28 janeiro 2008

3 Poemas de OS DEMÔNIOS DA MANHÃ

Sol da Meia-Noite

Espero o sol da meia-noite

multidões de anjos barrocos cruzam o céu de Plutão

urinam nas sarjetas da Armênia

escorpiões e putas disputam o pão da manhã

há sangue em meus dedos de insônia

Espero o sol da meia-noite

o diabo bate a minha porta

ou talvez seja o destino

ter de esperar o sol da meia-noite

velar minha alma de vigília

Não dormirei mais

enquanto o coração não for uma arena de fogo

pétalas de lótus boiando em meu cérebro

a porta os sons de Citera, hinos a Vênus

montes de Vênus, ruas de Vênus

Citereia, Urânia

meu corpo teu mil corpos na combustão do amor

Espero o sol da meia-noite

tenho a barba por fazer e a promessa de não ser

poeira de estrelas, pó

névoa que se dissipa

Sim, vi o deus cristão copulando com um cogumelo atômico

por isso trago punhais espadas e vigílias

contra a insanidade dos deuses

Teu corpo brilhando à luz da estrela cão

chama contra as trevas do porvir

Espero o sol da meia noite

com meus olhos de Tirésias

e lâmpadas cheias de azeite

de meu sangue

de meu corpo crucificado

entre o tempo e o espaço

entre a história e o ser


Tu virás e o sol em tuas mãos

amor à meia-noite

o diabo bate a nossa porta

é o destino

ser luz

ainda que só

sol da meia-noite.


Tsurus

O amanhã se abrirá em pássaros

noventa e nove formas de dizer teu nome

mil e uma lembranças

de ti

Dentro

a cidade arde em palavras insanas

feérica noite tropical explodindo em fogos de versos

tua presença virtual toma-me de excessos

raízes, teus olhos têm raízes em cristais de água adormecida

meu olhar tem raízes no som da tua voz

guirlandas, fogueiras, lâmpadas

teus braços em minhas costas traçam o círculo

de onde garças partem

em busca de luz.


Epitáfio Para Um Pássaro

Para Gilvan - In Memorian


Sonhei com as forças da terra

reclamando teu nome

com crocodilos insones

atrás de tua seiva


Num instante queríamos banir o mal do mundo

abrir as portas do impossível

quebrar o tempo

libertar

as certezas insondáveis do futuro


Sonhei com você, mas o tempo se partira

contas de colar no assoalho do mundo

tua vida pousando

entre o nada e o tudo


Talvez o tempo nos reúna em suas portas

sob o som de violões de blues

algum bardo cego nos cante

as respostas que o vento não nos deu


Sonhei com você, era manhã

teu coração partia para outros mundos

a música de tua voz ecoava

no som de todos os pássaros.


22 janeiro 2008

A História das Pessoas

Dedicado a Célia Maíra

Hoje nós vamos falar das pessoas, assim mesmo, no plural; não a história de várias pessoas, mas de como as pessoas têm histórias. Pessoas são entes singulares, únicos, não números de estatísticas. O século XX (e o XXI que começou) foi o século das massas, da indústria cultural, da política massificante - fascismo, nazismo, stalinismo -, enfim, da despersonalização, objetivo máximo do capitalismo em relação aos indivíduos - fazê-los acreditar que são meras coisas, entes abstratos sem alma, prontos para serem usados para fins concretos: mover a máquina do capital. Mas, por pura ironia da história - pelo menos para o capitalismo -, em diversos momentos foi quebrada a hegemonia dos dominadores pela ação de coletivos revolucionários - grupos de indivíduos/pessoas que se associaram para lutar contra a opressão: na Rússia de 1917, na Nicarágua Sandinista, no Vietnã; sem falar naqueles indivíduos que conseguem quebrar a hegemonia dos dominadores através de contribuições individuais na esfera do pensar ou mesmo da práxis revolucionária, sejam eles Paulo Freire, Olympie de Gourges, André Breton ou Freud.
Queremos afirmar que as pessoas fazem a história; mas também que as pessoas têm histórias, não só os gênios predestinados, mas também as pessoas ditas 'comuns', aquelas que vivem anônimas e que anônimas também fazem a história.
Falar da história é falar do tempo e da memória: nós, pessoas, somos marcados pela historicidade - particularidade de pertencer a um dado momento histórico - e pela subjetividade e tanto uma como a outra se amalgamam para formar aquilo que somos; não quero discutir aqui como se dá ou o que é a subjetividade, se ela pode ser entendida como um ente substancial ou se é somente uma categoria auto referente do próprio entendimento; não sou especialista para tanto. Só sei que há uma ponte entre a história e a subjetividade e essa ponte é a memória.
Memória é percepção do tempo: arquivamos numa ordem própria, única e particular, as lembranças dos acontecimentos, simulamos nossa própria linha do tempo para assim constituirmos nossa história. Alguém deve ter dito que a memória é uma categoria do ser, pois ao organizarmos o tempo através da lembrança seletiva nossa consciência reconstrói nossa integridade; memória é também lutar contra o tempo e afirmar o ser. Afirmando nossa passagem pelo tempo, afirmando nossas marcas de subjetividade e historicidade sobre a matéria dialética do tempo, transcendemos a sucessão e semantizamos o passado: memória também é futuro.
As pessoas têm memória e, portanto, têm histórias. Lembro-me das vezes em que conversava com uma tia, Francisca, também chamada de Francisquinha - e também de Quinha, alcunha carinhosa que nós, seus sobrinhos, usávamos -, de perguntar para ela a respeito das famosas secas que já haviam assolado o Ceará - tamanha era minha curiosidade, enquanto criança, em procurar entender aquilo que para mim era um passado mítico: eu nasci em 1972, minha tia em 1912, ou seja, quando eu nasci ela tinha 60 anos. Na época dessas conversas eu deveria ter uns 7, 8 ou 9 anos, e não sabia - só hoje eu percebo -, como aquelas perguntas incomodavam-na, porque traziam à tona lembranças que com certeza ela queria esquecer; mas mesmo assim ela falava, mesmo daquelas secas das quais ela não tinha memória, mas das quais ficara sabendo através de sua mãe - minha avó - que presenciara outras tantas secas: Quinha falava da seca de 1923(?), mas também da seca de 1914/15, de triste memória, ou mesmo da seca de 1899, que sua mãe vivera; mas por trás das secas emergia, hoje eu vejo, a história de uma família que lutara ao seu modo para resistir às agruras da história, para superar os duros impasses criados pela natureza e aprofundados pelas mãos dos homens.
Ora, basta dizer que Quinha participou da Comunidade do Caldeirão, agrupamento de um socialismo utópico-messiânico que foi destruído pelas tropas federais a mando de Vargas no ano de 1934: ela fora testemunha ocular, não do massacre, mas dos dias luminosos da comunidade liderada pelo Beato José Lourenço.
Mas ela jamais saía falando de suas memórias: Quinha era uma velhinha metódica, de disciplina espartana, algo às vezes severa: diabética desde a juventude, aprendera a se privar dos prazeres da mesa, mantendo uma dieta rígida até o fim da vida; nascida numa família grande, filha mais velha de um grande clã, aprendeu também a se privar dos amores e passou a vida a cuidar de irmãos e sobrinhos. Mas tinha uma sóbria dignidade e uma rigidez moral comum a quem vivera em épocas tão duras, onde a vida era constantemente ameaçada pela morte através da fome, da violência - do cangaço, dos coronéis, do governo, do próximo -, e onde ao mínimo deslize uma mulher já era considerada prostituta. Ela tinha memória. Ela era uma pessoa, não era um número, não era algo amorfo, pronto para ser moldado. Sua experiência histórica e às vezes sua rigidez levaram-na a ações equivocadas: mas ela tinha uma história e era a memória coletiva da família.
Todos nós temos uma história: nossa vida é uma história em processo; a diferença é que para alguns de nós - me incluo nessa categoria - a história não é simplesmente uma coletânea de lembranças, um feixe de memórias, mas uma história que estamos escrevendo, uma história em curso, em processo, onde lutamos contra os acidentes, o acaso e o tempo para construirmos nosso próprio sentido: nossa história é um exercício de liberdade.
Lendo um livro de Trotsky chamado Lições de Outubro, ele insiste, repetindo as palavras de Marx, que a insurreição é uma arte, ou seja, há um elemento não previsível, que não pode ser determinado cientificamente, dentro da própria história, mas que também, como arte, pode ser exercitado, apreendido, e fica claro, no livro de Trotsky, o papel fundamental de Lênin como elemento catalisador do Partido Bolchevique e nesse papel não há como separar aquilo que foi sua historicidade e aquilo que foi sua subjetividade: o sujeito Lênin aparecia como único, mas era um híbrido dessa dupla natureza.
No livro A Pesquisa em História, as autoras afirmam que, assim como a opressão se dá em diversos níveis - não só no econômico, mas também no ideológico, no social, etc -, assim também há diversas maneiras de resistir e lutar contra o opressor.
Às vezes lutamos inconscientemente contra a opressão, movidos que somos por uma consciência intrínseca de valor oriunda de uma classe ou do meio, e que nos diz que certas condições são indignas da nossa liberdade enquanto sujeitos. Mas quando lutamos conscientemente, é uma maneira de afirmarmos nossa liberdade, o fato inexorável de que fazemos a nós mesmos, pixamos o muro do futuro; enfim, dizemos um grande não ao vácuo do tempo e às formas de opressão: é a maneira de afirmarmos nossa liberdade e dizermos: somos pessoas.

02 janeiro 2008

Amores, Amizades e Frutos

A existência humana é um contínuo processo de crescimento, algumas vezes em direção ao nada, outras em direção a um progressivo grau de auto conhecimento e conhecimento,um permanente desvendar da vida em direção à verdade.
Se algo pode definir a existência humana, em termos de símbolos ou metáforas, a imagem mais adequada que encontro é a de uma árvore no meio do mar: somos árvores que crescem em meio ao mar da existência, bebendo da água salgada e fecunda, crescendo para cima em direção à luz.
Esse crescimento através do conhecimento é uma permanente superação das ilusões, um progressivo crescer em direção a um alto - uma aproximação da verdade,ou das verdades - sistemas de conhecimento que nos levem adiante na nossa trilha tão humana.
A existência humana, como o disse Sileno ao rei Midas - é o sopro de um dia,uma jornada atribulada, marcada pela dor - física e moral -, pelos acidentes, pela insatisfação; somos pacientes de ações que não engendramos, somos sujeitos de ações das quais nem temos consciência, réus e juízes de eventos que na maior parte das vezes nem esperávamos: aí fincamos as raízes mais profundas em meio ao leito do mar, para assim resistirmos às tormentas, às tempestades, aos tumultos.
Mas enquanto resistimos e crescemos - para aqueles que querem crescer -, nos alimentamos da nossa própria humanidade, dos valores que são tão especificamente humanos, como é o sentimento do amor. E o amor é o alimento especial que nos nutre e nos impulsiona para cima, para o crescimento pessoal, para a vontade de superação, em direção às manifestações da luz. E o que é o amor ? Quem conseguirá definir exatamente o que ele é, pensar qual é sua natureza ? Acho que o amor é algo indefinível, algo que foge às categorizações racionais: quando ele surge, já é resultado de uma matemática oculta, de juízos de valor internos, de sensações e sentimentos que despertam essa grata sensação de amar.
Nietzsche dizia que a amizade era uma forma de amor; para mim a amizade é o próprio amor: a diferença está na presença da sexualidade: naquilo que normalmente entendemos como amor há a presença da sexualidade a envolver os seres, o que normalmente não ocorre nas relações de amizade.
Mas se o amor consiste em querem o bem de outrem acima do que se quer para si mesmo, se o amor consiste em desejar para o outro uma felicidade desinteressada, em pensar mais no outro que em si mesmo, a amizade acaba sendo, então, uma forma exaltada de amor - não uma forma superior, entenda-se que aqui não se trata de colocar um superior ou um inferior, nem de relegar a sexualidade a um segundo plano - mas uma forma diferenciada onde a não existência da sexualidade serve como catalisadora de sentimentos de solidariedade que não são obnubilados pela arena mais caliente do sexo.
Creio que o amor sexual é um avatar daquilo que temos de melhor enquanto humanos: a fusão de carne e espírito, a efusão de sentimentos com a graciosidade dos corpos é uma manifestação da nossa face mais cultural, no melhor sentido,pois sublimamos aquilo que nos outros animais é pura fisiologia. A amizade,por outro lado, se destituída de sexualidade, ganha contornos mais nítidos de puro sentimento.
O que diferencia a amizade do "amor-casal"(chamo de amor casal o amor que envolve a sexualidade) são as manifestações sociais de ambos: a sexualidade adquire um caráter social de cimentar as relações e a amizade é destituída desse aspecto como sendo algo necessário(o que não quer dizer que não possa acontecer).
Então o amor, com letras garrafais e maiúsculas, é a grande seiva que circula em nossas veias, trazendo para nossas faces o permanente orvalho da esperança. Esse amor-amizade,esse amor-paixão são faces do que melhor temos a dar e a receber; o amor é a verdadeira face da nossa humanidade.
Muitas vezes os ventos fortes nos vergastam o rosto, e bebemos todo sal, e nos curvamos, e cedemos à força da tempestade para sobreviver; mas do mais profundo coração emana a voz do amor, através das lembranças dos rostos das pessoas que amamos -companheiras(os), filhas(os),mães(pais), amigas(os) - e levantamos a face outra vez para o céu e em nossos galhos-braços surge um fruto, fruto da esperança,puro orvalho de Kwa-Non. Esse fruto condensa tudo o que somos: árvores em meio ao mar,em que brota o fruto da esperança.
De minha parte, devo agradecer à vida pela generosidade com que me doou de amores - passados e presentes, marcas e lembranças, frutos e passagens, paixões e amizades. Enumerá-los seria banalizar aquilo que a lembrança e o próprio amor já consagraram; mas nomear os amores-amizades é uma forma singela de homenagear essas pessoas que fazem parte da minha vida - cada um saberá se reconhecer, cada um saberá qual seu papel na minha existência; eles chamam-se Fadinha, Vitória e Ariadne, amores e frutos; eles chamam-se Bianca e Sueli, Pablo e Rosângela, espécies de flores raras que encontrei; eles chamam-se Andréa, mulher e guerreira;eles chamam-se Gilson,Expedita,Ísis,Adonai, humanos-deuses-irmãos; eles chamam-se Leo,Tati e Cecília, trio de ouro; eles chamam-se mamãe, Ina e Gilvanda, solo; eles chamam-se Edney, Edmilson e Valmir, anarcopunk-revolucionários-cartunistas; Conceição, doçura; Djaim, companheirismo;Soraia, sorriso com aroma de beleza; Mário Dirienzo, poeta-filósofo; Sérgio Anaz, bon gourmet e vivant; Ney, motorista-aventureiro; Babi, mestra e musa; Maíra, coração profundo; e mais: inumeráveis dias de sol, noites de solidão criadora, os rios que conheci e os que não conheci, uma prostituta perdida que vi dançando numa estrada do interior do Piauí, imagens da Via Láctea e Nietzsche...
Não é uma lista de preferências, é uma enumeração caótica de pessoas e coisas que marcaram e marcam minha existência e tem a imprecisão que toda enumeração caótica deve ter e a incompletude da própria existência. Mas essas pessoas são amores-amizades que alimentaram e alimentam os frutos que trago de esperança - cada uma a sua maneira, cada uma em seu próprio grau de intensidade.
Sei que é ridículo citar nomes, mas, como diria Pessoa, "todas as histórias de amor são ridículas", e citá-las(as pessoas), é a maneira que encontrei para, nesse início de ano, dizer como são ou foram importantes para mim.
Quando bate a tempestade e o granizo maltrata as folhas e as ondas nos cobrem de sal e mesmo o vento quer nos vergar, então rostos, imagens, sentimentos circulam pelas veias, circula a seiva de orvalho, volto o rosto outra vez para o sol e sei -sim, eu sei: tudo vale à pena.