XII
O jaguar saiu do mar imaculado; trazia em suas patas de jaspe a estrela roubada, dentro da estrela o abraxas; num segundo o jaguar rasgou a estrela e atacou o abraxas, abrindo-lhe o peito, espalhando as plumas - do sangue do abraxas se formou a América, de seus olhos os cometas, de suas serpentes a África, de suas penas as asas dos poetas, de sua língua a confusão entre os éons e o tempo.
Então o jaguar se escondeu nas florestas da América; começara, fora sua a tarefa mais dura, libertar o abraxas. Guardou o ar que o galo expulsara nos estertores e as canções bífidas das serpentes, para quando o mundo se cansasse de si e precisasse de novas canções e um ar de fecundar primaveras.
Por último, espalhou os ossos do abraxas em partes infinitas e depositou em cada pedra, sólida ou líquida, deixando ali o sinal da ave e da serpente - anseios que se cruzam formando o
XIII
Não quero fazer um exórdio. As pessoas não querem saber o que lhes falta, como também não querem caminhos - querem apenas continuar onde estão: mãos amarradas, olhos fechados, boca cheia de parafusos.
Queremos louvar a pedra e dizer não. É direito daqueles em exílio esperar pelo retorno, ansiar pela restauração da antiga condição. O exilado diz não às marchas, às alegrias forçadas, às bandeiras desfraldadas quando a única coisa que o vento espalha são os nomes dos mortos. Estamos exilados num tempo em que as máquinas têm coração. Ouvimos seu pulsar infernal, sístole e diástole de óleo e metal, rangido de ondas cardíacas. Não somos desse tempo, somos do não tempo.
Até onde a vista alcança, o deserto domina: nos poemas, nas frases de amor, nos palanques e nos púlpitos, nas repartições, nas músicas. Até que o olhar se cansa, procura adiante ou atrás outros vestígios, mas o deserto começou há muito tempo; o que passa é deserto, o que dura é deserto.
Há areia nos calçados, nos alimentos, nas amizades, nas moedas. Os cursos de água secaram e até as metáforas pedem licenças à equação das dunas.
Os que estamos em exílio temos nossa esperança, de que a água brote da pedra e que da água os oásis vomitem novas palavras e que da pedra nunca cesse a promessa: de terminar o tempo.
XIV
O que nos é próprio não é nosso, pois é comum a todos. Posso reclamar como meu um átomo ? Posso dizer minha a água que alimenta meus rios, os minerais de minha ebulição ? E o que seria de nós sem tudo o que nos forma ? Nada é nosso, nem mesmo a mensagem secreta do que somos. Somos Édipos sem pecado nos olhando a cada dia num novo espelho e cada um nos dá uma outra resposta. Posso reclamar dos muitos que me habitam ? Não, porque sou universo.
A mesma matéria material alimenta de uma caldeira ao motor de um quarteto de cordas. Ânima, que o tempo não obstrui porque é impotente contra o fogo; bíos que a palavra não esgarça porque se multiplica; zoé que não se corrompe porque tem em suas mãos o silêncio e a paciência para se expandir.
Diferente como as notas de um violino e os lamentos de um vampiro nossa pedra assoma suas máscaras.
O que nos é próprio é comunhão.
XV
Nossa arte é a de elevar a pedra à plena consciência de si mesma, roubando-a assim das garras da mecanicidade, resgatando-a de entre os mortos, aqueles de pele verde, olhar sem flama; por isso é uma arte mercurial, de Mercúrio, o Hermes romano, o deus ladrão, o psicopompos que resgata os mortos do Hades.
Mercurial também porque a pedra é mercúrio, pedra líquida leitosa que sempre procura escapar. Nossos maiores representavam a pedra como sendo o Hermes alado a quem um Saturno envelhecido vinha lhe cortar os pés, onde as asas dele habitam. E quem é esse Saturno, senão o ordenamento que fazemos da pedra ? Quem é esse Saturno senão o condutor, o princípio antigo que dirige nossa vontade para com todo ardor buscar a liberdade ?
As asas das quais Hermes é desprovido nascerão em nós. Quando pela ascensão da pedra nossa natureza alada se revela, assumimos nossa predisposição pela liberdade e pelo espaço. Rompemos os limites impostos pela gravidade mostrando que a densidade é uma atração da aparência, mas a aparência pode ser superada.
sobretudo, acima de todas as coisas, é preciso não perder nenhum centímetro da pedra, que pelo acolhimento cresce e nos liberta. As chaves estão na própria natureza, que por ser vasta, esconde-as. dizem que há na Romênia pedra misteriosa (trovants) que cresce e se multiplica ao contato com a água. Ora, a natureza também sabe representar e essa pedra é o símbolo de que a água faz crescer os fundamentos do mundo e de nós mesmos, de que é possível acumular a força da matéria pelo poder fermentativo da água; e o que é a água senão um sêmen universal e o que é o sêmen senão nossa água ?
Pedras romenas chamadas de Trovants |
XVI
Não basta saber da importância da pedra, é preciso desejá-la, é preciso querê-la, é preciso aspirá-la, é preciso amá-la, com amor simples, com o coração sincero, subir ao leito não somente com a intenção de grandes coisas mas com a vontade simples de amar sem subtrair o outro, amar para ter o outro ao lado e dentro de si, amar como quem anda à beira de um precípicio, como quem pisa no fio de uma navalha, mas também como quem brinca, como se nada fosse sério, ou tudo fosse tão sério que o resultado de qualquer brincadeira levasse à morte. Alegres, mas humildes, conseguiremos reavivar o fogo, iluminar a "lápis" até que o rubro a destile. Com movimentos lentos e sem hipocrisia, é possível segurar as asas de mercúrio. É como voar num dragão. A mulher é a serpente portadora da flama, é preciso amá-la sem falsidades, só assim a pedra poderá ser cultivada, só assim evitamos perdê-la; a arrogância leva ao desespero; a humildade, a alegria e o coração sincero fazem a pedra crescer no fogo do homem e no coração da mulher, e quando o homem a penetra, quando o pênis desliza pela vagina, o amor será o portador da luz, então é preciso deixar-se conduzir pelo amor.
Nesses dias vazios o sexo virou uma espécie de arena romana; é preciso esquecer da arena e lembrar da infância para refinar o sêmen com grande indústria.
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