A memória é uma forma de sanção ao esquecimento, lembramos do que é necessário ao ser, o resto, esquecemos. Memória é uma forma de vontade de poder, diria Nietzsche. Lembrar é também esquecer; mas nossas fragilidades se revelam também no ato da lembrança, haja vista os traumas, as feridas da alma. É preciso aprender a arte do esquecimento.
Esquecer como um exercício consciente (acho que Spinoza discordaria do que falo; vide A ÉTICA, capítulo sobre OS AFETOS ou PAIXÕES DA ALMA) não é um mero ato de extrema racionalidade, não é simplesmente um exercício de afecção intelectual, mas sim uma combinação de vontade e necessidade: esquecer é um ato de liberdade.
A memória nem sempre é positiva: a memória histórica dos vencidos, por exemplo, é um grande trauma, como assim o disseram Benjamin e Wachtel; esquecer, para esses povos, é uma maneira de manter viva a identidade.
A vida como manifestação biológica é um processo contínuo e dialético entre a recordação e o esquecimento: à medida em que crescemos, nosso organismo lembra do que é necessário, o próprio DNA é uma forma de memória condensada, mas só crescemos porque de alguma maneira nosso organismo também esquece o que foi, por isso envelhecemos, crescemos e caminhamos para a morte. Morrer é esquecer.
Exercitar o esquecimento é também uma maneira de morrer: quando esquecemos aquilo que não nos acrescenta mais nada, aquilo que só nos incomoda, sepultamos também nossas ilusões, matéria que de alguma maneira também nos alimentava, e aí morremos um pouco - parte de nós se esvai - outra parte surge; economia simbólica: a energia antes gasta na ilusão alimenta agora a auto-afirmação.
Morrer e nascer são exercícios de liberdade e vontade, assim como lembrar e esquecer; lembrar e esquecer são dois lados dialéticos de uma moeda que não tem verso, mas manifestações do ser na temporalidade: às vezes nascer,às vezes esquecer.
O exercício do esquecimento é um exercício de dura disciplina: não esquecemos sem que haja alguma vontade consciente para tanto - é preciso ter o necessário desencanto ou a força que se pede para esquecer.
Algumas coisas são, por natureza, inesquecíveis; certas pessoas também. É mais fácil esquecer as coisas que as pessoas, porque com as pessoas se envolve a difícil economia dos afetos. Mas é possível, e às vezes necessário, esquecê-las. Morremos de um lado, nascemos de outro. Ces't la vie.
A memória guarda, com todo zelo que lhe é característico, alguns momentos singulares. A singularidade não é um signo imanente às coisas, a singularidade é uma imanência do olhar: às vezes a luz do sol por entre as folhas, a imagem de uma clareira se guarda na memória como o registro de um vislumbre da eternidade.
Não posso narrar o que esqueci, mas posso lembrar e falar de singularidades, coisas e eventos que foram particularmente importantes, e que talvez tenham um valor universal: não sei se todas as pessoas são tributárias de alguns dias de sol inexplicável, ou das manifestações livres das crianças, com todo nonsense que nos leva a um outro mundo; certos momentos, eventos e singularidades parecem revelar a intersecção entre nosso mundo interior e o "mundo", entre a transcendência e o imediato: o sorriso de minhas filhas a um gesto de molecagem anárquica, a leitura de um trecho de Breton na madrugada, ter dormido ao relento olhando nebulosas, ter presenciado o mistério ou ter bebido vinho com pessoas que amo são fatos marcantes per si. Acho que são universais.
Só não sei quantos se perderam nas manhãs deitados no chão a contemplarem o céu e as formas das nuvens: várias vezes tive de fazer o esforço de voltar a mim mesmo, à segurança do eu, pois o azul quase abstrato do céu nordestino me levava para outro lugar que não eu mesmo.
O resto é esquecimento. Todo dia que lembro, esqueço. Mas sempre que precisar esquecerei, num radical exercício de vontade e liberdade. Não sei ser de outra maneira. As metades do que sou são raízes, só posso ser por inteiro.
É a vida.
Esquecer como um exercício consciente (acho que Spinoza discordaria do que falo; vide A ÉTICA, capítulo sobre OS AFETOS ou PAIXÕES DA ALMA) não é um mero ato de extrema racionalidade, não é simplesmente um exercício de afecção intelectual, mas sim uma combinação de vontade e necessidade: esquecer é um ato de liberdade.
A memória nem sempre é positiva: a memória histórica dos vencidos, por exemplo, é um grande trauma, como assim o disseram Benjamin e Wachtel; esquecer, para esses povos, é uma maneira de manter viva a identidade.
A vida como manifestação biológica é um processo contínuo e dialético entre a recordação e o esquecimento: à medida em que crescemos, nosso organismo lembra do que é necessário, o próprio DNA é uma forma de memória condensada, mas só crescemos porque de alguma maneira nosso organismo também esquece o que foi, por isso envelhecemos, crescemos e caminhamos para a morte. Morrer é esquecer.
Exercitar o esquecimento é também uma maneira de morrer: quando esquecemos aquilo que não nos acrescenta mais nada, aquilo que só nos incomoda, sepultamos também nossas ilusões, matéria que de alguma maneira também nos alimentava, e aí morremos um pouco - parte de nós se esvai - outra parte surge; economia simbólica: a energia antes gasta na ilusão alimenta agora a auto-afirmação.
Morrer e nascer são exercícios de liberdade e vontade, assim como lembrar e esquecer; lembrar e esquecer são dois lados dialéticos de uma moeda que não tem verso, mas manifestações do ser na temporalidade: às vezes nascer,às vezes esquecer.
O exercício do esquecimento é um exercício de dura disciplina: não esquecemos sem que haja alguma vontade consciente para tanto - é preciso ter o necessário desencanto ou a força que se pede para esquecer.
Algumas coisas são, por natureza, inesquecíveis; certas pessoas também. É mais fácil esquecer as coisas que as pessoas, porque com as pessoas se envolve a difícil economia dos afetos. Mas é possível, e às vezes necessário, esquecê-las. Morremos de um lado, nascemos de outro. Ces't la vie.
A memória guarda, com todo zelo que lhe é característico, alguns momentos singulares. A singularidade não é um signo imanente às coisas, a singularidade é uma imanência do olhar: às vezes a luz do sol por entre as folhas, a imagem de uma clareira se guarda na memória como o registro de um vislumbre da eternidade.
Não posso narrar o que esqueci, mas posso lembrar e falar de singularidades, coisas e eventos que foram particularmente importantes, e que talvez tenham um valor universal: não sei se todas as pessoas são tributárias de alguns dias de sol inexplicável, ou das manifestações livres das crianças, com todo nonsense que nos leva a um outro mundo; certos momentos, eventos e singularidades parecem revelar a intersecção entre nosso mundo interior e o "mundo", entre a transcendência e o imediato: o sorriso de minhas filhas a um gesto de molecagem anárquica, a leitura de um trecho de Breton na madrugada, ter dormido ao relento olhando nebulosas, ter presenciado o mistério ou ter bebido vinho com pessoas que amo são fatos marcantes per si. Acho que são universais.
Só não sei quantos se perderam nas manhãs deitados no chão a contemplarem o céu e as formas das nuvens: várias vezes tive de fazer o esforço de voltar a mim mesmo, à segurança do eu, pois o azul quase abstrato do céu nordestino me levava para outro lugar que não eu mesmo.
O resto é esquecimento. Todo dia que lembro, esqueço. Mas sempre que precisar esquecerei, num radical exercício de vontade e liberdade. Não sei ser de outra maneira. As metades do que sou são raízes, só posso ser por inteiro.
É a vida.
3 comentários:
esquecer????
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Tu és um poeta, adorei o texto. Sou casada com um "esquecido". Esquece de tudo, mas diz que lembra de mim em todas as coisas lindas do momento.
Um abraço.
Carmen
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