14 dezembro 2010

Dois Outros Poemas

FADA
    


Como em antigas histórias
nossos nomes se confundem


entre rios e rendas
o amor bebia sua história


em lugares insuspeitos
em paragens distantes


éramos mago e huri na Arábia Félix
éramos profeta e musa
em antigas terras gregas


tão próximos nossos cheiros
a música dos nossos corpos


quando longe
me manda sinais


de tua ausência
de teus sonhos


temas da memória
do muito que passou


da fome dos teus gestos
sinto, recebo


cada fábula que emana
de tua silenciosa presença


escuto tuas vozes
na diversidade dos ventos


na intrincada rede
da voz dos muitos bichos


do dialeto das folhas
do enigma das marés


em muitos anéis do tempo
esse espelho
onde nos damos as mãos


tu e eu em muitos hojes
tu, já que existo em ti


tu, cujo cheiro atrai a inveja das flores
tu, cujo nome amor
existe além de mim.




SERTÃO


Esse lugar tem nome de areia
no azul que devora a tarde


pátina no tempo, palavra
a esconder geografias


tesouro na memória que guarda
o rosto da curva dos ventos


assombroso mapa
de ausência e gozo


saber das pedras 
o que as predicam


saber da argila
sua quididade


ouvir da água a ternura
que se derrama nas folhas


sequestrar no hemisfério
o rastro dos cometas


na alba o cabelo das estrelas
dentro, fora, acima em mim


esse lugar mil nomes
essa certeza de sertão.





30 novembro 2010

Descida de Ishtar ao Inferno

Ela desceu solene ao mundo sombrio
nem os mortos poderiam
interrompê-la
ave que se despluma nas trevas 
em cada portão eles diziam
deixa aqui teus gestos se queres prosseguir
folha que o vento carrega era seu nome
na senda cada dia mais estreita
palavras densas sufocadas
cortavam sua pele nácar
em cada portão eles diziam
deixa aqui tua voz se queres prosseguir
era lua nova no submundo
barco de papel que a bruma leva
sorriso de corça assustada
ela descia
de abismo em abismo
em cada portão eles diziam
deixa aqui teus olhos se queres prosseguir
não havia primaveras
não havia hibiscos nem jacintos
seus pés sangravam sobre vermes
sua pele era seda
tateando estalagmites de metal
em cada portão eles diziam
deixa aqui tuas lembranças se queres prosseguir
nua, serpente que troca de pele e se devora
seus dedos irradiavam luz
abaixo, soterrado estava seu destino
em cada portão eles diziam
deixa aqui tua vontade se queres prosseguir
o vento fustigava esquecimento
de seus seios o leite derramado
brotava flores no inferno
aonde iria só seus pés sabiam
de si ela não era mais
em cada portão eles diziam 
deixa aqui teus sonhos se queres prosseguir
fatigada como nuvem de chuva
insone como os lobos
o fogo atormentava seus cabelos
mundo era sinfonia
de nãos salmodiados
em cada portão eles diziam
deixa aqui teu nome se queres prosseguir
ela desceu ao centro do nada
nua
criança que volta ao útero
desceu às fronteiras
onde o baixo encontra o alto
ao longe escutou leve pulsar
duas notas tais vozes de crianças
lhe chamando
entre as pedras no infinito
em secreto estava
o coração

24 novembro 2010

As Coisas-Pessoas, As Pessoas-Coisas

Pensando sobre a relação entre o criador e a criatura nessa sociedade tão marcada pelo vazio, é curioso pensar que paulatinamente nossa humanidade se esvai pelas frestas da história e que provavelmente a próxima revolução a ser travada será para afirmar nosso senso de humanidade frente à humanização dos objetos. Tal humanização não seria nenhum problema se não fosse feita em detrimento das pessoas; poderia significar talvez nosso desejo de nos refletirmos nos objetos, torná-los mais dúcteis à nossa sensibilidade num mundo povoado deles.
Mas não é isso o que acontece, Há séculos o humano vem perdendo sua dimensão mítica e sua dignidade; primeiro ele foi reduzido no discurso filosófico - como o fez Descartes, para depois ser reduzido à servidão maquinal nas mãos do capital. Porque o humano foi se desnaturando para se adaptar e atender às engrenagens produtivas: a regularidade, a constância, a disciplina, a renúncia às paixões ou o controle extremo das pulsões atrofiaram nossa natural irregularidade, nossa capacidade de expectativas súbitas e êxtases de beleza foram tomadas por impulsos previamente estimulados e por uma sensibilidade domesticada que não nos possibilitam mais nem perceber as cores do cotidiano, os tons do crepúsculo, o som das asas das libélulas.
Os sentimentos foram enquadrados nas necessidades dos grandes esquemas produtivos, mecanizados, requeridos somente quando necessários à lógica das corporações (nos locais de trabalho) ou à lógica do consumo. Assim, nos mecanizamos; nós que éramos a imagem e semelhança do criador nos tornamos sombras de nós mesmos; somos nosso próprio autômato.
Por outro lado, o mundo dos objetos foi se humanizando. Metaforicamente, nossa vitalidade foi sugada para o universo das máquinas: impressoras falam com doce voz de mulher, robôs são projetados com a peculiaridade de conseguirem ou tentarem aprender a expressar ficções de sentimentos; sem falar nas cópias que já foram criadas, robôs com aparência tão humana que poderiam - não fosse a ainda imperfeição dos gestos - nos enganar.
Me pergunto até quando conseguiremos perceber essas diferenças. O humano de hoje é mais uma caricatura de si mesmo, nem uma fera ou pássaro enjaulado, mas uma pessoa-coisa, descaracterizada pelos processos produtivos e pela falta de sentidos numa sociedade incapaz de produzi-los, onde a justificativa se encontra em sua própria mecanicidade, em consumir-se estaticamente no tempo-espaço, sem expectativas, sem esperanças. As pessoas das imagens de publicidade são somente simulacros da vida real, emulações sublimadas destinadas a estimularem as pessoas reais a encontrarem um sentido na ilusória liberdade de consumo.
É uma sociedade fetichizada; não somente o fetiche do dinheiro: ao modo de certas sociedades ditas "primitivas" - como diria Jung - nossa libido é transferida para os objetos, só que nossos objetos são desprovidos de relações simbólicas ou míticas; ainda que o discurso mítico-simbólico esteja presente na publicidade, ele é um discurso falso, sem lastro real: assim, por exemplo, as imagens associadas à liberdade - de pássaros, viagens ou velocidade, não dizem respeito à liberdade real, mas a uma falsa projeção da liberdade. O discurso publicitário é o discurso dos simulacros.
Os objetos tornam-se coisas-pessoas, mas essa pessoa é somente a máscara, persona com que os objetos são dotados para esconderem sua contingencialidade produtiva: emulando o humano, a indústria procura capturar a atenção dos consumidores, que buscam fora o que não mais encontram em si.
Como todo produto social, essa movimentação da pessoa à coisa não é um movimento natural: é oriundo de complexas relações de produção, de um arcabouço jurídico e de um discurso que em nome de interesses de classe tornaram alguns pressupostos econômicos e de valor em pretensos universais: a lógica produtiva e mecanicista de nossa sociedade de mercado não é um valor universal, nem no tempo nem no espaço. A ambição predatória, a relação pragmática - e não lúdica ou poética - com o espaço, com a natureza ou com as pessoas não são valores universais nem desejáveis.
Na medida em que nos desnaturamos nos mecanizamos e maior se torna o abismo entre nós e nossa natureza. A lógica dessa sociedade exige de nós um permanente exílio da nossa natureza, da nossa sensibilidade. Nos tornamos estranhos para nós mesmos.
E as coisas nos sorriem, nos felicitam, nos dão bom dia, nos dizem obrigado, enquanto nós, mudos e estáticos, contemplamos com angústia nossos espelhos, sem saber mais se o que vemos é uma ruga ou uma trinca no material.

09 novembro 2010

A Paixão Pelos Objetos

As coisas não são para nós, nós é que somos para elas. O velho Marx, ainda no século XIX, percebeu esse elemento da natureza do capitalismo, ao dizer:" O capital cria não somente um objeto para o sujeito, mas (também) um sujeito para o objeto."  De fato, em nossa época fica patente que o que consumimos, mais do que atender a nossas necessidades, na realidade servem para que, através do consumo, atendamos às necessidades do mercado. O mercado fabrica realidades e necessidades. O mundo do consumo é dono da sua própria virtualidade; ele retroalimenta permanentemente esse universo fetichista com histórias, soluções e casos que dão a sensação, ao consumidor, de que essa lógica de consumo é patente e real em suas vidas e não somente na cadeia produtiva. Assim  se glorifica a obsolescência das coisas justificando a necessidade de trocar de celular, computador, aparelhos de som, carros, etc, mesmo quando os objetos que compramos ainda se encontram em plena vida útil.
É claro que esse é um dispositivo de mercado, mas além disso, parece que ficamos enredados nessa lógica e no lugar da nossa efetividade e liberdade como sujeitos sociais - que não existe nessa sociedade -, colocamos a nossa paixão pelos objetos; paixão não no sentido amoroso, mas no sentido spinoziano, de que somos afetados negativamente, passivamente, pelos objetos. Não é uma escolha, é uma compulsão a que cedemos; em larga medida a indústria cultural e o marketing colaboram com essa paixão e de certa maneira a indústria cultural procura humanizar os objetos.
Não são poucos os filmes em que máquinas ou robôs são dotados de sensibilidade, senso de indagação ou mesmo curiosidade humanas - como em Wall-e, Eu, robô, 2001, etc, como se houvesse uma movimentação, da sociedade para a cultura, de transferir nossa humanidade para o artificial e o inorgânico. Esse movimento indica a ruptura máxima com a natureza pela tentativa de obter o controle total do humano justamente pela sua desumanização, pela sua desnaturação, pois a melhor característica do humano é sua imprevisibilidade, sua irregularidade, sua naturalidade.
Essa paixão pelos objetos é  o ponto máximo da nossa alienação, de que nos tornamos estranhos para nós mesmos e transferimos para os objetos nossa energia, nossa efetividade, nossas pulsões. O fetiche ainda é pelas coisas, como se elas possuíssem nosso maná, nossa alma, E de alguma maneira possuem, enquanto são resultado do fruto do nosso trabalho, que consome nossas energias, nossa sensibilidade. Aqueles índios que se recusavam a se deixar fotografar com receio de que a máquina sequestrasse suas almas não deixam de ter razão: de fato, as coisas nos possuem, elas são mais importantes que as pessoas.
Isso não é uma paranóia política: observem como as pessoas tratam seus carros e seus gadgets e como tratam a outras pessoas. As coisas são super dimensionadas, hipervalorizadas, assim como os processos e instituições, em detrimento das pessoas.
Há uma espiral que vai das práticas de mercado e da cultura para as relações pessoais, onde as pessoas são desvalorizadas e as coisas são elevadas a um patamar de quase humanidade. outro dia, num comercial de automóvel, diziam que o carro deveria estar num museu como obra de arte; tomando um desses refrescos artificiais ocorreu-me pensar que ele não foi feito para mim, eu é que fui feito para ele, pois a verdade é que, quem precisa tomar um pó químico potencialmente perigoso com sabor de nada ? Mas vocês já viram as propagandas de refresco ? O quão saborosos eles são na boca de mulheres lindas e deslumbrantes ?
Curioso é que lutar contra essa paixão pelos objetos significa exilar-se no tempo. A medida de nossa época é a medida das coisas; a qualidade e o preço dos objetos serve como parâmetro para a qualidade e o valor das pessoas; os ricos compram carros, celulares e sutiãs com diamantes; a classe média compra carros, celulares e sutiãs, sem diamantes mas com grife; os pobres compram carros (quando podem) e celulares, usados e com dívidas, mas todos compram e se sentem irmanados, no mesmo paraíso das coisas, no nirvana da materialidade plena.
Nos sentimos seguros quando consumimos, parece que só assim nos reconhecemos como sujeitos. Essa é a máxima liberdade do capitalismo. A outra liberdade possível é a do ostracismo, do exílio, pois quando não participamos dessa pretensa comunidade de consumidores somos enxotados, como se possuíssemos alguma doença grave e contagiosa.
São poderosos os mecanismos de dissuasão e pressão, que tentam a todo custo tornar  aparente uma liberdade que não existe; nossas escolhas se dão entre espadas e no fim das contas os objetos tomam conta de nós, em nome do Deus mercado.
Assim, existimos para as coisas e elas tomam conta de nós.

19 outubro 2010

Dois Poemas, Um em Prosa

Nessa nova postagem, um poema em prosa de minha autoria - Pequenas Possibilidades Cósmicas, e um poema de minha filha Vitória - Primavera. Boa Leitura


Primavera
Vitória Alencar Sousa


A aurora desperta escondida

- privilégio dos insones -

e interminavelmente continua seu trabalho

dia após dia


Cada vez mais cedo

Primavera e - por que não -

Outono em meu coração.



Pequenas Possibilidades Cósmicas


Sua língua me habita, chave que abre as portas da noite nagual. Em breve o vento das estrelas, el Huracan celeste nos levará pelos mesmos becos cósmicos, esses vãos entre os grãos de areia, esse intervalo entre gotas d'água.

Abraçarei tuas asas como criança que encontra o sol na estrada e o leva para brincar de esconde-esconde e correm juntos pelos bosques, bebem dos regatos a insistente música do cosmos.

Irei contigo onde fores, língua que escreve na areia, pluma que dança na miragem dos oceanos. Entre teus deuses sou o estranho, meus olhos têm sangue, os teus têm estrelas; tu bebes a luz, sou tabuleiro, por isso olho ansioso a esfericidade dos limões, a geometria dos frutos, a geografia do sexo da terra.

Mergulharei em tua carne improvável deusa-mariposa, deixa-me ser por um instante a névoa que te envolve, o talo de relva em que pousas, a flor que te alimenta. Oceanos de néctar descerão em tua garganta, sou cometa entre cenotes e aldravas, alfabeto que se narra no amanhecer.

Eis aqui nosso amor, pequenas possibilidades cósmicas de paixão. Enquanto voas, a lua acende promessas de espaço.

13 outubro 2010

Aquilo que a Deusa Vê

Dispense títulos, honrarias
o manto da poesia são as ruas
os corações secretos
dispense a seda
prefira o algodão dos dias
as vestes da paixão
dos andarilhos
outrora o verso poderá
animar colheitas
desfazer suspeitas
a liberdade é nosso vício
que venham as estações claras
onde flores se abrem graciosas
a brisa ameniza o tédio
que venham os dias heróicos
pela palavra maldiremos
os monstros
os que ferem com dinheiro a inocência
que suas mãos queimem noite, dia
que brotem chagas em suas faces de cão

que venha o tempo da redenção
quando o perfume das estrelas
vazará pelas entranhas da terra
de caverna em caverna
acordando pitonisas
seus olhos de nereida e águia
deixem para trás os compromissos
só há olhos para os que veem
aquilo que a Deusa vê.

04 outubro 2010

The Lemons & The Revolvers

Essa é uma postagem diferente, um conto de Ariadne Alencar Sousa, sobre o mundo das bandas de rock, com uma dose de humor e esperança. Ariadne é minha filha mais nova (11 anos).

The Lemons e The Revolvers

Ariadne Alencar Sousa

Olhei, angustiado, em volta do palco. Só encontrei um cara com um balde e uma vassoura na mão. Era ele.

- Com licença, o senhor é vocalista da banda The Lemons?

- É... sou.

- É verdade que vocês vão tocar no Festival da Independência?

- Não.

Maravilha. Aquela era uma oportunidade para a nossa banda entrar em ação.

- Mas então o que o senhor está fazendo aqui?

O vocalista suspirou.

- Hambúrguer. Não vê que eu fazendo hambúrguer?

- Sério? Não parece.

- Garoto, você é cego ou o quê? Eu lavando o palco!

Depois de um tempo, o vocalista voltou a falar:

- Talvez a gente toque. Você sabe, tem que pagar pra tocar.

Aquilo me deixou com uma com uma sensação meio ruim. Tá certo que o que a gente tinha passado pra chegar até lá não havia sido nenhuma moleza, mas a gente não teve que limpar chão nenhum!

-Ei, senhor,(não sei se devia chamar ele de “senhor”,ele parecia não ter nem vinte anos direito; seja como for era mais velho que eu) nossa banda vai tocar aqui! A gente podia se juntar com a sua banda e tocar tudo como uma banda só! Não ia ser a maior loucura? Uma banda com dois baixistas,dois vocalistas, dois bateristas e dois guitarristas! E juntando o estilo Beatles da minha banda com o hardcore do senhor, a gente podia fazer um hard psicodélico de primeira!

O vocalista me olhou desconfiado.

- O resto da banda é feita de guris malucos iguais a você?

- Bem...é.

- Então os The Lemons tão nessa!Não somos guris mas somos malucos!

- É isso aí!

23 agosto 2010

Dois Poemas

Chega

Chega de frases incompletas
traços, sombras
se estamos presos, a palavra é terra
se flutuamos, encosta é ponte
somos famintos de muitas coisas
deuses, espaço, liberdade
de poemas
fartos, vastos
de sangue e infinito
somos impacientes com a esperança
às vezes desacreditamos
que o amanhecer venha antes da noite
guardamos sendas para o sol
esperamos nas trincheiras
esperamos nos caminhos onde os ladrões habitam
sem medo
chegas de respostas incompletas
nossas perguntas movem
a variável infinito
temos olhos de lince e dragão
não nos mostrem a terra prometida
a terra prometida somos nós.


Fogo

Estamos na memória das pedras
rios de lava as lembranças da terra

estamos nas ruínas de Petra
o deserto seus dedos de areia

estamos nas escamas da garça
leves nossas mãos em pluma

estamos nos olhos das feras
pupilas abertas na escuridão

estamos no sopro
flauta de osso soprando na manhã

estamos na sombra dos vulcões

22 julho 2010

Dois Poemas

Ouvir

feche os olhos para ouvir o mundo

escutarás as vozes dos deuses sem nome

incessantes ondas do tempo

espalhando ecos

sussurros marinhos, aves de gelo


no outono o som das folhas tristes

no solstício o espináculo do sol

plic plac das chuvas

confidências das raízes sob a terra

estalos das sombras em busca de luz


feche os olhos para acordar inteiro

ouça seu nome

quando estiver só.


Paisagem

do alto quem escutará bandeiras ao vento

quem saberá palavras

que atraem mel e sol

além das nuvens de elétrons

deuses hesitam

entre a nova terra e a destruição


sob o azul frases titubeiam

é preciso achar o lugar

onde os pássaros teimam o amanhã


é preciso marcar

com menires e sal

o espaço onde as estações copulam

agradecer à memória de cada coisa

que esqueceu a tristeza

08 julho 2010

gentes d'áfrica

as meninas da áfrica não falam

seus lábios foram cortados


os meninos da áfrica

são tão velhos quanto a fome


as mulheres da áfrica

amamentam desertos


os homens da áfrica têm

monstros nos pés


as meninas da áfrica vagam

com sorrisos de encher estrelas


os meninos da áfrica pulam

tão altos quanto o kilimanjaro


as mulheres da áfrica dançam

com coxas de enlouquecer o mundo


os homens da áfrica contam

com vozes de nunca morrer


06 abril 2010

A Cidade de Espelhos

A Cidade de Espelhos

Aqueles que andam
na cidade de espelhos
em vão esperam
descobrir nas ruas
onde o nome começou

percebendo as nuvens das montanhas
no interior das casas
julgam que o tempo
assombrou os homens
que os alicerces
dançam sobre o nada

as palavras repercutem
em cânones invertidos
desdizendo a ordem, o lugar
nas janelas os leões bocejam
à espera dos vulcões

nenhuma sombra é sombra
toda árvore se curva à luz
pensei ter achado
em alguma rua, fonte
os nomes que me imaginei

mas a manhã confunde a úmbria
quando nos vemos
já somos o outro.

16 março 2010

Uma Anotação & Outros Poemas

Os leitores desse blog devem ter observado que as últimas postagens foram de poemas e que o número de poemas supera o de artigos e ensaios.
É verdade. Sou, antes de tudo, um poeta, essa é minha natureza fundamental. A poesia para mim é mais que mero exercício artístico, é uma forma de conhecimento tão válida quanto a ciência, mas de certa forma mais completa, ainda que não da maneira lógica habitual.
Então, os poemas expressam uma condição fundamental de minha relação com o mundo, assim como sua estética dizem da maneira como sinto o mundo ao redor, como amo e como expresso essas possibilidades de linguagem e de conhecer que a poesia traz.


ACORDAR

Acordamos sem nome, é o começo
todas as coisas nascem do esquecimento

sem sangue nos olhos, sal na língua
sem ruídos ou frio

pálpebras abertas
para o algodão dos dias

acordamos como se morrêssemos.


ESQUECIMENTO

O lodo quer a esconder a pedra
o lodo quer tomar o sol
não há sinais de luta
a pedra guarda memória
ter sobre si o lodo
é como se esquecesse.


INCOMPLETUDE

A fórmula do verso encerra a precisão da gema
estrofes no gesto da língua
de borboleta
que em espiral espera o mundo

incerteza do vôo, indecisão da flor
no momento de abrir-se
no perfume leve o encontro
do gozo e da memória
plena incompletude do amor



03 março 2010

Outros Poemas

Cuidado

Ao abrir as asas
não esqueça
que o horizonte precisa respirar


Olhar Estrelas

Os dias em que vi estrelas foram os mais belos
Órion gigante pelo céu, Betelgeuse, Cassiopéia
Sírios e sua solidão
esperava notícias, romance
canções do mar, sinais de um planeta distante
tudo brilhava
como se fosse o mar
acima, dentro de nós
talvez pudéssemos tocar constelações
num canto escuro da galáxia
na periferia do cosmos
em nós
o centro, o fim, o começo
olhando estrelas
para dentro

A Chuva

O cheiro da chuva
essa chuva andou em muitos lugares
depois do Saara
o Atlântico
depois
grama molhada
ventania nos beirais
pardais se escondendo do tempo
e depois
e depois
essa rua vazia
esperando alguém

25 fevereiro 2010

Novos Poemas

Os Lobos

Quer saber
lobos não são homens assim como os homens
sempre com punhais, palavras
sempre com laços, trapaças

prefiro andar entre lobos
faro aceso à Lua
correr entre as árvores
uivar a grande dor

prefiro ter sangue nos dentes
que mãos de plutônio.


De Frente

Vista assim de frente
vida assemelha-se à última versão dos tornados
de uma certa distância

próximos
percebemos os ventos
mas os nomes da água insistem
em confundir a forma e o tempo.


Lugares

Desses lugares muito antigos
evito o país das sombras
também esses outros
cheios de poeira e dor
encontrei nomes
entre afrescos de golfinhos
nesses lugares
ainda respiro.



15 janeiro 2010

SOS HAITI

Frente à tragédia que se abateu sobre o povo haitiano, algumas organizações humanitárias estão recolhendo ajuda financeira para ajudar os haitianos. Uma delas é a CARITAS, organização católica, conhecida pela sua respeitabilidade e seriedade.
Conclamamos a todos os leitores desse blog a participarem dessa corrente de solidariedade ajudando com doações via CARITAS. No site www.caritas.org.br há todas as informações necessárias de como fazer as doações.
Múltiplos Abraços,
Gledson

14 janeiro 2010

Entre AVATAR e o Haiti

Assisti ontem ao aclamado filme AVATAR. Como sempre, fascinado que sou pelo cinema, entrei na sala à espera de uma revelação, de algo que me motivasse e me emocionasse de maneira profunda, principalmente que fosse uma experiência estética nova e interessante. Mas devo dizer que me decepcionei profundamente, porque, independente de seus efeitos especiais e da tridemensionalidade, o filme é uma sucessão de clichês cinematográficos, uma mistura de cenas descosturadas de filmes de violência, um pouco de DANÇA COM LOBOS ou até um pouco de UM HOMEM CHAMADO CAVALO, e algumas outras cenas e animais copiadas de outros filmes.
Vamos lá: em primeiro lugar, o roteiro é mal feito, os personagens não têm consistência psicológica, são superficiais, quase automâtos. O personagem principal(o soldado da cadeira de rodas) vai do mal caratismo à santidade em pouco mais de duas horas sem que percebamos nenhuma transição nessa profunda transformação psicológica pela qual ele passa; a cientista interpretada por Sigourney Weaver é uma sucessão de estereótipos sobre cientistas e todos os outros personagens se movem entre as formas pré-moldadas da indústria cultural, meros bonecos travestidos de gente. Os Nav'is são também estereotipados, índios norte-americanos transplantados para o espaço sideral ( ao ponto de haver Nav'is das Planícies e das pradarias...), com direito a animais semelhantes a cavalos de muitas patas. O animal que é domado pelo soldado Jane Sully assemelha-se(demais) com o Pterossauro Quetzalcoatlus, que media cerca de 12 metros de comprimento e que possuía uma protuberância sobre o bico. O que estou querendo dizer é que o tal "mundo novo" criado por James Cameron não é tão novo assim; claro que há imagens belíssimas, mas todas são muito semelhantes ao que já há aqui na terra e mesmo as plantas luminosas de AVATAR são praticamente elementos da fauna marinha (como anêmonas) transpostas para um meio não marinho. Ou seja, há que separar, no filme, aquilo que são elementos estéticos dos avanços tecnológicos, assim como temos de separar o conteúdo político explícito do seu resultado como obra ideológica do meio e da civilização à qual ele critica ( os EUA); afora os clichês(que são muitos - como na cena em que Jake Sully chega à aldeia Nav'i - como não lembrar de DANÇA COM LOBOS ?), o ritmo é aquele alucinado do cinema americano de ultimamente, como se não fosse permitido sentir aquilo que o filme propõe (a comunhão presente em Pandora) porque não se tem tempo para tanto, haja vista que o filme corre de batalha em batalha, de clichê em clichê. A cena dos rituais de cura à sombra da árvore sagrada, com aquela dança meio rítmica das pessoas sentadas no chão é praticamente uma cópia de um ritual que aparece no já clássico BARAKA, onde vários monges aparecem cantando mantras sob a coordenação de um sacerdote já velhinho e que é uma das cenas mais conhecidas do filme. Não tem nenhum problema copiar uma cena de um filme como maneira de homenagear outro filme ou cineasta, como Brian de Palma fez na famosa cena do carrinho de bebê em OS INTOCÁVEIS, homenageando EISENSTEIN, que fez a cena original no mais que clássico O ENCOURAÇADO POTEMKIM. O problema é quando isso aparece como meramente cópia num amontoado de outras cópias veladas ou não.
Certo que o que fica claro é que Cameron tomou como referência, de alguma maneira, a destruição dos índios norte-americanos; a semelhança entre o que acontece com os Navi's e o que aconteceu aos índios na chamada "expansão para o Oeste" é muito grande. Mas ao transferir, de alguma maneira, o passado para um futuro hipotético no qual esse outro povo - os Navi's - é redimido, ele dilui o poder do acontecido e a própria memória daqueles que foram assassinados na "expansão do Oeste", porque o narrado não faz uma referência ao real existente, mas a um mundo fantástico que nos deslumbra pela sua beleza. Ao deslocar, de alguma maneira, a história dos índios norte-americanos para um lugar imaginário e utópico num futuro distante, o que acontece é que a história real se dilui, esquecemos o que de fato aconteceu, até porque muitos não conhecem o acontecido, o que faz com que ele se torne meramente peça do imaginário. Para restituir a história seu drama real é interessante ler ou reler o ENTERREM MEU CORAÇÃO NA CURVA DO RIO, onde é contada a verdadeira história dos massacres cometidos pela civilização WASP sobre os índios.
Um detalhe a ser considerado é que, numa das falas, quando Jake Sully conversa com o coronel Quaritch e esse lhe pergunta onde ele serviu, um dos lugares onde ele, o coronel, serviu como Marine foi na VENEZUELA, dando a entender que a Venezuela foi invadida pelos EUA, já que o filme se passa em um futuro não identificado mas também não tão distante de nós,como se isso estivesse presente no imaginário americano (e porque não dizer nos planos americanos, haja vista que os EUA cercou a Venezuela com treze bases militares entre a Colombia e o Caribe - ver artigo de Ignácio Ramonet no www.cartamaior.com.br).
A crítica feita à dominação é interessante, mas não é substancial, porque de certa forma a crítica feita se anula com o poder do filme de seduzir para suas estratégias de marketing, onde ele é a própria expressão da dominação da indústria cultural e da cultura norte-americana. Isso aparece no filme através do próprio Jake Sully: é ele quem vai salvar Pandora. Porque os próprios nativos não conseguem organizar sua rebelião ? Porque eles não conseguem sozinhos expulsarem o invasor ? Porque justamente um dos invasores vai ser o redentor de Pandora ? Isso faz parte do imaginário americano, de que a nação americana, o povo americano são os guardiões da liberdade, é uma predestinação heróica que faz com que outros povos precisem da tutela americana para se libertarem. Aquilo que AVATAR enuncia no discurso invalida na prática.
Enfim, é preciso não cair nas estratégias de sedução que tentam apresentar AVATAR como um grande filme; ele não é um grande filme, é uma fraude estética, é como um copo de ópio tomado enquanto se cheira cocaína, ou seja, é um narcótico estético que o que menos quer nos fazer é pensar e menos ainda pensar na destruição do planeta. Ele é somente mais um grande produto da indústria cultural, que consegue arranjar soluções técnicas engenhosas, mas que largou mão de uma coisa chamada talento, que James Cameron nunca teve, seus filmes sempre foram de medianos a ruins, sina da qual AVATAR não consegue escapar.

Saindo AVATAR, entramos no Haiti, e entramos na tragédia do Haiti também com o triste sabor de deja vu. Se ao assistirmos AVATAR essa sensação era presente porque o filme repete clichês, no Haiti não foi o terremoto que se repetiu, mas as cenas de uma realidade que não se modifica, porque os opressores (inclusive o Brasil que mantém lá sua missão militar) não querem que isso se transforme. É como uma crônica de uma morte anunciada, o Haiti já estava destruído antes do terremoto, ele é uma espécie de nobody's land, onde industriais ávidos espoliam trabalhadores da indústria têxtil para alimentar o mercado norte-americano de roupa barata, num regime de trabalho que dizem que é pior que a China.
Nunca fiquei tão chocado como ao ver uma foto numa revista NATIONAL GEOGRAPHIC, dos bolos de argila e gordura que o povo haitiano faz para comer ou enganar a fome e que são até vendidos nos mercados, e fiquei mais chocado ainda quando vi, no apartamento de um conhecido meu, o exemplar de um desses bolos de argila e gordura: para mim aquilo não era comida, era algo como uma escultura primitiva, um disco circular de argila e gordura que nas ruas de Porto Príncipe são vendidos para aqueles que nada tem enganarem sua fome.
Agora os países ricos (e qualquer país é rico perto do Haiti) anunciam suas ajudas de milhões de dólares. Mas comparem as ajudas destinadas com aquelas que foram dadas para salvar bancos, financiadoras e seguradoras no auge da crise econômica e verão que a ajuda anunciada não é nada frente ao que se gastou para salvar a burguesia falida, não é nada com o que se gastou para salvar os grandes capitais transnacionais.
Agora as grandes nações alardeiam suas ajudas como se fossem salvadores (o que de fato serão frente à catástrofe), mas escondendo o fato de que são todos responsáveis, seja pela omissão e silêncio, seja pela colaboração direta com a dominação e opressão de que o povo haitiano é vítima e que tem suas origens ainda na colônia, passando pelas lutas de libertação.
É tudo muito triste e nessa noite da alma somos todos haitianos. Não vamos contar os mortos, não vamos chorar mais por aqueles que nada têm. Vamos sim ajudar, lutar de alguma maneira, torcer, brigar, vamos desejar que o sol brilhe novamente sobre o Haiti e que esse povo tão sofrido siga com ânsia as pegadas da liberdade até sua completa libertação.
Somos todos haitianos.