18 maio 2011

O TRATADO DA PEDRA

XII

O jaguar saiu do mar imaculado; trazia em suas patas de jaspe a estrela roubada, dentro da estrela o abraxas; num segundo o jaguar rasgou a estrela e atacou o abraxas, abrindo-lhe o peito, espalhando as plumas - do sangue do abraxas se formou a América, de seus olhos os cometas, de suas serpentes a África, de suas penas as asas dos poetas, de sua língua a confusão entre os éons e o tempo.
Então o jaguar se escondeu nas florestas da América; começara, fora sua a tarefa mais dura, libertar o abraxas. Guardou o ar que o galo expulsara nos estertores e as canções bífidas das serpentes, para quando o mundo se cansasse de si e precisasse de novas canções e um ar de fecundar primaveras.
Por último, espalhou os ossos do abraxas em partes infinitas e depositou em cada pedra, sólida ou líquida, deixando ali o sinal da ave e da serpente - anseios que se cruzam formando o 
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XIII
Não quero fazer um exórdio. As pessoas não querem saber o que lhes falta, como também não querem caminhos - querem apenas continuar onde estão: mãos amarradas, olhos fechados, boca cheia de parafusos.
Queremos louvar a pedra e dizer não. É direito daqueles em exílio esperar pelo retorno, ansiar pela restauração da antiga condição. O exilado diz não às marchas, às alegrias forçadas, às bandeiras desfraldadas quando a única coisa que o vento espalha são os nomes dos mortos. Estamos exilados num tempo em que as máquinas têm coração. Ouvimos seu pulsar infernal, sístole e diástole de óleo e metal, rangido de ondas cardíacas. Não somos desse tempo, somos do não tempo.
Até onde a vista alcança, o deserto domina: nos poemas, nas frases de amor, nos palanques e nos púlpitos, nas repartições, nas músicas. Até que o olhar se cansa, procura adiante ou atrás outros vestígios, mas o deserto começou há muito tempo; o que passa é deserto, o que dura é deserto.
Há areia nos calçados, nos alimentos, nas amizades, nas moedas. Os cursos de água secaram e até as metáforas pedem licenças à equação das dunas.
Os que estamos em exílio temos nossa esperança, de que a água brote da pedra e que da água os oásis vomitem novas palavras e que da pedra nunca cesse a promessa: de terminar o tempo.

XIV
O que nos é próprio não é nosso, pois é comum a todos. Posso reclamar como meu um átomo ? Posso dizer minha a água que alimenta meus rios, os minerais de minha ebulição ? E o que seria de nós sem tudo o que nos forma ? Nada é nosso, nem mesmo a mensagem secreta do que somos. Somos Édipos sem pecado nos olhando a cada dia num novo espelho e cada um nos dá uma outra resposta. Posso reclamar dos muitos que me habitam ? Não, porque sou universo.
A mesma matéria material alimenta de uma caldeira ao motor de um quarteto de cordas. Ânima, que o tempo não obstrui porque é impotente contra o fogo; bíos que a palavra não esgarça porque se multiplica; zoé que não se corrompe porque tem em suas mãos o silêncio e a paciência para se expandir.
Diferente como as notas de um violino e os lamentos de um vampiro nossa pedra assoma suas máscaras.
O que nos é próprio é comunhão.

XV
Nossa arte é a de elevar a pedra à plena consciência de si mesma, roubando-a assim das garras da mecanicidade, resgatando-a de entre os mortos, aqueles de pele verde, olhar sem flama; por isso é uma arte mercurial, de Mercúrio, o Hermes romano, o deus ladrão, o psicopompos que resgata os mortos do Hades.
Mercurial também porque a pedra é mercúrio, pedra líquida leitosa que sempre procura escapar. Nossos maiores representavam a pedra como sendo o Hermes alado a quem um Saturno envelhecido vinha lhe cortar os pés, onde as asas dele habitam. E quem é esse Saturno, senão o ordenamento que fazemos da pedra ? Quem é esse Saturno senão o condutor, o princípio antigo que dirige nossa vontade para com todo ardor buscar a liberdade ?
As asas das quais Hermes é desprovido nascerão em nós. Quando pela ascensão da pedra nossa natureza alada se revela, assumimos nossa predisposição pela liberdade e pelo espaço. Rompemos os limites impostos pela gravidade mostrando que a densidade é uma atração da aparência, mas a aparência pode ser superada.
sobretudo, acima de todas as coisas, é preciso não perder nenhum centímetro da pedra, que pelo acolhimento cresce e nos liberta. As chaves estão na própria natureza, que por ser vasta, esconde-as. dizem que há na Romênia pedra misteriosa (trovants) que cresce e se multiplica ao contato com a água. Ora, a natureza também sabe representar e essa pedra é o símbolo de que a água faz crescer os fundamentos do mundo e de nós mesmos, de que é possível acumular a força da matéria pelo poder fermentativo da água; e o que é a água senão um sêmen universal e o que é o sêmen senão nossa água ?

Pedras romenas chamadas de Trovants
Esse prodígio romeno nos mostra que a natureza tem sua linguagem e de que é possível ao homem restituir a si mesmo a liberdade perdida quando da queda na razão. Na medida em que o tempo passa nos tornamos mais torpes, quanto mais estimulados nossos sentidos se embrutecem: já não somos capazes de enxergar nem o mais evidente, quiçá um dia precisemos de máquinas para nos dizer o que está à nossa frente, quando na verdade temos em nós as possibilidades do super-homem nietzscheano. As forças das trevas querem nos confinar sempre no mesmo horizonte, nos mesmos metros quadrados onde transitamos entre o trabalho e a sensorialidade, entre a mecânica e o sem sentido.


XVI

Não basta saber da importância da pedra, é preciso desejá-la, é preciso querê-la, é preciso aspirá-la, é preciso amá-la, com amor  simples, com o coração sincero, subir ao leito não somente com a intenção de grandes coisas mas com a vontade simples de amar sem subtrair o outro, amar para ter o outro ao lado e dentro de si, amar como quem anda à beira de um precípicio, como quem pisa no fio de uma navalha, mas também como quem brinca, como se nada fosse sério, ou tudo fosse tão sério que o resultado de qualquer brincadeira levasse à morte. Alegres, mas humildes, conseguiremos reavivar o fogo, iluminar a "lápis" até que o rubro a destile. Com movimentos lentos e sem hipocrisia, é possível segurar as asas de mercúrio. É como voar num dragão. A mulher é a serpente portadora da flama, é preciso amá-la sem falsidades, só assim a pedra poderá ser cultivada, só assim evitamos perdê-la; a arrogância leva ao desespero; a humildade, a alegria e o coração sincero fazem a pedra crescer no fogo do homem e no coração da mulher, e quando o homem a penetra, quando o pênis desliza pela vagina, o amor será o portador da luz, então é preciso deixar-se conduzir pelo amor.
Nesses dias vazios o sexo virou uma espécie de arena romana; é preciso esquecer da arena e lembrar da infância para refinar o sêmen com grande indústria.
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27 abril 2011

O Tratado da Pedra

VII

Os homens dessa época só reconhecem aquilo que se submete a seus caprichos, à ânsia devoradora de tudo submeter ao controle de uma ganância sem tamanho: querem uma natureza dócil, submissa à violência, complacente com a falta de sentidos e propósitos que tomou conta do humano; cometem o absurdo de imaginar uma natureza totalmente subjugada pela violência de explosivos e metais como sendo um ideal a ser alcançado - a natureza desfeita pela fúria da mecânica.
Não sabem que os dias de fúria que virão são o fruto da falta de amor. A ignorância eloquente dos senhores desconhece a simplicidade do amor: ele sustenta os elementos, organiza o tempo, estabelece as convenções dos astros e o desejo do futuro.
Por isso não reconhecem a Pedra ou mesmo a renegam, porque desconhecem o que não seja artifício, pirotecnia, vagido da aparência; nossa pedra é simples, às vezes somente gota de sal num oceano de miasmas. Mas o universo é perpétua espiral, enlace de espirais onde as coisas se alternam no tempo-espaço: a gota é um universo para planctons e outros, o Everest é mera pedra, há rios nos corpos, corpos nos rios, do arco-íris ao olho há puro diálogo entre pares.
Nossa pedra é simples, magna. Quando fecundada se multiplica em pedras, quando guardada se liquefaz em fogo, de fogo em ave, de ave em anjo. À noite, clama pelo sol da galáxia, de dia aspira o perfume das flores da lua; mistura o sutil ao denso, coagula o tempo para extrair dele os sinais de sua libertação; enquanto faz-se pedra engendra novas vestes para as núpcias da liberdade, tecidos de musgo, pele de serpente - na aurora brilha a pedra-sol.

VIII

Estive a ver o fastio como um sintoma dos dias presentes; as gentes se cansam de tanta letras, do deus morto e do nonsense que a vida tornou-se em sua infatigável rotina; querem sair para algum lugar, mas nada lhes apetece, porque nada faz sentido: seus olhos estão fechados para tudo que não seja dinheiro ou não se venda, pensam que podem comprar o sentido das coisas com drogas baratas, com a sordidez dos pequenos vermes. O sentido das coisas está nas próprias coisas; palavras são fulgurações do real, elas não o falsificam, são a luz que dele emana, refletida num mosaico de espelhos. As palavras dizem do sentido sua chave possível. O tempo passa e as chaves aumentam, o real cresce e com ele as possibilidades de sentido. Damos novos nomes às coisas novas, renomeamos as antigas tentando estender a mão para a verdade. O vulgo só quer imitar  o movimento das máquinas, nada vêem do muito que paira ao redor: nem os cabelos das nuvens nem as espirais nem a língua dos beija-flores.
Grande coisa é perder o medo de sonhar, deixar-se levar pelo jogo cósmico, aventurar-se pelas ruas, tomar de assalto nossa própria cidadela: forjamos nossas prisões e as religiões aumentam seus muros.
Somos parentes dos pássaros, amigos das serpentes, não precisamos de túmulos nem de igrejas, não precisamos de corpos trucidados nem do apego à dor, o que precisamos é de espaço - para abrir as asas, para correr, para testemunharmos que a curvatura do tempo-espaço é a mesma do útero, para gritarmos como as aves e baleias quando incontidas pela felicidade.
Tudo é vasto e infinito, dos dedos às galáxias há fios que reúnem o homem às estrelas. Um dia seremos chamados para um grande banquete, quando a pedra nos houver convertido em faunos-poetas, com pernas de bode e a sabedoria de quem já foi fera, sentados a mesma mesa onde os deuses apreciam o vapor das lembranças, onde as estrelas acendem suas chamas, onde a escuridão decide seu silêncio. Seremos cúmplices de grandes auroras.
pois a Pedra não nos deixa sós.

IX

As pessoas arrancavam pedras para barricadas, movidas apelo desejo incandescente de transformar a vida em aurora. Queriam a redenção de fora por um desejo de dentro - essa ânsia de que nada nos detenha, esse anseio por lugares sem muros ou fronteiras - é o pulsar da própria vida a instigar os seres.
Acontece que as pessoas são velhos morcegos - preferem a escuridão das cavernas à incerteza da liberdade - e procuram fora o que clama dentro. Às vezes o que clama é a natureza naturada e fabricamos corpos buscando a união pela continuidade; outras é a natureza naturante e aí o que queremos é a natureza dentro de nós - a potência dos rios, a grandeza dos ventos, a antiguidade das rochas, a paciência do fogo; tudo num grande carnaval. A ordem vem assim, com mulheres de pernas nuas carregando estandartes, a beleza dos ventos, a beleza dos nomes, a beleza dos seios.

X
O quid das coisas é um quid vital, mesmo o das palavras. As coisas não precisam de justificativas para existirem, o próprio existir é a razão; expansão e continuidade são a tônica da pedra. Para alguns, o mais longe é o caminho desejado, e quando ele o percorre encontra pistas e sinais de sua própria existência em lugares onde nunca passou - procurando o longínquo emula a natureza mais profunda, a profusão de aves. libélulas e baleias desconhecem o que quer que seja fronteira - e encontrando-a, vê a si mesmo. Para outros, só o próximo é reconhecível, o que vem com os ventos é estranho, temem a abundância e se guardam criando pequenos caminhos que possam repetir sem cessar.
Em ambos a razão vem de fora: a conexão que se cria entre novas formas de vida e novos seres, a razão está em descortinar horizontes ou em confinar a esperança para que não perca em tempos sombrios.
O quid das coisas é a Pedra, seja numa estrela de neutrôns ou num planeta d'água. A Pedra é escorregadia, cheia de pernas e caudas, ela é moto-perpétuo.

XI

Não acredito no progresso, não acredito nos tabeliães, não acredito no destino manifesto nem nas doutrinas de salvação; não acredito no inferno, não acredito na ausência da dor, não acredito em deuses ou idéias fixas; não acredito na métrica ou na retórica. Não acredito em qualquer silêncio maior que zero nem em qualquer sexo maior que dois; não acredito no homem sem a palavra, não acredito em ascensões mecânicas nem em músicas mecânicas nem em amores mecânicos nem em sexo  e afetos mecânicos, não acredito na humanidade das máquinas, não acredito no silêncio das máquinas. Não acredito numa terra sem chuvas, não acredito em nomes com muralhas, não acredito em trevas eternas.
Só acredito na Pedra, a pedra úmida, o orvalho encharcando o mineral, o bater das asas das libélulas cruzando a tarde da África.

12 março 2011

O Tratado da Pedra

Passo a publicar a partir de hoje um novo texto, na verdade uma obra em processo, O TRATADO DA PEDRA, uma alquimia do sonho e da revolução, uma abertura, como se o horizonte houvesse sido rasgado, na surpresa de uma noite...


I
Diria que a nossa pedra é a raiz sem gelo do âmbar. Como um sal vertical que se acumula pela purificação e ascensão da bondade.

II
Tem o mesmo sumo das flores estivais, a mesma secreção sobre a qual se pode erguer uma casa. Lenta, cresce qual o anel das árvores, a seiva mineral secreta bailando entre o canal de cobre e cristal.
Sem nome quais os rostos das crianças, bela feita a asa vermelha da fênix cruzando a manhã, essas pombas no altar de Vênus, os peitos da deusa na ansiedade do fruto em gestação.
Mil noites tivesse não acabaria de dizer seus nomes, mas é ela, a pedra, sobre ela os fundamentos do mundo, sobre ela as intenções, os desejos de porvir, sobre ela o orvalho que escorre das flores em compasso ternário, triângulo de respostas.

III
Alguma vez, nos muros de pedra pomes de uma cidade antiga, gravei palavras a essa similares, tão longe no tempo que o espaço entre as memórias assemelha-se a uma pausa numa sinfonia de milênios.
Outros rostos e a areia se ressentia de sal, de nossos passos não restavam vestígios; por quê o fiz ? Porque a escrita de fora emulava a de dentro: gravando nas pedras o segredo da pedra, fixava em meus ouvidos o martelo da verdade, que nascimento algum poderia acabar. Porque pedras-pomes são ossos do mar, dos vulcões, e neles circula o sangue da pedra, esperando o vento redentor.

IV
Chamarei as testemunhas, que bebem diariamente do fogo líquido que anima a pedra. Elas dirão que esse é o fogo selvagem que precisa ser purgado de sua bílis até ganhar o vibrato de uma trompa de caça. A da direita diz doces são os mistérios da carne e as esquerda lembra que a haste fincada no triângulo conecta a terra ao céu e que anjos se formam quando a haste avança sobre o fogo e o triângulo se inunda de orvalho: a pedra molhada, o broto do pão.

V
Preciso de palavras para a fornalha ? O testemunho da verdade acelera o rio: a água polida, os seixos-letras amplificam o eco; no moinho das coisas, a água se acelera em fogo, o dúplice testemunho reverbera o dito: nossa pedra é antiga e sempre nova - à porta de Ishtar, um casal arrulha na pedra cúbica.

VI
Cada nome é passagem, cada imagem, mosaico. O que se diz pedra é a soma de muitas subtrações. Bruta, beira o rês do chão; lavrada, escoa a voz em eco de dimensão em dimensão. Pulsar que a escritura captura. O grafite de sêmen nunca poderá ser apagado. Outros pedem nomes com registros e identidade, como se os nomes portassem sendas de ruas claras, chamam de obscura a fala que não se abala pela claridade. Bem sei que os caminhos onde as palavras escorrem rebeldes são vias onde a vida se procria, onde a pedra fecunda a pedra, onde o musgo aninha o pássaro, onde o orvalho desce da teia para os olhos das estátuas: nomes são passagens do cheio para o infinito, o caminho é selva de sargaços onde as palavras se emaranham: água ventre novelo.
Os que conhecem  a pedra saberão seu rosto de plasma, sua alma de flecha, seus olhos de falcão e não será minha boca a portadora de fórmulas: estou entre os inocentes e a morte prefiro a deduzir a raiz cúbica de Pi de um Cm³ da pedra. Seu peso é de água e ar, seu peso é de água e ar, seu peso é de ar e fagulha - lança no labirinto.