13 dezembro 2007

Benjamin e Bertolucci Sob o Céu Que Nos Protege


P/ Pablo e Rosângela - Que assistiram o filme

Walter Benjamin, nas notas preparatórias às Teses Sobre O Conceito da História, fala que as revoluções, no lugar delas serem as locomotivas da humanidade, que elas são provavelmente o freio da história, que as revoluções vêm abortar o caminho do progresso, que nos levaria não a futuras evoluções, mas sim a um confronto inevitável com a barbárie.
Benjamin inverte a imagem comum do progresso como uma locomotiva que caminha para a frente ao melhor dos mundos possíveis: o progresso passa a ser então representado como uma locomotiva descontrolada que conduz à barbárie; ainda a imagem da locomotiva, mas uma locomotiva condenada ao desastre, à catástrofe, ao confronto com o abismo ou ao choque com as forças históricas destrutivas mobilizadas pelo próprio progresso.
A crítica de Benjamin, que de certa forma inverte o raciocínio marxista, de que as revoluções, ou a revolução, sejam uma consequencia do desenvolvimento das forças produtivas - o que é uma visão progressiva da luta de classes - é uma crítica também à modernidade: o progresso é a razão de ser da própria modernidade; sobre o progresso a modernidade construiu as bases de seu discurso; sobre a idéia do progresso a modernidade afirmou sua identidade, se construiu frente ao passado, apontou caminhos de continuidade para seu processo vertiginoso em direção a algum lugar - que se revelou ser lugar nenhum.
Um dos efeitos colaterais da sociedade capitalista, principalmente da modernidade capitalista, foi o esvaziamento das relações humanas, a mecanização dos afetos e a massificação do tédio, tão bem percebido por Baudelaire em alguns poemas de As Flores do Mal. A atomização dos sujeitos, a despotencialização das interioridades dos indivíduos são tantos outros efeitos colaterais. As pessoas isolam-se em suas redomas sociais e dentro de suas redomas sociais isolam-se em seu próprio vazio:o mundo capitalista é o mundo da quase absoluta incomunicabilidade; é uma alegoria kafkiana.
Bernardo Bertolucci também é um crítico feroz da sociedade burguesa e das relações marcadas pelo conformismo: quem assistiu O Último Tango em Paris sabe o que estou dizendo. Mas, para mim, onde ele faz uma das maiores críticas à sociedade burguesa e ao ideal de progresso é no filme O Céu Que Nos Protege, baseado no livro do escritor norteamericano Paul Bowles.
O filme conta a história de um casal norteamericano - ele, compositor de música erudita; ela, escritora -, que resolve viajar até o Marrocos numa tentativa de ressuscitar, retomar uma relação que mostra-se desgastada, e junto com o casal vai um amigo, que revela-se um obstáculo para a retomada da paixão amorosa.
Já na abertura do filme, enquanto o letreiro vai passando, vão sendo mostradas imagens da New York dos anos 40 - época em que se passa o filme -, com direito a todos os ícones do progresso: fornos elétricos, máquinas de lavar, cidade moderna, casais dançando, distribuição de peixes no mercado... enfim, amostras do cotidiano moderno e progressivo da América; já no fim da abertura, a última imagem a aparecer é a de um navio que se afasta lentamente da baía de Manhattan, como a se despedir de todo esse mundo moderno.
A viagem de Port e Kit Moresby - o casal em crise -, é um afastamento consciente da modernidade, dos valores burgueses; o destino, o Marrocos, a África bérbere; depois, a África negra. A tomada seguinte à abertura é que mostra os viajantes chegando ao Marrocos, ao som de uma música árabe: a paisagem que se vê é o oposto da asséptica paisagem nova iorquina, é o outro, o não moderno.
Mas o que nos interessa, num primeiro momento, é a cena em que, instalados num restaurante de Casablanca, Port, Kit e o amigo conversam; Port começa a contar, sob a forte oposição de Kit, o sonho que tivera na noite anterior. No sonho, ele estava num trem que corria célere em direção a uma montanha de lençóis, contra a qual o trem vai se chocar. Port fala que quebra todos os dentes,que pareciam de gesso e começa a chorar, ele conta, terríveis soluços de sonhos, que se ouviam à distância. Quando Port está a contar, todos do restaurante param para ouví-lo, como se o sonho dissesse respeito a todos e a cada um deles.
O sonho de Port nos interessa duplamente e nos parece que ele tem uma dupla função: ele anuncia o destino de Port - o trem que corre infindavelmente para um beco sem saída - e é ao mesmo tempo uma alegoria do progresso e da modernidade, que conduz todos à catástrofe; progresso do qual Port tenta fugir, modernidade a qual ele quer esquecer. Pois é disso que trata a viagem à África: a busca de uma reconciliação amorosa através do esquecimento da modernidade, da civilização: pois quando Port percebe que Kit, sua mulher, teve ou está tendo um caso com o amigo que veio com eles - Turner, um milionário americano típico, representante perfeito do american way of life -, Port cada vez mais adentra no território africano, até morrer de tifo num forte da Legião Estrangeira no meio do deserto do Saara.
As analogias entre o pensamento de Benjamin e sua representação do progresso como uma locomotiva desgovernada que nos conduzirá à catástrofe e o sonho de Port, no filme do Bertolucci, são mais que pertinentes: na sequência do filme, após a morte de Port, Kit segue com uma caravana bérbere pelo deserto, e encontra o tipo de sociedade primitiva que, segundo Michael Lowy, Benjamin achava que tivesse precedido o Estado e as sociedades de classes; as relações nessa sociedade são outras - Kit encontra uma sexualidade pura, primitiva e sem culpas, justo ela que se preocupava com o que diria a costa leste quanto ao sonho de Port.
A imagem do sonho de Port - o desastre do trem, que é também o desastre da civilização e da sua própria vida -, se contrapõem às imagens do mundo que Kit encontrará. Contra a arquitetura das linhas retas de Nova York, as curvas das dunas; contra o jazz, o bebop e o swyng, cantos bérberes e transe estático; contra Port, expressão máxima da civilização da qual ele mesmo quer fugir, o bérbere anônimo, que sem cerimônia faz a corte à Kit.
Port sonha, prevê sua própria desgraça ao sonhar com o trem que se chocará com as montanhas. Como falei, ele é um representante da civilização que ele nega:branco, norteamericano, compositor de música erudita; por isso que ele é tão crítico, ele conhece os valores que ele rejeita. A imagem do sonho é a imagem do nosso próprio destino enquanto civilização, por isso que quando Port começa a contar o sonho, todos param para ouví-lo, pois aquele é o destino comum a todos os que estão ali: ou verem o choque do trem com o futuro ou tentarem mudar o curso da história.
Após a morte de Port - o choque do trem -, Kit segue uma caravana bérbere e com eles vai passar a viver: uma comunidade onde o dinheiro não importa, onde as relações têm um caráter primitivo - no sentido de puro -, uma sociedade pré-capitalista, tal como as idealizadas por Walter Benjamin e descritas por Bachofen. A viagem de Kit é uma viagem em direção ao passado: à medida em que ela se afasta da civilização, ela penetra numa sociedade que é quase uma encarnação de um inconsciente histórico: relações baseadas no parentesco, à base de trocas, onde o dinheiro não é o determinante das relações sociais. Kit se dirige ao mundo que Port procurava, não ela.
A narrativa de O Céu Que Nos Protege é uma das mais belas da história do cinema: as tomadas panorâmicas, os planos longos, a música melancólica, as paisagens deslumbrantes, ajudam a contar essa que é uma história de amor e de busca de si mesmo. Port procura reencontrar o amor de Kit, ao mesmo tempo que procura se afastar da modernidade, do progresso. Ele procura pular do trem do progresso, evitar a catástrofe, que acaba se consumindo em sua própria morte.
Nós, indivíduos, que somos também sujeitos históricos, nós não podemos pular do trem da história: nossa historicidade está colada a nós como uma pele, a qual, se arrancarmos, expõe nossas vísceras e nos deixa à morte. A única direção na qual podemos caminhar é a do futuro: nos apropriamos do passado como um feixe de lembranças - revolucionárias ou não -, que nos servem como uma alavanca; nossa matéria é o presente, mas nosso ideal é o futuro.
Quando Kit aparece, já no fim do filme, como alguém que está saindo de uma crise de loucura, com tatuagens nas mãos e nos pés, é a imagem de alguém que tentou pular para fora da história, de sua própria história, e, é claro, não conseguiu; ela perde sua identidade, ao tentar encontrar um sentido para tudo o que ela passou.
Não li o livro do Paul Bowles, que deu origem ao filme, e nem quero dizer que foi intencional, da parte do Bertolucci, se utilizar dessa metáfora benjaminiana: mas os paralelos são pertinentes e todo o filme vai sendo construído em torno dessa metáfora da viagem do trem, que é a imagem também de um distanciamento, mas que leva a uma catástrofe; também o distanciamento do mundo vazio da civilização, essa gaiola de ouro que nos prende com seus visgos: basta lembrar que Kit voltará para a civilização, apesar de tudo. Acho que não é à toa quie Kit tem medo da viagem de trem, como se o trem fosse o anunciador da desgraça.
Mas é uma dramática história de amor e sexo. Uma das mais belas cenas românticas que já vi, é a cena em que Port, à beira da morte, diz que só agora via que toda a razão de sua vida era amar Kit, e que tudo que fazia era por ela: essa cena tem uma carga dramática muito grande, porque mistura amor e morte, eros e tanatos estão unidos no coração de Port.
II
A imobilidade do céu é o símbolo da própria natureza atemporal, desse locus que permanece frente ao universo dinâmico da cultura; a natureza é uma constante, ainda que não o seja em relação a ela mesma. O céu que nos protege é a natureza imóvel frente à modernidade, é o elemento fora das turbulências da civilização e também das turbulências dos sujeitos.
O filme inteiro é de uma beleza pungente: os diversos elementos se combinam de modo perfeito - os estados interiores das personagens, as paisagens, o ambiente - , a fuga e ao mesmo tempo, busca, de Port, tentando (re)encontrar o amor e se afastar da civilização, o encontro de Kit com uma sociedade quase atemporal e com uma natureza que é, frente à civilização, uma permanência e, ao mesmo tempo, um refúgio. Aliado a esse discurso,uma trilha sonora excepcional, que reforça a sensação de estar fora do tempo, pular para fora da história. Sem falar na atuação excepcional de John Malkovich e Debra Winger.
Walter Benjamin, de maneira brilhante, fez a crítica da modernidade e, em suas Teses Sobre O Conceito da História, criticou a noção de progresso, apontando a saída revolucionária como um salto para fora dos trilhos do progresso, unindo dialeticamente o passado e o futuro dos oprimidos através desse corte na história que a revolução representa; Bertolucci também nos apresenta um salto para fora da história, através dessa fuga, do afastamento do vazio da civilização feita por Port e Kit, numa tentativa desesperada de encontrarem um sentido para suas vidas.
Porque sob o céu que nos protege, só nós podemos encontrar e construir o sentido das coisas, seja através da redenção revolucionária ou da fusão erótica-amorosa, vias transformadoras capazes de fazerem com que a roda da história gire a nosso favor, seja sob a trilha acidentada do tempo, sobre as areias de um deserto ou sob um céu que nos guarda de todas as mazelas.



2 comentários:

Unknown disse...

Assisti ontem a noite, pelo canal Futura, a este filme. Já havia assitido partes do mesmo, mas a história me causou um impacto profundo. Jamais poderia fazer esta analogia com Benjamim, pois nunca o li, mas a sensação de que o filme tem uma mensagem profunda me incomodou toda a noite. Seu texto esclareceu minha interpretação, pois nele encontrei o que buscava. Faltou-me a analogia do trem desgovernado. Muito obrigado pelo texto. Foi muito esclarecedor!

Conti-Bosso disse...

Caro Gledson,

Usei a sua análise sobre o Filme e W. Benjamin em meu mini-blog hospedado no blog do Nassif, e surgiu uma polêmica sobre a sua frase "Revolução como freio da história", ou história como freio da revolução.
Gostaria de entrar no debate?
Caso queira:
http://blogln.ning.com/profiles/blogs/o-ceu-que-nos-protege-de?commentId=2189391%3AComment%3A552460&xg_source=msg_com_blogpost

Abraços,
Conti-Bosso