19 outubro 2007

Os Aforismos de Pan - IV

Precisamos tecer nosso próprio casulo e nos dissolver: se a morte que ali acontece tem um cheiro estranho, a ressurreição cheira a flores.

Nada indica melhor uma consciência vegetal do que a conformação das flores: o acaso, nem a necessidade as fariam tão belas, e tão úteis ao ser que as possui.

É impossível ser inteiramente humano enquanto houver o medo. Nossa essência real é uma vela sobre o mar, aguardando o vento do espírito, sem temer para onde ele possa soprar e levar.

A verdadeira terra prometida é a pura interioridade.

A ação livre é amoral; o ser livre também, ainda que pague um preço por isso.

A memória de uma pedra é o que garante sua integridade e coesão. Não houvesse memória, tudo se dissolveria.

O que une átomos, moléculas e outros, a não ser o amor ? O universo, sem Eros, não seria .

Orbitamos sempre em torno de certas imagens primordiais, anseios vagos, aos quais desconhecemos o sentido, e nossa vida, sem que o saibamos, na maior parte das vezes, é uma busca por essas imagens ou por o que elas nos pedem: atavismo do ser ?

Anseio pelas estrelas: o universo útero nos chama ?

Bem e mal não existem, são conceitos, e conceitos falsos; ainda por isso, é preciso combater o mal, pois há quem acredite nele.


Os Minidiscursos do Construtor de Horizontes

A palavra de alguém que se tornou estranho, que ultrapassou uma fronteira a qual ele não sabe ao certo qual foi, é como uma melodia inaudita, canto de sereia para quem não quer ouvir. De repente se percebe que ao seu redor assomou o vácuo, e o que ele fala é como a flor que brota no deserto: só lhe resta contemplar o sol e esperar seu fim, sua transfiguração em cinza e nada. Se há parceiros para quem tem como amante e amada a vida, só podem ser parceiros invisíveis. Sua solidão criadora o torna pária na terra de ninguém.


Ser profundo hoje em dia é quase um pecado, uma afronta. A profundidade é considerada uma petulância, uma intromissão num universo estranho ao corriqueiro e citadino. A profundidade é uma agressão ao viver, considera-se. Mas, viver não é exatamente ser profundo ? Procurar ir atrás de tudo o que se esconde, tudo o que é enigmático, procurar respostas ? Para uma civilização de superfície como a nossa, a profundidade é algo como um desafio e uma negação de seus pressupostos mínimos. Quanto a essa civilização, a verdade é coisa de mal-gosto. Mas é preciso ter esse mal-gosto.

A elaboração barroca da flor do cravo, suas pétalas felpudas e encrespadas sobrepondo-se mutuamente, a exuberância de suas formas escondem, por assim dizer, sua disposição clássica, de crescer centrifugamente, reproduzindo um núcleo original, uma matéria que, amorosamente acumulada, desabrocha num esplendor incontido de perfume e beleza. A condensação e concentração levam à abertura e expansão. Quando vemos um cravo plenamente desabrochado, com toda a exuberância de seus dobrados e contorções, saibamos que ali há um instante único, resultado de um labor lento: concentração. É preciso voltar-se sobre si mesmo, recolher-se, para poder se expandir.

O grande Pan não morreu. Ei-lo dançando ao sol do meio-dia, a mais frenética canção, pouco ligando se o tempo o sabe ou não, Eis-me aqui na folha caída do carvalho, no musgo sob a rocha, na gota de orvalho, nas escamas da asa do dragão. Os olhos esgazeados das mulheres lembram Pan quando na ânsia do amor eles brilham e parecem dizer, sou tudo, sou tua. Pan não morreu: nas encostas, nas escarpadas sendas dos grandes solitários, sua voz expande-se do pó das estrelas às cavernas mais distantes, sua voz ressoa na onda que bate na praia e diz - Pan.


O fruto da saudade germina sempre.

Certas brisas só anunciam a tempestade.

Há sinais também no tempo da nossa natureza humana: como a tempestade que se anuncia para a terra, como o turbilhão sobre o mar, a angústia no peito humano.

O olhar é o melhor mensageiro do amor.

Há que se adquirir a ciência de se ler o olhar.

Augúrio genuíno: ver o amor voar à direita de nós, tendo como asas só ele mesmo.

Só uma memória interessa: a memória primordial do ser. O resto é acidente.

Muitas vezes o coração fala: criptograficamente.

Há linhas de força que cruzam todo o planeta, mas há forças e forças, ascendentes e descendentes. Cuidai-vos com o lugar em que vos encontrais.

Sim, o instante traduz muito mais nossa interioridade do que a duração, a continuidade.
O instante revela.


A noite traz inquietude e solidão, mas os altos vôos do espírito também saem à noite.

Um milagre: conseguir sobrepor às fronteiras do si mesmo numa direção que às vezes não se sabe qual é.

Folhas ao vento: o tempo no silêncio.

Há estrelas no fundo de si mesmo. Auto-descobrir-se é uma viagem espacial.

À natureza, o passado só interessa como um elo para o futuro, nunca por si mesmo.

Crescer como puro oxigênio sobre a montanha mais alta, até explodir em: tudo.

Obra do acaso ou do gênio: encontrar um coração simétrico ao seu.

O espírito é uma ilha no oceano do ser.

É preciso perder a gravidade.

Os parses tributam ao fogo a encarnação do espírito da vida: e o fogo físico é a expressão externa, o envoltório fenomênico do fogo secreto que habita em todas as coisas.

A paisagem humana sofre de carência da beleza aparentemente assimétrica da natureza: onde impera somente a razão, a aridez domina o espaço.

Genialidade é dar a uma obra, mesmo que ela seja a vida, a aparência de é produto do acaso, de que forças e forças se acumularam até explodir nessa totalidade única que a obra é; dotar a obra dessa irregularidade assimétrica aparente, com a simetria real do fundo. Genialidade é ser anônimo.

A desordem do coração é aparente. O que supomos ali fora do nosso controle só não passou pelo crivo da razão: mas o ser sabe sua razão de ser, melhor que nós.

Procuramos uma lâmpada no mundo, não homens.

Certas aves cortam o céu com vôo e gritos. O grito pode ser a impulsão primordial da liberdade.
Flores raras ( em sonhos raros ) prenunciam o melhor de nós: floração do nosso maior esforço em sermos nós mesmos.


O homem é como um relógio desregulado: há um descompasso total entre seu instinto e sua mente, de modo que o que é natural nele é tolhido como anormal. A moral é um meio de justificarmos essa doença.

a voz do inaudito nos chama a cada manhã.

O amor é concentração indefinida.

Entre o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, a abstração homem.

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