27 dezembro 2007

Fim de Ano III

Transcrevo, abaixo, a última página do livro O Anticristo, do Nietzsche. Nunca deixei dúvidas quanto ao meu próprio anticristianismo, mas às vezes é bom falar de todo mal que veio desse solo nefasto: basta lembrar que nosso modelo de civilização -eurocêntrica-, é cristão e foi esse modelo que nos trouxe aonde estamos agora: à beira do abismo. As igrejas estão sempre afiando suas garras e tentando manter a humanidade num estado de permanente idiotia, num permanente autismo espiritual: o grande salto de tigre é um salto no reino do espírito, sem deus, mas com inúmeras possibilidade humanas e além humanas. Mas é preciso sepultar, com terra nova, os produtos espúrios de dois mil anos de ignorância, atraso e cegueira.


Do AntiCristo - de Nietzsche

Lei Contra o Cristianismo

Com data do dia da salvação, primeiro dia do ano Um (em 30 de setembro de 1888, pelo falso calendário)

Guerra mortal contra o vício:o vício é o cristianismo

Primeira Proposição:
Viciosa é toda forma de ir contra a natureza. A forma humana mais viciada é o sacerdote: ele prega a contradição da natureza. Contra o sacerdote não há razões e sim cadeia.

Segunda Proposição: Toda participação a um serviço religioso é um atentado à moralidade pública. Deve-se agir com mais rigor contra protestantes do que contra católicos, mais rigorosamente contra protestantes liberais do que contra os de fé sólida. Entre as massas, quanto mais próximo se está da ciência, mais criminoso se torna ser cristão. Conseqüentemente, o criminoso dos criminosos é o Filósofo.

Terceira Proposição: O solo amaldiçoado onde o cristianismo chocou seus ovos de basílicas deve ser destruído pedra por pedra, tornando-se o lugar mais infame da terra, o terror de toda posteridade. Deve-se criar cobras venenosas nesse lugar.

Quarta Proposição: A doutrina da castidade é uma instigação pública à contradição da natureza. Todo desprezo à vida sexual, toda tentativa de contaminá-la através do conceito de "impureza" é na verdade o próprio pecado contra o espírito sagrado da vida.

Quinta Proposição: Comer à mesa com um sacerdote é proibido: dessa forma excomungá-lo-emos da sociedade honesta. O sacerdote é nosso Tschandala, temos de expulsá-lo, deixá-lo morrer de fome, impelí-lo para alguma forma de deserto.

Sexta Proposição: Deve-se chamar a "sagrada história" pelo nome que merece, de história maldita; devem-se usar as palavras "Deus", "terra da promissão", "redentor", "santo", como xingamentos, como epítetos de criminosos.

Sétima Proposição: O resto virá por si só.

26 dezembro 2007

Fim de Ano II

2007 foi um ano bom. 2008 será ainda melhor. A todos, meus abraços e o anelo de que consigamos muito mais de vida e felicidade o ano que vem.

Fim de Ano

RECADO:
Às vezes confundo pessoas com arquétipos.

13 dezembro 2007

Benjamin e Bertolucci Sob o Céu Que Nos Protege


P/ Pablo e Rosângela - Que assistiram o filme

Walter Benjamin, nas notas preparatórias às Teses Sobre O Conceito da História, fala que as revoluções, no lugar delas serem as locomotivas da humanidade, que elas são provavelmente o freio da história, que as revoluções vêm abortar o caminho do progresso, que nos levaria não a futuras evoluções, mas sim a um confronto inevitável com a barbárie.
Benjamin inverte a imagem comum do progresso como uma locomotiva que caminha para a frente ao melhor dos mundos possíveis: o progresso passa a ser então representado como uma locomotiva descontrolada que conduz à barbárie; ainda a imagem da locomotiva, mas uma locomotiva condenada ao desastre, à catástrofe, ao confronto com o abismo ou ao choque com as forças históricas destrutivas mobilizadas pelo próprio progresso.
A crítica de Benjamin, que de certa forma inverte o raciocínio marxista, de que as revoluções, ou a revolução, sejam uma consequencia do desenvolvimento das forças produtivas - o que é uma visão progressiva da luta de classes - é uma crítica também à modernidade: o progresso é a razão de ser da própria modernidade; sobre o progresso a modernidade construiu as bases de seu discurso; sobre a idéia do progresso a modernidade afirmou sua identidade, se construiu frente ao passado, apontou caminhos de continuidade para seu processo vertiginoso em direção a algum lugar - que se revelou ser lugar nenhum.
Um dos efeitos colaterais da sociedade capitalista, principalmente da modernidade capitalista, foi o esvaziamento das relações humanas, a mecanização dos afetos e a massificação do tédio, tão bem percebido por Baudelaire em alguns poemas de As Flores do Mal. A atomização dos sujeitos, a despotencialização das interioridades dos indivíduos são tantos outros efeitos colaterais. As pessoas isolam-se em suas redomas sociais e dentro de suas redomas sociais isolam-se em seu próprio vazio:o mundo capitalista é o mundo da quase absoluta incomunicabilidade; é uma alegoria kafkiana.
Bernardo Bertolucci também é um crítico feroz da sociedade burguesa e das relações marcadas pelo conformismo: quem assistiu O Último Tango em Paris sabe o que estou dizendo. Mas, para mim, onde ele faz uma das maiores críticas à sociedade burguesa e ao ideal de progresso é no filme O Céu Que Nos Protege, baseado no livro do escritor norteamericano Paul Bowles.
O filme conta a história de um casal norteamericano - ele, compositor de música erudita; ela, escritora -, que resolve viajar até o Marrocos numa tentativa de ressuscitar, retomar uma relação que mostra-se desgastada, e junto com o casal vai um amigo, que revela-se um obstáculo para a retomada da paixão amorosa.
Já na abertura do filme, enquanto o letreiro vai passando, vão sendo mostradas imagens da New York dos anos 40 - época em que se passa o filme -, com direito a todos os ícones do progresso: fornos elétricos, máquinas de lavar, cidade moderna, casais dançando, distribuição de peixes no mercado... enfim, amostras do cotidiano moderno e progressivo da América; já no fim da abertura, a última imagem a aparecer é a de um navio que se afasta lentamente da baía de Manhattan, como a se despedir de todo esse mundo moderno.
A viagem de Port e Kit Moresby - o casal em crise -, é um afastamento consciente da modernidade, dos valores burgueses; o destino, o Marrocos, a África bérbere; depois, a África negra. A tomada seguinte à abertura é que mostra os viajantes chegando ao Marrocos, ao som de uma música árabe: a paisagem que se vê é o oposto da asséptica paisagem nova iorquina, é o outro, o não moderno.
Mas o que nos interessa, num primeiro momento, é a cena em que, instalados num restaurante de Casablanca, Port, Kit e o amigo conversam; Port começa a contar, sob a forte oposição de Kit, o sonho que tivera na noite anterior. No sonho, ele estava num trem que corria célere em direção a uma montanha de lençóis, contra a qual o trem vai se chocar. Port fala que quebra todos os dentes,que pareciam de gesso e começa a chorar, ele conta, terríveis soluços de sonhos, que se ouviam à distância. Quando Port está a contar, todos do restaurante param para ouví-lo, como se o sonho dissesse respeito a todos e a cada um deles.
O sonho de Port nos interessa duplamente e nos parece que ele tem uma dupla função: ele anuncia o destino de Port - o trem que corre infindavelmente para um beco sem saída - e é ao mesmo tempo uma alegoria do progresso e da modernidade, que conduz todos à catástrofe; progresso do qual Port tenta fugir, modernidade a qual ele quer esquecer. Pois é disso que trata a viagem à África: a busca de uma reconciliação amorosa através do esquecimento da modernidade, da civilização: pois quando Port percebe que Kit, sua mulher, teve ou está tendo um caso com o amigo que veio com eles - Turner, um milionário americano típico, representante perfeito do american way of life -, Port cada vez mais adentra no território africano, até morrer de tifo num forte da Legião Estrangeira no meio do deserto do Saara.
As analogias entre o pensamento de Benjamin e sua representação do progresso como uma locomotiva desgovernada que nos conduzirá à catástrofe e o sonho de Port, no filme do Bertolucci, são mais que pertinentes: na sequência do filme, após a morte de Port, Kit segue com uma caravana bérbere pelo deserto, e encontra o tipo de sociedade primitiva que, segundo Michael Lowy, Benjamin achava que tivesse precedido o Estado e as sociedades de classes; as relações nessa sociedade são outras - Kit encontra uma sexualidade pura, primitiva e sem culpas, justo ela que se preocupava com o que diria a costa leste quanto ao sonho de Port.
A imagem do sonho de Port - o desastre do trem, que é também o desastre da civilização e da sua própria vida -, se contrapõem às imagens do mundo que Kit encontrará. Contra a arquitetura das linhas retas de Nova York, as curvas das dunas; contra o jazz, o bebop e o swyng, cantos bérberes e transe estático; contra Port, expressão máxima da civilização da qual ele mesmo quer fugir, o bérbere anônimo, que sem cerimônia faz a corte à Kit.
Port sonha, prevê sua própria desgraça ao sonhar com o trem que se chocará com as montanhas. Como falei, ele é um representante da civilização que ele nega:branco, norteamericano, compositor de música erudita; por isso que ele é tão crítico, ele conhece os valores que ele rejeita. A imagem do sonho é a imagem do nosso próprio destino enquanto civilização, por isso que quando Port começa a contar o sonho, todos param para ouví-lo, pois aquele é o destino comum a todos os que estão ali: ou verem o choque do trem com o futuro ou tentarem mudar o curso da história.
Após a morte de Port - o choque do trem -, Kit segue uma caravana bérbere e com eles vai passar a viver: uma comunidade onde o dinheiro não importa, onde as relações têm um caráter primitivo - no sentido de puro -, uma sociedade pré-capitalista, tal como as idealizadas por Walter Benjamin e descritas por Bachofen. A viagem de Kit é uma viagem em direção ao passado: à medida em que ela se afasta da civilização, ela penetra numa sociedade que é quase uma encarnação de um inconsciente histórico: relações baseadas no parentesco, à base de trocas, onde o dinheiro não é o determinante das relações sociais. Kit se dirige ao mundo que Port procurava, não ela.
A narrativa de O Céu Que Nos Protege é uma das mais belas da história do cinema: as tomadas panorâmicas, os planos longos, a música melancólica, as paisagens deslumbrantes, ajudam a contar essa que é uma história de amor e de busca de si mesmo. Port procura reencontrar o amor de Kit, ao mesmo tempo que procura se afastar da modernidade, do progresso. Ele procura pular do trem do progresso, evitar a catástrofe, que acaba se consumindo em sua própria morte.
Nós, indivíduos, que somos também sujeitos históricos, nós não podemos pular do trem da história: nossa historicidade está colada a nós como uma pele, a qual, se arrancarmos, expõe nossas vísceras e nos deixa à morte. A única direção na qual podemos caminhar é a do futuro: nos apropriamos do passado como um feixe de lembranças - revolucionárias ou não -, que nos servem como uma alavanca; nossa matéria é o presente, mas nosso ideal é o futuro.
Quando Kit aparece, já no fim do filme, como alguém que está saindo de uma crise de loucura, com tatuagens nas mãos e nos pés, é a imagem de alguém que tentou pular para fora da história, de sua própria história, e, é claro, não conseguiu; ela perde sua identidade, ao tentar encontrar um sentido para tudo o que ela passou.
Não li o livro do Paul Bowles, que deu origem ao filme, e nem quero dizer que foi intencional, da parte do Bertolucci, se utilizar dessa metáfora benjaminiana: mas os paralelos são pertinentes e todo o filme vai sendo construído em torno dessa metáfora da viagem do trem, que é a imagem também de um distanciamento, mas que leva a uma catástrofe; também o distanciamento do mundo vazio da civilização, essa gaiola de ouro que nos prende com seus visgos: basta lembrar que Kit voltará para a civilização, apesar de tudo. Acho que não é à toa quie Kit tem medo da viagem de trem, como se o trem fosse o anunciador da desgraça.
Mas é uma dramática história de amor e sexo. Uma das mais belas cenas românticas que já vi, é a cena em que Port, à beira da morte, diz que só agora via que toda a razão de sua vida era amar Kit, e que tudo que fazia era por ela: essa cena tem uma carga dramática muito grande, porque mistura amor e morte, eros e tanatos estão unidos no coração de Port.
II
A imobilidade do céu é o símbolo da própria natureza atemporal, desse locus que permanece frente ao universo dinâmico da cultura; a natureza é uma constante, ainda que não o seja em relação a ela mesma. O céu que nos protege é a natureza imóvel frente à modernidade, é o elemento fora das turbulências da civilização e também das turbulências dos sujeitos.
O filme inteiro é de uma beleza pungente: os diversos elementos se combinam de modo perfeito - os estados interiores das personagens, as paisagens, o ambiente - , a fuga e ao mesmo tempo, busca, de Port, tentando (re)encontrar o amor e se afastar da civilização, o encontro de Kit com uma sociedade quase atemporal e com uma natureza que é, frente à civilização, uma permanência e, ao mesmo tempo, um refúgio. Aliado a esse discurso,uma trilha sonora excepcional, que reforça a sensação de estar fora do tempo, pular para fora da história. Sem falar na atuação excepcional de John Malkovich e Debra Winger.
Walter Benjamin, de maneira brilhante, fez a crítica da modernidade e, em suas Teses Sobre O Conceito da História, criticou a noção de progresso, apontando a saída revolucionária como um salto para fora dos trilhos do progresso, unindo dialeticamente o passado e o futuro dos oprimidos através desse corte na história que a revolução representa; Bertolucci também nos apresenta um salto para fora da história, através dessa fuga, do afastamento do vazio da civilização feita por Port e Kit, numa tentativa desesperada de encontrarem um sentido para suas vidas.
Porque sob o céu que nos protege, só nós podemos encontrar e construir o sentido das coisas, seja através da redenção revolucionária ou da fusão erótica-amorosa, vias transformadoras capazes de fazerem com que a roda da história gire a nosso favor, seja sob a trilha acidentada do tempo, sobre as areias de um deserto ou sob um céu que nos guarda de todas as mazelas.



09 dezembro 2007

3 Poemas

Aurora Austral

Porque o amor explode em vácuos arrebóis e manhãs

não procurarás a salvação dos mortos vivos

não comerás dos festins macabros

te aguarda: a manhã selvagem

teus olhos irrompem na cortina das nuvens

a hera dos meus dedos se dissolve em ti


Seremos mar subterrâneo, tambores nas dunas


Amor, amor é faca de destino na garganta

a libertar

os pássaros da manhã.


______________ P/VItoriazinha

Esquecendo os símbolos

quando você nasceu o dia não se pôs

parece simples demais comemorar a vida

celebramos muito mais

demiurgos secretos trabalhavam

no ventre secreto de tua mãe

devas para os cabelos e a língua

gnomos para as unhas

nereidas para o sangue

silfídes para os pulmões

elaboravam de um estranho caos

um novo ser

havia música lá dentro

e música aqui fora

tentativas barrocas em flautas doce

que faziam você se agitar como um duende

o ventre-bolsa-de-canguru oscilando

pés,mãos,pernas

pequena baleia no aquário

quando você nasceu

trazia um sol

quando você nasceu fomos

heróis de um romance a escrever.


____________ P/Ariadne

Olhando o mar que não vi

posso dizer

que ter você

bolinha amorfa a tomar leite

era como ver o mar

crisálida de alma

crisálida de carne

sorria às vezes

séria como Buda


As maquinações dos hospitais

a insanidade dos homens vestidos de branco

os vampiros sanitários

a todos vencestes

em duras batalhas

como Sita na floresta

Rama depois do exílio, tu voltavas

mais forte

terna menininha nua

rosto de flor


quando sorris agora

também abro asas e vôo

atrás de ti.


01 dezembro 2007

Dias de Razão


Nasci em dias de razão

só eu estava louco, sentia

em todas as coisas um hálito de morte

tudo era eficiente demais

as plantações, os massacres, as prostitutas

os remédios, as prisões, os hospícios

as guerras eram limpas

a medicina era sala de estar para o tédio

só os cadáveres se escondiam no porão


Eu era sujo, burro às vezes

burro quase sempre

o mundo era um jogo de xadrez

mas eu não sabia xadrez

só tinha certeza do sorriso das mulheres

dos ventos nas marés

também das cores no entardecer

do cheiro das frutas, das estrelas


eu não era eficiente

mas via a manhã se erguer sobre os edifícios.

10 novembro 2007

O Labirinto do Fauno - Um exercício de crítica

Esse texto texto é um exercício de crítica, mais propriamente falando, uma critica sobre o Labirinto do Fauno, não tanto em sua parte cinematográfica, mas em seu conteúdo, ou seja, não tanto em sua forma, ainda que ambos estejam diretamente correlacionados.
Porque o Labirinto do Fauno, desde a primeira vez em que o assisti, me impressionou pela quantidade de elementos simbólicos presentes no filme, bem como pela interação entre esses elementos e aquilo que é o plano concreto em que a história se desenvolve. A história é simples: uma menina, órfã de pai, se muda com a mãe para uma casa de campo onde próximo há um labirinto antigo; sua mãe se casou com um capitão fascista - estamos na Espanha no ano de 1944 - e a pequena Ofélia vai enfrentar os dilemas do mundo adulto, o clima de guerra - seu padrasto, o Capitão Vidal , tenta destruir um foco de guerrilha - ao mesmo tempo em que descobre, no labirinto, um fauno que lhe diz que ela é uma princesa do mundo subterrâneo, e que ela terá de passar por três provas para ver se ela não perdeu sua essência. Em suma, essa é a história.
Mas os elementos simbólicos da história ampliam a tensão dramática, porque a cada evento do mundo material, daquilo que aparenta ser o real, há outro ou há uma correspondência no outro plano da existência.
A começar pela ideia do labirinto: o labirinto é um símbolo complexo e antigo. Associado sempre à figura do labirinto de Creta e da lenda do Minotauro, o símbolo do labirinto era associado também ao mundo dos mortos e à senhora do labirinto, Ariadne. A imagem do labirinto aparecia também nos túmulos, e há uma clássica imagem do labirinto da cidade africana de Hadrumentum, onde sobre um túmulo foi desenhada a figura de um labirinto onde no centro há um Minotauro agonizante, e em um dos lados, um navio, e a inscrição hic inclusus vitam perdit, quem aqui entra perde a vida, associando o meandro, o labirinto, com uma passagem para um outro mundo, e a morte como uma viagem.
Logo no início do filme, Ofélia acha uma pedra que é o olho de uma escultura, espécie de quebra-cabeça e mensagem do universo em que ela vai entrar. A descida ao centro labirinto é, assim uma condição para que Ofélia reencontre sua verdadeira natureza. Porque no centro do labirinto há um portal para o outro mundo, para o reino subterrâneo, de onde ela saiu há muito tempo e onde ela é a princesa, filha do rei do mundo subterrâneo.
Entre os dois mundo vai se desenvolvendo uma tensão dialéctica, cheia de opostos e contradições: aqui, Ofélia é uma órfã de pai, submetida à autoridade despótica do padrasto; no outro mundo ela é uma princesa ardentemente esperada pelos seus pais; cada prova pela qual ela passa significa um contato com a sujeira, com a morte, com a negação: quando ela passa na primeira prova, em que ela tem que recuperar uma chave que está no estômago de um sapo, ela entra em contacto com insetos, se suja de lama, barro, baba de sapo, enfim, com um lugar sujo, subterrâneo, de onde ela resgata uma chave dourada; na segunda prova, é a morte espelhada no terrível homem pálido, imagem mesma da materialidade absoluta, ao ponto em que seus olhos ficam na palma da mão - ou seja, aquele que é um dos sentidos mais sutis, espiritual, está deslocado, misturado ao sentido mais brutal, mais animal, que é o tato - e na terceira prova, o sacrifício, a negação de si mesma em nome do pequeno irmão. E para cada prova, para cada vitória, representa um avanço para ela no outro plano, no outro mundo.
São iniciações, mas a própria vida da Ofélia é uma iniciação, o tempo todo.
Então temos: descida ao labirinto para encontrar a si mesma; o fauno como conselheiro ou guru, a renúncia de si como condição sine qua non para avançar espiritualmente.
A imagem do fauno como conselheiro, como guia, é emblemática. Porque o fauno é a imagem da própria natureza, das forças instintivas da psique, que conduzem até um limite, até o limite em que a consciência passa ser parte ativa do processo espiritual e pode então escolher o caminho a tomar. É o que acontece com Ofélia: desde o primeiro momento, ela obedece aos conselhos e pedidos do fauno, mas sempre desconfiando, porque a natureza dele é estranha - porque as forças instintivas inconscientes são realmente estranhas para nós, para nossa estrutura consciente. Mas ela se deixa levar , porque realmente o fauno é a representação de uma força interior, nossa ligação com a terra, as forças psíquicas, que são nada mais nada menos que manifestação da própria natureza em nós.
Não somos somente sujeitos sociais, somos também sujeitos naturais, com uma psique que é nossa principal herança da natureza.
Mas a vida também exige escolhas conscientes: podemos nos deixar levar por essas forças, que se manifestam como intuições fulgurantes, às vezes amores fulminantes, iluminações, inspiração, ou seja, sempre como forças que nos são interiores mas que nos parecem exteriores porque não estão sob nosso controle, até o ponto em que essas manifestações vão exigir de nós a escolha consciente.
Por isso que a imagem do fauno é ambígua o tempo todo, não sabemos se ele quer realmente o bem de Ofélia ou se ele está a usá-la para outros propósitos, não porque ele em si seja mal, mas porque nosso ego o sente assim, nossa racionalidade desconfia dessas forças. Naquele que é um dos momentos mais bonitos do filme, quando Ofélia, só, a mãe já faleceu e o capitão Vidal a ameaça de morte - ela está trancada num quarto e chora sozinha, o fauno chega e ela corre para abraçá-lo, porque naquele momento ela se sente esgotar, sente perder suas forças, por conta de tanto sofrimento.
Isso é que torna o filme tão dramático e ao mesmo tempo tão belo, porque os dois planos da existência, aquele da interioridade e o outro do mundo social e histórico, se cruzam de maneira violenta, exigindo da pequena Ofélia seu corpo, sua alma, seu tudo: Ofélia é crucificada no tempo e renasce na pura interioridade: naquela cena que não posso evocar sem sentir uma grande emoção, quando, renunciando sua condição de princesa para preservar a vida do irmão, ela entrega o irmão ao padrasto e depois é assassinada por este, naquela última cena, quando o sangue escorre pelas suas mãos e ela está caída ao solo, ela acorda no outro mundo, e lá seu verdadeiro pai e sua verdadeira mãe estão a aguardá-la, porque ela passou na última prova, ela renunciou à própria vida pela vida do irmão, e há um trono à sua espera, onde ela completará uma trindade: pai, mãe e filha. É uma cena de uma beleza comovente.
A história é sempre social, não há como fazer uma história da interioridade; mas o sujeito histórico sente a história em toda a sua dramaticidade, como uma clivagem entre o dentro e o fora, como uma luta para conciliar o mundo interior com o exterior, pela busca de uma totalidade do sujeito que em si é uma impossibilidade, assim como é uma impossibilidade a perfeição, porque nossa vida será sempre incompleta e transitória, mas é a busca pela perfeição e pelo absoluto que nos leva a encontrar na vida sua tragicidade e seu sentido: a eterna incompletude, a eterna busca que torna a vida uma chave para os sentidos, que só se revelam em plenitude com a própria morte.
O filme é muito belo; não é um cinema de vanguarda, mas um filme completo esteticamente, de uma narrativa sóbria, de grande equilíbrio, cheio de um forte tônus emocional. Não sei até que ponto o diretor Guillermo Del Toro tem consciência de todos os elementos simbólicos do filme, porque há elementos da alquimia, há elementos de uma simbólica iniciática e há um diálogo entre esses diversos símbolos. Sei que ele vislumbrou cada detalhe desse labirinto, do roteiro à direção, da produção ao figurino, ele participou de tudo, se envolveu com tudo, e fez, assim, uma obra prima genial, um dos grandes filmes desse início de século XXI, como se dissesse que o cinema ainda vale à pena. Quem tem ou teve curiosidade, pode visitar o site www.panslabyrinth.com e acompanhar toda a elaboração do filme, além de poder ouvir a trilha sonora, que é belíssima.
Enfim, é um filme que vale à pena ver, como realização artística, como elemento discursivo, como algo mais que cinema, pelo prazer de encontrar uma obra que dialogue tanto com a vida.
Esse é somente um esboço de ensaio, porque voltarei a ele numa análise mais complexa da sua simbologia alquímica.
Fica somente a certeza de que a vida é mais do aquilo que nos acontece socialmente, que a interioridade, nosso espaço íntimo, nosso mundo interior, é a porta por onde podemos compreender e superar o mundo; e também a outra certeza, de que estamos frente a grande filme, do qual não conseguiremos esquecer.

02 novembro 2007

Príamo

Ainda, Príamo

os poetas lamentam por Heitor

os homens estão sós pelas florestas

saem a noite procurando um caminho

tudo é escuro, tudo é imenso

os homens estão sós

lançam dados, consultam o fogo

pensam numa justiça infindável

aproximam-se de abismos, tecem infinitos

os deuses derrubam muralhas

os homens estão sós em pequenas jaulas, nos automóveis

canibalizam a esperança

Sim, Príamo

os poetas lembram de ti e de Heitor

nossa solidão é cósmica

a rota que traçamos

de um a outro cosmos

é árdua de fogo e sal

algumas vezes fundamos cidades

outras contemplamos

a chama de nossas esperanças

os homens estão sós, Príamo

os deuses também.

19 outubro 2007

Os Aforismos de Pan - IV

Precisamos tecer nosso próprio casulo e nos dissolver: se a morte que ali acontece tem um cheiro estranho, a ressurreição cheira a flores.

Nada indica melhor uma consciência vegetal do que a conformação das flores: o acaso, nem a necessidade as fariam tão belas, e tão úteis ao ser que as possui.

É impossível ser inteiramente humano enquanto houver o medo. Nossa essência real é uma vela sobre o mar, aguardando o vento do espírito, sem temer para onde ele possa soprar e levar.

A verdadeira terra prometida é a pura interioridade.

A ação livre é amoral; o ser livre também, ainda que pague um preço por isso.

A memória de uma pedra é o que garante sua integridade e coesão. Não houvesse memória, tudo se dissolveria.

O que une átomos, moléculas e outros, a não ser o amor ? O universo, sem Eros, não seria .

Orbitamos sempre em torno de certas imagens primordiais, anseios vagos, aos quais desconhecemos o sentido, e nossa vida, sem que o saibamos, na maior parte das vezes, é uma busca por essas imagens ou por o que elas nos pedem: atavismo do ser ?

Anseio pelas estrelas: o universo útero nos chama ?

Bem e mal não existem, são conceitos, e conceitos falsos; ainda por isso, é preciso combater o mal, pois há quem acredite nele.


Os Minidiscursos do Construtor de Horizontes

A palavra de alguém que se tornou estranho, que ultrapassou uma fronteira a qual ele não sabe ao certo qual foi, é como uma melodia inaudita, canto de sereia para quem não quer ouvir. De repente se percebe que ao seu redor assomou o vácuo, e o que ele fala é como a flor que brota no deserto: só lhe resta contemplar o sol e esperar seu fim, sua transfiguração em cinza e nada. Se há parceiros para quem tem como amante e amada a vida, só podem ser parceiros invisíveis. Sua solidão criadora o torna pária na terra de ninguém.


Ser profundo hoje em dia é quase um pecado, uma afronta. A profundidade é considerada uma petulância, uma intromissão num universo estranho ao corriqueiro e citadino. A profundidade é uma agressão ao viver, considera-se. Mas, viver não é exatamente ser profundo ? Procurar ir atrás de tudo o que se esconde, tudo o que é enigmático, procurar respostas ? Para uma civilização de superfície como a nossa, a profundidade é algo como um desafio e uma negação de seus pressupostos mínimos. Quanto a essa civilização, a verdade é coisa de mal-gosto. Mas é preciso ter esse mal-gosto.

A elaboração barroca da flor do cravo, suas pétalas felpudas e encrespadas sobrepondo-se mutuamente, a exuberância de suas formas escondem, por assim dizer, sua disposição clássica, de crescer centrifugamente, reproduzindo um núcleo original, uma matéria que, amorosamente acumulada, desabrocha num esplendor incontido de perfume e beleza. A condensação e concentração levam à abertura e expansão. Quando vemos um cravo plenamente desabrochado, com toda a exuberância de seus dobrados e contorções, saibamos que ali há um instante único, resultado de um labor lento: concentração. É preciso voltar-se sobre si mesmo, recolher-se, para poder se expandir.

O grande Pan não morreu. Ei-lo dançando ao sol do meio-dia, a mais frenética canção, pouco ligando se o tempo o sabe ou não, Eis-me aqui na folha caída do carvalho, no musgo sob a rocha, na gota de orvalho, nas escamas da asa do dragão. Os olhos esgazeados das mulheres lembram Pan quando na ânsia do amor eles brilham e parecem dizer, sou tudo, sou tua. Pan não morreu: nas encostas, nas escarpadas sendas dos grandes solitários, sua voz expande-se do pó das estrelas às cavernas mais distantes, sua voz ressoa na onda que bate na praia e diz - Pan.


O fruto da saudade germina sempre.

Certas brisas só anunciam a tempestade.

Há sinais também no tempo da nossa natureza humana: como a tempestade que se anuncia para a terra, como o turbilhão sobre o mar, a angústia no peito humano.

O olhar é o melhor mensageiro do amor.

Há que se adquirir a ciência de se ler o olhar.

Augúrio genuíno: ver o amor voar à direita de nós, tendo como asas só ele mesmo.

Só uma memória interessa: a memória primordial do ser. O resto é acidente.

Muitas vezes o coração fala: criptograficamente.

Há linhas de força que cruzam todo o planeta, mas há forças e forças, ascendentes e descendentes. Cuidai-vos com o lugar em que vos encontrais.

Sim, o instante traduz muito mais nossa interioridade do que a duração, a continuidade.
O instante revela.


A noite traz inquietude e solidão, mas os altos vôos do espírito também saem à noite.

Um milagre: conseguir sobrepor às fronteiras do si mesmo numa direção que às vezes não se sabe qual é.

Folhas ao vento: o tempo no silêncio.

Há estrelas no fundo de si mesmo. Auto-descobrir-se é uma viagem espacial.

À natureza, o passado só interessa como um elo para o futuro, nunca por si mesmo.

Crescer como puro oxigênio sobre a montanha mais alta, até explodir em: tudo.

Obra do acaso ou do gênio: encontrar um coração simétrico ao seu.

O espírito é uma ilha no oceano do ser.

É preciso perder a gravidade.

Os parses tributam ao fogo a encarnação do espírito da vida: e o fogo físico é a expressão externa, o envoltório fenomênico do fogo secreto que habita em todas as coisas.

A paisagem humana sofre de carência da beleza aparentemente assimétrica da natureza: onde impera somente a razão, a aridez domina o espaço.

Genialidade é dar a uma obra, mesmo que ela seja a vida, a aparência de é produto do acaso, de que forças e forças se acumularam até explodir nessa totalidade única que a obra é; dotar a obra dessa irregularidade assimétrica aparente, com a simetria real do fundo. Genialidade é ser anônimo.

A desordem do coração é aparente. O que supomos ali fora do nosso controle só não passou pelo crivo da razão: mas o ser sabe sua razão de ser, melhor que nós.

Procuramos uma lâmpada no mundo, não homens.

Certas aves cortam o céu com vôo e gritos. O grito pode ser a impulsão primordial da liberdade.
Flores raras ( em sonhos raros ) prenunciam o melhor de nós: floração do nosso maior esforço em sermos nós mesmos.


O homem é como um relógio desregulado: há um descompasso total entre seu instinto e sua mente, de modo que o que é natural nele é tolhido como anormal. A moral é um meio de justificarmos essa doença.

a voz do inaudito nos chama a cada manhã.

O amor é concentração indefinida.

Entre o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, a abstração homem.

12 outubro 2007

Uma Pausa No Pan

Do CADERNO DE JANO (Work In Progress)

X - Todo poeta é solitário. Ele vê os pêlos das flores de maio, ele vê a cópula dos pequenos insetos transparentes, ele vê o rosto do amor; e cada onda do mar, cada brisa, passam pelo seu coração, mas ele está só. Ele vê as tramas que erguem o dia, ele entende o canto dos sapos, lê o alfabeto dos musgos, ele escuta as vozes das meninas e sabe da cor do coral nos olhos das sereias, mas ninguém lembra que seu coração é uma arena e ele está só. Mesmo as palavras já não são mais companheiras, elas passam pelas suas mãos como matéria de fogo para novos poemas, mas logo ele está só, como uma sombra das palavras, como uma sombra dos amores, como uma sombra do nada. O poeta tem filhos, mas está só. O poeta tem esposa, pais, irmãos, mas está só. O poeta tem musa, mas está só. Só, como um número num mar de letras, como uma bandeira numa montanha tibetana; só, como um planeta escondido num eclipse, como uma onda que chega numa ilha que ninguém conhece. Como um casarão no meio de inúmeros edifícios. Como o oxigênio no céu de Saturno.
Não há ninguém que lembre do poeta. Só como alguém que tem esperança mas sabe, com o puro amor, que ninguém lhe ouvirá. Nem sua musa.
O poeta está. Como alguém que vem de uma terra inóspita. Como alguém que parte para o desconhecido.
O poeta está só. Sentado à beira do abismo, olhando estrelas.
Só.

05 outubro 2007

Os Aforismos de Pan - III

Nada é tão frágil e tão forte quanto o homem: um germe pode abatê-lo, mas há nele uma natureza de fênix, que o faz ressurgir sempre.

O coração é um órgão de um outro sentido, além dos cinco conhecidos, o sentido humano do todo: não ilações racionais nos ligando a outros entes, mas um sentir, uma percepção hiper-orgânica de que há um todo, de que assim como do coração partem veias e artérias que tornam o corpo um todo orgânico, também o é assim em relação aos seres, fios invisíveis ligam o macro e o micro, os seres, o coração do homem, dos animais e do cosmos. Há um sol em cada coração, há um coração em cada ser. O coração é a verdadeira flauta de Pan.

A morfologia animal revela o percurso pelo qual a espécie passou, mas revela também a assimilação dos mecanismos adaptativos e de defesa. É como a cabeça da barata doméstica, onde, vista por cima, se parece um grande olho, que deveria ter a função de afastar certos predadores. Como deve ter sofrido essa pequena criatura para poder chegar até aqui.

Viver é uma eterna auto-combustão. Somos cinza e chama. Sem fim.

Se o espelho reflete a nosa imagem, o reflexo do que somos, não há melhor espelho que o das águas: muito mais do que corpo, somos água, somos peixes em busca do nosso rio de origem.

Hipocampos cruzam prados de mar e traduzem a lição do sal: vida é transição.

A memória do amor tem sede no coração. Quando se ama, o coração espalha pelo sangue fragmentos do amor, da pessoa amada: uma palavra dita, um momento compartilhado, de modo que cada célula do corpo traz em si o rosto do amor. Quando lembramos de alguém que amamos, lembramos com todo o corpo.

O amor cresce no tempo. Diferente do caráter episódico da paixão, que se satisfaz com a consumação imediata, o amor cresce à sombra do tempo, das provações, das demonstrações ao longo da vida. O amor não teme o tempo.

Nada me causa mais repulsa do que o dinheiro. Bancos são como campos devastados por uma hecatombe nuclear : áreas estéreis onde a vida se recusa a nascer, onde a vida se recusa a entrar.

Foi uma quase vitória do capitalismo fazer crer que ele é somente uma consequência da natureza, fazer crer que o dinheiro é essencial para a civilização. Será uma vitória da inteligência provar o contrário.

O cosmos se desenvolve por expansão gnomônica: de um núcleo original partem as formas dos universos, reprodução desse núcleo primeiro em diferentes níveis e assim sucessivamente numa expansão contínua. A chave para a expansão gnomônica do cosmos é o aforismo de Hermes Trismegistos que diz: Tal como é em cima, é em baixo. É por isso que a proporção de água presente na célula, no corpo humano e na terra é a mesma, 70%, e é por isso que nos dedos trazemos as mesmas espirais das constelações: o homem é também um universo.

Quando o espírito se agita ainda há esperanças. O espírito só silencia quando sabe que nada pode realizar.


21 setembro 2007

Os Aforismos de Pan - II

Morre-se de fome, morre-se de sede; morre-se também de orgulho.

Felicidade da águia na hora da conquista: o que se devora, mais alto chegará.


Barulho do mar numa concha vazia: ilusão ? Não, nostalgia.


Felicidade de se esculpir lentamente. De si mesmo ser, o criador e a criatura.


Poucos homens procuram a verdade. Seu sabor acre os desagrada, e na verdade construímos nosso mundo sobre teias invisíveis de ilusão, de modo que tememos que o peso da verdade desfaça nossas suposições de aranha.


O amor é um pássaro, estranho, híbrido, mistura de terra e ar: seu maior vôo pode levar para dentro de si mesmo e pode-se ser desagradável consigo mesmo para se amar alguém. Voamos para buscar o sol para o outro.


Há um quantum muito grande de solidão quando se quer criar o próprio caminho, não por orgulho, mas porque sabemos que onde queremos chegar não há um caminho ainda que nos leve para lá.


Supõe-se que os mistérios se desfarão à medida que o conhecimento avance, e o que há é a cada avanço do conhecimento aparecerão novos mistérios. O mistério é inato à linguagem e à essência das coisas. Sua última fronteira.


Onirocrítica: as estrelas nos dizem que nossas melhores esperanças estão no nosso céu, nosso espaço interior. Tal como é dentro é fora.


Amanhecer: o sol desperta no canto dos bem-te-vis.


Nem todo silêncio é criador - a fala, a palavra, é que traz a epifania até o homem.


Faca-corte; corte-sangue; sangue-fuga; fuga-cicatriz; cicatriz-concentração; concentração-poesia.


Poesia, música silenciosa do fogo.


Sede tu, bode, nosso guia, à areia inominável da alegria.


É preciso criar dentro de si uma cápsula do não tempo, para em si mesmo, isolado, poder recriar o humano.


Poder das flores num campo de trigo: matéria não para o corpo, mas para o espírito.


A inimizade mais profunda e mais difícil, é a inimizade contra si mesmo.


Saber ser alegre é também um dom. A mais profunda alegria transparece num leve sorriso. Sempre.


Não há excesso de luz para quem dela se alimenta.


A cultura é um horizonte onde os pássaros humanos põem seus ovos de sóis e estrelas, que nem sempre brotam.

15 setembro 2007

Os Aforismos de Pan - I


Mil olhos vezes mil não alcançam a verdade.


Palavras não cruzam fronteiras de vidro.


Pan é um ponto com espirais periféricas. O ponto está em todos os lugares.


O corpo da mulher amada e o vinho têm o mesmo sabor.


A calêndula reproduz-se sol.


O sol, calêndula.


O mar, com sua voz, nos diz que além, além do tempo, algo permanece.


O passado não serve como mapa do futuro.


O futuro é um acontecer ai:presente realizado.


Nem a filogenia nem a ontogenia, mas a pangenia pode nos servir de guia para um futuro maior do indivíduo. E da espécie.


Os quasares, galáxias-antenas, bólidos celestiais, estrelas marinhas, não serão também mistérios no homem?


O limite do corpo nos diz aquilo que a alma não quis.


A maior liberdade é aquela alcançada nas contingências. A borboleta que morre ao atingir o fogo é mais feliz.


A mão do nada se insinua na angústia, mas quem move a mão é o ser.


Poesia, serpente que se auto-devora.


Não sabemos de nós o que devemos, mas o que queremos. Não queremos de nós o que devemos, mas o que sabemos.


Há aranhas que se lançam de montanhas ao vento e do vento ao nada. Alturas em que poucos homens conseguem chegar.


Sabedoria de poetas e grilos: cantar ao invisível.


A trama secreta do mundo é música. Mas é preciso silêncio para ouví-la.


Morremos aos poucos, desde o primeiro dia em que nascemos. Mas vivemos também a cada morte, minha ou tua: átomos primordiais que somos, espalhados no todo.


Há um porto onde Pan tem morada, mas aonde nem sempre o homem chega: o coração humano.