22 janeiro 2008

A História das Pessoas

Dedicado a Célia Maíra

Hoje nós vamos falar das pessoas, assim mesmo, no plural; não a história de várias pessoas, mas de como as pessoas têm histórias. Pessoas são entes singulares, únicos, não números de estatísticas. O século XX (e o XXI que começou) foi o século das massas, da indústria cultural, da política massificante - fascismo, nazismo, stalinismo -, enfim, da despersonalização, objetivo máximo do capitalismo em relação aos indivíduos - fazê-los acreditar que são meras coisas, entes abstratos sem alma, prontos para serem usados para fins concretos: mover a máquina do capital. Mas, por pura ironia da história - pelo menos para o capitalismo -, em diversos momentos foi quebrada a hegemonia dos dominadores pela ação de coletivos revolucionários - grupos de indivíduos/pessoas que se associaram para lutar contra a opressão: na Rússia de 1917, na Nicarágua Sandinista, no Vietnã; sem falar naqueles indivíduos que conseguem quebrar a hegemonia dos dominadores através de contribuições individuais na esfera do pensar ou mesmo da práxis revolucionária, sejam eles Paulo Freire, Olympie de Gourges, André Breton ou Freud.
Queremos afirmar que as pessoas fazem a história; mas também que as pessoas têm histórias, não só os gênios predestinados, mas também as pessoas ditas 'comuns', aquelas que vivem anônimas e que anônimas também fazem a história.
Falar da história é falar do tempo e da memória: nós, pessoas, somos marcados pela historicidade - particularidade de pertencer a um dado momento histórico - e pela subjetividade e tanto uma como a outra se amalgamam para formar aquilo que somos; não quero discutir aqui como se dá ou o que é a subjetividade, se ela pode ser entendida como um ente substancial ou se é somente uma categoria auto referente do próprio entendimento; não sou especialista para tanto. Só sei que há uma ponte entre a história e a subjetividade e essa ponte é a memória.
Memória é percepção do tempo: arquivamos numa ordem própria, única e particular, as lembranças dos acontecimentos, simulamos nossa própria linha do tempo para assim constituirmos nossa história. Alguém deve ter dito que a memória é uma categoria do ser, pois ao organizarmos o tempo através da lembrança seletiva nossa consciência reconstrói nossa integridade; memória é também lutar contra o tempo e afirmar o ser. Afirmando nossa passagem pelo tempo, afirmando nossas marcas de subjetividade e historicidade sobre a matéria dialética do tempo, transcendemos a sucessão e semantizamos o passado: memória também é futuro.
As pessoas têm memória e, portanto, têm histórias. Lembro-me das vezes em que conversava com uma tia, Francisca, também chamada de Francisquinha - e também de Quinha, alcunha carinhosa que nós, seus sobrinhos, usávamos -, de perguntar para ela a respeito das famosas secas que já haviam assolado o Ceará - tamanha era minha curiosidade, enquanto criança, em procurar entender aquilo que para mim era um passado mítico: eu nasci em 1972, minha tia em 1912, ou seja, quando eu nasci ela tinha 60 anos. Na época dessas conversas eu deveria ter uns 7, 8 ou 9 anos, e não sabia - só hoje eu percebo -, como aquelas perguntas incomodavam-na, porque traziam à tona lembranças que com certeza ela queria esquecer; mas mesmo assim ela falava, mesmo daquelas secas das quais ela não tinha memória, mas das quais ficara sabendo através de sua mãe - minha avó - que presenciara outras tantas secas: Quinha falava da seca de 1923(?), mas também da seca de 1914/15, de triste memória, ou mesmo da seca de 1899, que sua mãe vivera; mas por trás das secas emergia, hoje eu vejo, a história de uma família que lutara ao seu modo para resistir às agruras da história, para superar os duros impasses criados pela natureza e aprofundados pelas mãos dos homens.
Ora, basta dizer que Quinha participou da Comunidade do Caldeirão, agrupamento de um socialismo utópico-messiânico que foi destruído pelas tropas federais a mando de Vargas no ano de 1934: ela fora testemunha ocular, não do massacre, mas dos dias luminosos da comunidade liderada pelo Beato José Lourenço.
Mas ela jamais saía falando de suas memórias: Quinha era uma velhinha metódica, de disciplina espartana, algo às vezes severa: diabética desde a juventude, aprendera a se privar dos prazeres da mesa, mantendo uma dieta rígida até o fim da vida; nascida numa família grande, filha mais velha de um grande clã, aprendeu também a se privar dos amores e passou a vida a cuidar de irmãos e sobrinhos. Mas tinha uma sóbria dignidade e uma rigidez moral comum a quem vivera em épocas tão duras, onde a vida era constantemente ameaçada pela morte através da fome, da violência - do cangaço, dos coronéis, do governo, do próximo -, e onde ao mínimo deslize uma mulher já era considerada prostituta. Ela tinha memória. Ela era uma pessoa, não era um número, não era algo amorfo, pronto para ser moldado. Sua experiência histórica e às vezes sua rigidez levaram-na a ações equivocadas: mas ela tinha uma história e era a memória coletiva da família.
Todos nós temos uma história: nossa vida é uma história em processo; a diferença é que para alguns de nós - me incluo nessa categoria - a história não é simplesmente uma coletânea de lembranças, um feixe de memórias, mas uma história que estamos escrevendo, uma história em curso, em processo, onde lutamos contra os acidentes, o acaso e o tempo para construirmos nosso próprio sentido: nossa história é um exercício de liberdade.
Lendo um livro de Trotsky chamado Lições de Outubro, ele insiste, repetindo as palavras de Marx, que a insurreição é uma arte, ou seja, há um elemento não previsível, que não pode ser determinado cientificamente, dentro da própria história, mas que também, como arte, pode ser exercitado, apreendido, e fica claro, no livro de Trotsky, o papel fundamental de Lênin como elemento catalisador do Partido Bolchevique e nesse papel não há como separar aquilo que foi sua historicidade e aquilo que foi sua subjetividade: o sujeito Lênin aparecia como único, mas era um híbrido dessa dupla natureza.
No livro A Pesquisa em História, as autoras afirmam que, assim como a opressão se dá em diversos níveis - não só no econômico, mas também no ideológico, no social, etc -, assim também há diversas maneiras de resistir e lutar contra o opressor.
Às vezes lutamos inconscientemente contra a opressão, movidos que somos por uma consciência intrínseca de valor oriunda de uma classe ou do meio, e que nos diz que certas condições são indignas da nossa liberdade enquanto sujeitos. Mas quando lutamos conscientemente, é uma maneira de afirmarmos nossa liberdade, o fato inexorável de que fazemos a nós mesmos, pixamos o muro do futuro; enfim, dizemos um grande não ao vácuo do tempo e às formas de opressão: é a maneira de afirmarmos nossa liberdade e dizermos: somos pessoas.

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom esse tópico, até tive vontade de retomar o meu blog rssss

O que eu acho de melhor na sua escrita é a forma que você utiliza pra contextualizar a teoria que você sabe com as lembranças da sua vida somado tudo à história propriamente dita, das pessoas e de pessoas...

E eu acredito que o que determina a ação das pessoas é a paixão que elas tem por algo... Nós podemos até agir sem certeza e sem esperança, mas nunca sem paixão (minha opinião, sujeita a contestações hauhaua)

Beijos!

Anônimo disse...

Senhore Gledson, vc como sp extremamente perspicaz, rs... e como sp escrevendo maravilhosamente, um dia eu cresço e vou conseguir escrever assim, rs...
Mas me encontrei principalmente com o final da sua reflexão, pq estar fazendo o curso de História hj é pra mim um gde grito contra a opressão. Opressão deste sistema que é tão difícil de se libertar, pq sp estão te apontando e dizendo que vc está no caminho errado.
Concordo com a Vivi e tb acredito que seja a paixão q move as pessoas, se não tds, pelo menos as que buscam uma realização pessoal.
Bjs, Su