21 maio 2008

Três Poemas

Natureza Morta

Lápis, chave, mesa
espaços vazios, elétrons dançando
horizontes sem fim
no grafite
poesia no aglomerado da mesa
sinais de manhãs sempre presentes
a boca
emudece.



Tudo longe

Se partir de uma a outra estrela
pisando em palavras
fazendo bolhas de sons
cantando mantras dos poucos nomes que tive
talvez consiga
entender os horizontes
scalinata no peito
rios de fogo se cruzam
em meu coração
tudo longe, tudo perto
amor
água que trago nas mãos.



Mar Nas Veias

Luzes descem em meu cérebro
não é pentecostes
somente glossolália da poesia
sangue jorrando versos de Rimbaud
barco bêbado meu nome
nasci num dia de silêncio
o dia de longos cabelos negros
me chamava
há mescalina em minha mente, eu sei
somente os cegos conseguem ver
a cor dos girassóis
só os surdos conseguem ouvir
o desejo das fadas
sim
meu nome é nada
queria beber água do mar
não posso
o mar está
em minhas veias.

12 maio 2008

Os gestos, os sentidos

O que vou escrever hoje é uma nota bem pessoal; aliás, muito pessoal. Acho que ela fará jus à natureza intimista de um blog, talvez só não faça jus ao caráter massivo do próprio meio (a internet), porque a própria escrita se responsabilizará por criar suas barreiras discursivas contra aqueles que querem tão somente bisbilhotar as vidas alheias.
Vê-se que a intimidade dessa nota segue por caminhos cruzados, falas paralelas, marcadas pelos símbolos e pelo silêncio; mas quero dizer, sem receio, que nossa vida está sempre por um fio e que a cada dia lutamos contra o silêncio e a morte, contra a indiferença e o medo. É isso que tenho feito dia após dia, hora após hora: não sei se me faço entender, mas é preciso tirar a vida da suspeita e do vazio em que ela está inserida, e para isso precisamos carregar de sentidos nossos gestos - as expressões de amor, os nãos, os sins, a vontade, os apertos de mão, os abraços - precisam ser carregados de eletricidade amorosa, de plenitude; eles não precisam ter significados, a não ser o significado próprio ao gesto, à sua expressão, ao seu próprio universo - um gesto de amor é somente isso, e mais nada - e precisa ser algo mais?
Revelará essa nota algum desespero? Alguma afronta à esperança? Não, a esperança não é uma deusa cega - só esperamos algo porque acreditamos na realização apesar de todos os nãos, apesar de todos os obstáculos, apesar da presença constante do vazio e da morte. A morte nos ronda o tempo todo - de diversas maneiras: a morte física, a morte dos afetos, a morte da esperança, a morte de deus, a morte das utopias, a morte do homem... -; crescemos lutando contra a morte, crescemos lutando contra aqueles que dizem que nossas esperanças morreram, que o amor nunca se realizará, que o homem é um animal "cínico"; crescemos, ironicamente, sobre os despojos dessa luta sem fim contra a morte; aliás, contra as mortes. Engraçado que crescer seja também caminhar para a morte. Mas será possível transformar a morte em algo mais que o nada?
Estar pleno, estar cheio de si, realizar-se enquanto humano nos afasta desse horizonte sombrio, mas essa auto-realização não é pacífica, ela é uma permanente luta, e como toda luta tem seus dias de paz, seus dias de festa, além dos seus dias obscuros. É essa plenitude que deve ser buscada, não num horizonte além, mas aqui-agora, não em nenhum além, mas no dia a dia, com as pessoas com as quais vivemos, com as pessoas às quais amamos: dos mais simples gestos aos mais grandiosos - isso não é um roteiro de atitudes piegas: na realidade, afirmar a nossa humanidade e plenitude no cotidiano é uma maneira de vencer a estupidez das relações mecanizadas, vencer a massacrante rotina imposta pela sociedade massificada, é resistir à permanente desumanização a que estamos submetidos. Estamos longe dos horizontes religiosos, queremos que os seres se afirmem humanamente sem precisarem de outras esferas que justifiquem o que elas são, que se afirmem corajosamente como se cada dia fosse o último.
Às vezes sonho sonhos estranhos, alguns sombrios, outros luminosos. A vida parece-me um oceano de estrelas e constelações, onde mergulhamos infindavelmente: cada gesto na água espalha luz, mesmo quando não vemos nada, estamos mergulhados em luz que não vemos, em sentidos que construímos em silêncio ou não; a simbologia onírica atribui às estrelas o valor de numens do melhor de nós, portadoras de esperanças e realizações. Não sei que valor atribuir às estrelas, não sei nem como dimensioná-las numa axiologia pessoal, numa simbólica interior - o que sei somente é que elas trazem para mim a grata sensação de universo sem fim, de uma beleza magnífica, da qual faço parte; o que sei é que certas pessoas aparecem para mim como estrelas, a brilharem num horizonte que às vezes só eu sei. A essas estrelas, anunciadoras de novos dias, guardo palavras e músicas que resgatei dos dias em que eu era somente alguém que contemplava uma terra de ninguém, dias em que estava à espera de notícias que viriam de longe e que anunciariam que toda guerra terminara, principalmente aquela que fazia contra mim mesmo. Essas estrelas trouxeram à tona o melhor de mim.
Esse texto é ele mesmo um gesto - espero que ele tenha sentidos. Porque sinto que cada dia, agora, tem um valor inestimável, e que é preciso brandir aos ventos o amor, a beleza, a sede de justiça, a esperança.
Sim, é preciso portar a bandeira da esperança, para que sua estrela brilhe acima de todos os edifícios, para que sua luz se faça plena em nós.
Esse é meu gesto de amor.

08 maio 2008

Silêncio

4:00 hs, madrugada fria, a cidade quase dorme. Eu precisava desse silêncio; por mais que viva numa cidade e num mundo que, regra geral, despreza o silêncio, ele é mais que necessário. Parece que tentamos, nas sociedades contemporâneas, preencher a todo custo nosso próprio vazio interior nos enchendo de sons e imagens, como se eles fossem operar a mágica de preencher os espaços vazios dentro de nós ou então como se eles tivessem a virtude terapêutica de diminuir nossas angústias, amenizar a solidão, trazer respostas.
Os sons estão onipresentes, seja como músicas, como vozes de comando, como barulho de máquinas; nas estações de metrô, uma voz onipresente nos diz como nos comportar, o que fazer, o que não fazer; nos supermercados, outra voz nos guia pelos labirintos das promoções imperdíveis, das delícias de ocasião, das novidades anunciadas; nos consultórios e repartições, há sempre aquela música que não cessa e que todo mundo ouve mas ninguém escuta, tão mecânicos nos tornamos em nossos sentidos: olhamos, mas não vemos; ouvimos, mas não escutamos.
Há um distanciamento entre o ato da percepção (ouvir, olhar) e atenção consciente sobre as percepções (ver, escutar), o que só revela nossa alienação em relação a nós mesmos e o mundo ao redor. Quantas vezes passamos por uma mesma praça e nunca reparamos na quaresmeira que quase nos assalta com seu colorido ? Ou seja, olhamos, mas não percebemos, não sentimos sua beleza ? Quantas vezes percebemos o canto tímido dos beija-flores pousados sobre os fios ou em alguma árvore em frente à nossa casa, no meio do amanhecer ? Quase nenhuma, com certeza, porque estamos cada vez mais alienados das nossas próprias possibilidades, embotados em nossa sensibilidade, brutalizados que somos em um cotidiano que nos rouba, ou tenta nos roubar, o direito à esperança e ao sonho.
É uma estratégia do capitalismo, via senhores do marketing(que nunca é inocente), essa manipulação constante dos nossos sentidos, porque dessa maneira nos mecanizamos cada vez mais, atrofiamos nossa sensibilidade, nossa capacidade de discernimento e aí não sabemos mais o que é real, o que são de fatos nossos desejos e necessidades e aquilo que é uma imposição mercadológica: quantas vezes não presenciei, nos supermercados, as pessoas sairem correndo desesperadas ao serem anunciadas novas promoções, sem ao mínimo pensarem, refletirem, como robôs acionados a um comando de voz: a máxima de Marx em carne viva - as pessoas tornadas "sujeitos para os objetos".
Ser possuído continuamente por sons e imagens embota nossos sentidos, atrofia nosso senso estético, nos mecaniza; sem falar que aquilo que é veiculado - imagens e músicas -, invariavelmente são "produtos" que primam pela absoluta falta de gosto, de cultivo estético, tornando padrão justamente aquilo que numa crítica do gosto nem entraria numa escala de valores. Além do que essa é uma maneira de transformar todo o tempo privado, subjetivo, num tempo igual ao da produção. Como bem já haviam observado Adorno e Horkheimer, "o tempo de lazer é igual ao tempo de trabalho".
A natureza conhece os tempos de atividade e os tempos de repouso: o capitalismo é essa ruptura absoluta com a própria natureza, de maneira que a sujeita não só externamente, mas também internamente: é preciso não só controlar o curso dos rios, derrubar florestas ou transformar genes, é preciso controlar, subjugar a natureza dentro do homem - controlar sua fisiologia, seus ritmos, controlar sua psique, pois só assim o homem se torna disponível para o capital, quando ele, o homem, se mecaniza. Por isso a onipresença dos sons, das imagens, dos movimentos: maneiras de mecanizar, controlar e destruir nossa verdadeira natureza, para assim ficarmos livres para o capital.
De minha parte, amo o silêncio, objeto de luxo que a madrugada me permite desfrutar de modo quase absoluto. É uma maneira de estar a sós consigo mesmo, de ouvir nossas vozes interiores, de distinguir o que somos e o que não somos. Por trás de minha aparência errante se esconde um bicho: como qualquer animal, me escondo quando estou doente, me estresso quando enjaulado, quero hibernar quando chega o frio. E se for preciso, uivo.
Mas sei também me levantar de madrugada só pelo prazer de esperar a aurora, de sentir de leve os pequenos movimentos dos pássaros quando a luz do sol só se anuncia, de ver o céu mudar seus tons, se inundar de púrpura, rosas e azuis inexplicáveis, enquanto as estrelas desaparecem lentamente.
Me aproprio assim do tempo, e nesse tempo, posso ouvir os pássaros quebrarem a simetria do nada, posso quebrar outras simetrias, somando a percepção dessa hora mágica à memória, com a lembranças das pessoas que amo e das singularidades que vivi, algumas secretas, quase místicas; outras, cotidianas, quase banais, como é ver sempre o amanhecer. Mas cada amanhecer é único.
Aí a cidade pode acordar, gritar, espernear: os sons que queria ouvir, já ouvi; o tempo que eu queria, já roubei. Isso também é revolução.


03 maio 2008

Dois Poemas

Há Muito Tempo

Há muito tempo, nem havia fadas
o real era caminho sem palavras
não tinha voz
por isso o sentimento
falava inteiro

na boca dos sapos, nas pernas dos grilos
no canto das aves, no uivo do vento
era amor
pura vogal

nem havia eu nem tu
éramos confusos
no começo do mundo
minha mão era teu coração
meu coração tua voz

os rios subiam as montanhas
bebíamos da mesma fonte
em que a poesia borbulhava
em silêncio

há muito tempo
tento o caminho da montanha
tropeço, caio, silencio
para falar moram na língua espinhos
nos pés botas de navalhas

e um sol tão forte
nasce mesmo além da morte
há muito tempo
procuro esse sol.



Flor das Estações

Vi a estrela Sirius no sertão
escrituras egípcias no Seridó
ó mana deixa eu ir
para algum lugar que seja novo
um lugar onde floresça
no barro a flor das estações
ó mana deixa eu ver
em teu cabelo a flor de maio
em tuas mãos o livro
inscrito no sangue da terra
mil maravilhas vi
entre o mato rasteiro e o horizonte
espirais na pedra
trigramas curvos
dando nome ao sertão
quando vem de longe o amor invade maio
ó mana deixa eu ir
para um lugar onde
o país do coração
seja lei.