quando chega o frio. E se for preciso, uivo.
Mas sei também me levantar de madrugada só pelo prazer de esperar a aurora, de sentir de leve os pequenos movimentos dos pássaros quando a luz do sol só se anuncia, de ver o céu mudar seus tons, se inundar de púrpura, rosas e azuis inexplicáveis, enquanto as estrelas desaparecem lentamente.
Me aproprio assim do tempo, e nesse tempo, posso ouvir os pássaros quebrarem a simetria do nada, posso quebrar outras simetrias, somando a percepção dessa hora mágica à memória, com a lembranças das pessoas que amo e das singularidades que vivi, algumas secretas, quase místicas; outras, cotidianas, quase banais, como é ver sempre o amanhecer. Mas cada amanhecer é único.
Aí a cidade pode acordar, gritar, espernear: os sons que queria ouvir, já ouvi; o tempo que eu queria, já roubei. Isso também é revolução.


03 maio 2008

Dois Poemas

Há Muito Tempo

Há muito tempo, nem havia fadas
o real era caminho sem palavras
não tinha voz
por isso o sentimento
falava inteiro

na boca dos sapos, nas pernas dos grilos
no canto das aves, no uivo do vento
era amor
pura vogal

nem havia eu nem tu
éramos confusos
no começo do mundo
minha mão era teu coração
meu coração tua voz

os rios subiam as montanhas
bebíamos da mesma fonte
em que a poesia borbulhava
em silêncio

há muito tempo
tento o caminho da montanha
tropeço, caio, silencio
para falar moram na língua espinhos
nos pés botas de navalhas

e um sol tão forte
nasce mesmo além da morte
há muito tempo
procuro esse sol.



Flor das Estações

Vi a estrela Sirius no sertão
escrituras egípcias no Seridó
ó mana deixa eu ir
para algum lugar que seja novo
um lugar onde floresça
no barro a flor das estações
ó mana deixa eu ver
em teu cabelo a flor de maio
em tuas mãos o livro
inscrito no sangue da terra
mil maravilhas vi
entre o mato rasteiro e o horizonte
espirais na pedra
trigramas curvos
dando nome ao sertão
quando vem de longe o amor invade maio
ó mana deixa eu ir
para um lugar onde
o país do coração
seja lei.

24 abril 2008

Kafka, o estranhamento e Eu

Uma passagem do Diário de Kafka de 1910 registra: "Enquanto não for libertado do meu escritório, estarei perdido pura e simplesmente, é o que me parece claramente acima de todas as coisas, trata-se somente de manter a cabeça alta durante tanto tempo quanto for possível para não soçobrar."(18/12/1910) . Nas Meditações,ele diz: ' Vistos com os olhos terrenamente obscurecidos, estamos na situação dos viajantes de um comboio que sofreu um acidente no meio de um longo túnel e isso num lugar de onde já não se vê a luz da entrada enquanto a luz da saída é ainda tão fraca que o olhar a procura sem cessar e sem cessar a perde de vista, enquanto nem entrada nem saída são mesmo certas."
Essas duas passagens kafkianas não são ficcionais: são trechos de um diário e de um livro de meditações sobre a vida, livro por si bastante diferente dos manuais de auto-ajuda de hoje, mas que, ambos, ajudam a revelar o absoluto estranhamento de Kafka quanto à existência: em face do cotidiano mesmo, quando fala na sua vontade de libertar-se do 'escritório' (Kafka trabalhava numa companhia de seguros), como também em face da vida em seus aspectos filosóficos mesmos, como quando a compara a uma passagem por um túnel onde tudo é escuridão.
Esse estranhamento kafkiano frente à vida, que aparecerá de modo genial em sua obra ficcional (basta lembrar da Metamorfose, O Processo e o Castelo), é uma tentativa, a meu ver, de se procurar as raízes ontológicas da existência, naquele ponto mesmo onde o discurso se espelha na vida e a vida reflete o discurso; explico-me: acho que a questão primordial da filosofia do questionamento do homem sobre sua própria vida, é, como diria Heidegger, a questão do quid, do que, ou seja, da fundamentação do ente, o porque de uma coisa ser o que ela é: o que torna o homem um homem ? O que torna uma árvore uma árvore ? O que torna o ser aquilo que ele é ? Essa pergunta básica não é uma mera questão de retórica, nem de fundamentação de categorias gramaticais, é uma questão que remete à essência da vida humana mesma, que procura o tempo todo fundamentar-se, achar as razões de si mesma, seja no discurso que ela mesma cria, seja em causas extras (metafísicas) que trariam em si o quid da existência.
Kafka soube captar, como ninguém, essa falta de sentidos, esse absurdo moral e existencial em que nos colocamos nas sociedades modernas, onde a existência humana não consegue mais fundamentar-se a si mesma: é o absurdo do trabalho, onde o sujeito alienado de si mesmo não encontra razões para o que faz, como o próprio Kafka se sentia, é o absurdo da própria existência, por onde navegamos numa viagem obscura (a passagem pelo túnel) sem sabermos ao certo se encontraremos qualquer forma de luz que clareie o caminho por onde andamos, ou qualquer sinal que nos diga que há sentidos no que fazemos.
Nunca estranhei Kafka porque o estranhamento é uma condição que para mim sempre foi normal: entendi Gregor Samsa transformado num gigantesco inseto, incomunicável, trancado num quarto, isolado da família - quem nunca se sentiu assim um dia que atire a primeira pedra; mas não só isso, sempre senti, independente de Kafka, uma compaixão pela baratas, pelo grotesco que há em sua atitude mecânica de, encontrando-se na presença de um humano, lançar-se diretamente em sua direção e não em rota de fuga, o que as leva diretamente à morte, o que fez com eu sempre pensasse nas baratas como criaturas suicidas. Quando o sr. K foi processado sem que soubesse o porque no Processo, também não estranhei, porque faz parte do nosso mundo contemporaneamente idiota a incomunicabilidade das esferas pública e privada, o distanciamento ,dos centros do poder, do homem cotidiano, o esmagamento contínuo a que somos submetidos diariamente por forças às quais não controlamos, não conhecemos e para as quais não sabemos, na maior parte das vezes, como enfrentar.
Enfim, não só por conta do mundo, mas talvez e principalmente por aspectos que me são particulares, sempre me senti como alguém em terra estrangeira, por onde quer que eu vá. Alguém a quem gosto muito chegou a levantar a hipótese de que eu seja um alienígena, coisa que não descartei por inteiro, porque na realidade não sei ao certo quem sou, nem se o que sou é uma construção e uma conquista minha ou um mero resultado de equações às quais não tenho o menor controle porque sou péssimo em matemática.
A própria noção de eu me causa estranhamento: sinto-me como uma esponja ou como uma árvore que produz diariamente folhas novas, novas não só no sentido de que são uma produção nova de elementos idênticos, mas novas no sentido absoluto do termo: folhas que não se repetem, porque são a cada dia um novo produto, novas folhas nunca vistas. Não sou uma metamorfose ambulante, como diria a música, mas o núcleo do que sou com certeza não é o eu.
Sei que estou a anos-luz de Kafka, não tenho a menor pretensão de me comparar a ele no plano literário, mas somente quanto à universal dor de ser humano num mundo que se desumaniza cada vez mais. Sinto-me irmanado com sua dor, e ao ler seus diários, tenho a sensação de que estou a ler algo que a minha pessoa poderia ter escrito, em momentos semelhantes de angústia.
A verdade é que não achamos, ainda, nosso quid, não conseguimos conciliar o conhecimento com a práxis, a essência com a existência, quiçá porque não devamos procurar o quid, mas senti-lo, através da vivência poética, do desregramento dos sentidos, como diria Breton, da encarnação do absoluto através do amor.
Sei que são questões que parecem por demais abstratas, mas não o são. A vida tem uma dimensão trágica justamente porque o homem é uma arena dividida entre o conhecimento e a vivência (vide Édipo), entre o ser e a existência: somos incompletos, frágeis e mesmo o mundo que criamos não está mais sobre nosso controle, parece que virou uma esfera autônoma onde a burocracia e a tecnologia andam de mãos dadas contra o homem.
Por isso às vezes me pego olhando às estrelas: Sirius , a constelação de Órion, a estrela Vesper: talvez elas me dêem alguma resposta, talvez me tragam alguma luz. Tenho a impressão que nasci no cosmos errado. Preciso pensar melhor no que disse essa amiga que amo tanto: assumir minha condição alienígena é assumir meu estranhamento, assumir o que sou. Aí, quem sabe, encontre meu quid.

18 abril 2008

Sobre a Memória e o Esquecimento

A memória é uma forma de sanção ao esquecimento, lembramos do que é necessário ao ser, o resto, esquecemos. Memória é uma forma de vontade de poder, diria Nietzsche. Lembrar é também esquecer; mas nossas fragilidades se revelam também no ato da lembrança, haja vista os traumas, as feridas da alma. É preciso aprender a arte do esquecimento.
Esquecer como um exercício consciente (acho que Spinoza discordaria do que falo; vide A ÉTICA, capítulo sobre OS AFETOS ou PAIXÕES DA ALMA) não é um mero ato de extrema racionalidade, não é simplesmente um exercício de afecção intelectual, mas sim uma combinação de vontade e necessidade: esquecer é um ato de liberdade.
A memória nem sempre é positiva: a memória histórica dos vencidos, por exemplo, é um grande trauma, como assim o disseram Benjamin e Wachtel; esquecer, para esses povos, é uma maneira de manter viva a identidade.
A vida como manifestação biológica é um processo contínuo e dialético entre a recordação e o esquecimento: à medida em que crescemos, nosso organismo lembra do que é necessário, o próprio DNA é uma forma de memória condensada, mas só crescemos porque de alguma maneira nosso organismo também esquece o que foi, por isso envelhecemos, crescemos e caminhamos para a morte. Morrer é esquecer.
Exercitar o esquecimento é também uma maneira de morrer: quando esquecemos aquilo que não nos acrescenta mais nada, aquilo que só nos incomoda, sepultamos também nossas ilusões, matéria que de alguma maneira também nos alimentava, e aí morremos um pouco - parte de nós se esvai - outra parte surge; economia simbólica: a energia antes gasta na ilusão alimenta agora a auto-afirmação.
Morrer e nascer são exercícios de liberdade e vontade, assim como lembrar e esquecer; lembrar e esquecer são dois lados dialéticos de uma moeda que não tem verso, mas manifestações do ser na temporalidade: às vezes nascer,às vezes esquecer.
O exercício do esquecimento é um exercício de dura disciplina: não esquecemos sem que haja alguma vontade consciente para tanto - é preciso ter o necessário desencanto ou a força que se pede para esquecer.
Algumas coisas são, por natureza, inesquecíveis; certas pessoas também. É mais fácil esquecer as coisas que as pessoas, porque com as pessoas se envolve a difícil economia dos afetos. Mas é possível, e às vezes necessário, esquecê-las. Morremos de um lado, nascemos de outro. Ces't la vie.
A memória guarda, com todo zelo que lhe é característico, alguns momentos singulares. A singularidade não é um signo imanente às coisas, a singularidade é uma imanência do olhar: às vezes a luz do sol por entre as folhas, a imagem de uma clareira se guarda na memória como o registro de um vislumbre da eternidade.
Não posso narrar o que esqueci, mas posso lembrar e falar de singularidades, coisas e eventos que foram particularmente importantes, e que talvez tenham um valor universal: não sei se todas as pessoas são tributárias de alguns dias de sol inexplicável, ou das manifestações livres das crianças, com todo nonsense que nos leva a um outro mundo; certos momentos, eventos e singularidades parecem revelar a intersecção entre nosso mundo interior e o "mundo", entre a transcendência e o imediato: o sorriso de minhas filhas a um gesto de molecagem anárquica, a leitura de um trecho de Breton na madrugada, ter dormido ao relento olhando nebulosas, ter presenciado o mistério ou ter bebido vinho com pessoas que amo são fatos marcantes per si. Acho que são universais.
Só não sei quantos se perderam nas manhãs deitados no chão a contemplarem o céu e as formas das nuvens: várias vezes tive de fazer o esforço de voltar a mim mesmo, à segurança do eu, pois o azul quase abstrato do céu nordestino me levava para outro lugar que não eu mesmo.
O resto é esquecimento. Todo dia que lembro, esqueço. Mas sempre que precisar esquecerei, num radical exercício de vontade e liberdade. Não sei ser de outra maneira. As metades do que sou são raízes, só posso ser por inteiro.
É a vida.