24 abril 2008

Kafka, o estranhamento e Eu

Uma passagem do Diário de Kafka de 1910 registra: "Enquanto não for libertado do meu escritório, estarei perdido pura e simplesmente, é o que me parece claramente acima de todas as coisas, trata-se somente de manter a cabeça alta durante tanto tempo quanto for possível para não soçobrar."(18/12/1910) . Nas Meditações,ele diz: ' Vistos com os olhos terrenamente obscurecidos, estamos na situação dos viajantes de um comboio que sofreu um acidente no meio de um longo túnel e isso num lugar de onde já não se vê a luz da entrada enquanto a luz da saída é ainda tão fraca que o olhar a procura sem cessar e sem cessar a perde de vista, enquanto nem entrada nem saída são mesmo certas."
Essas duas passagens kafkianas não são ficcionais: são trechos de um diário e de um livro de meditações sobre a vida, livro por si bastante diferente dos manuais de auto-ajuda de hoje, mas que, ambos, ajudam a revelar o absoluto estranhamento de Kafka quanto à existência: em face do cotidiano mesmo, quando fala na sua vontade de libertar-se do 'escritório' (Kafka trabalhava numa companhia de seguros), como também em face da vida em seus aspectos filosóficos mesmos, como quando a compara a uma passagem por um túnel onde tudo é escuridão.
Esse estranhamento kafkiano frente à vida, que aparecerá de modo genial em sua obra ficcional (basta lembrar da Metamorfose, O Processo e o Castelo), é uma tentativa, a meu ver, de se procurar as raízes ontológicas da existência, naquele ponto mesmo onde o discurso se espelha na vida e a vida reflete o discurso; explico-me: acho que a questão primordial da filosofia do questionamento do homem sobre sua própria vida, é, como diria Heidegger, a questão do quid, do que, ou seja, da fundamentação do ente, o porque de uma coisa ser o que ela é: o que torna o homem um homem ? O que torna uma árvore uma árvore ? O que torna o ser aquilo que ele é ? Essa pergunta básica não é uma mera questão de retórica, nem de fundamentação de categorias gramaticais, é uma questão que remete à essência da vida humana mesma, que procura o tempo todo fundamentar-se, achar as razões de si mesma, seja no discurso que ela mesma cria, seja em causas extras (metafísicas) que trariam em si o quid da existência.
Kafka soube captar, como ninguém, essa falta de sentidos, esse absurdo moral e existencial em que nos colocamos nas sociedades modernas, onde a existência humana não consegue mais fundamentar-se a si mesma: é o absurdo do trabalho, onde o sujeito alienado de si mesmo não encontra razões para o que faz, como o próprio Kafka se sentia, é o absurdo da própria existência, por onde navegamos numa viagem obscura (a passagem pelo túnel) sem sabermos ao certo se encontraremos qualquer forma de luz que clareie o caminho por onde andamos, ou qualquer sinal que nos diga que há sentidos no que fazemos.
Nunca estranhei Kafka porque o estranhamento é uma condição que para mim sempre foi normal: entendi Gregor Samsa transformado num gigantesco inseto, incomunicável, trancado num quarto, isolado da família - quem nunca se sentiu assim um dia que atire a primeira pedra; mas não só isso, sempre senti, independente de Kafka, uma compaixão pela baratas, pelo grotesco que há em sua atitude mecânica de, encontrando-se na presença de um humano, lançar-se diretamente em sua direção e não em rota de fuga, o que as leva diretamente à morte, o que fez com eu sempre pensasse nas baratas como criaturas suicidas. Quando o sr. K foi processado sem que soubesse o porque no Processo, também não estranhei, porque faz parte do nosso mundo contemporaneamente idiota a incomunicabilidade das esferas pública e privada, o distanciamento ,dos centros do poder, do homem cotidiano, o esmagamento contínuo a que somos submetidos diariamente por forças às quais não controlamos, não conhecemos e para as quais não sabemos, na maior parte das vezes, como enfrentar.
Enfim, não só por conta do mundo, mas talvez e principalmente por aspectos que me são particulares, sempre me senti como alguém em terra estrangeira, por onde quer que eu vá. Alguém a quem gosto muito chegou a levantar a hipótese de que eu seja um alienígena, coisa que não descartei por inteiro, porque na realidade não sei ao certo quem sou, nem se o que sou é uma construção e uma conquista minha ou um mero resultado de equações às quais não tenho o menor controle porque sou péssimo em matemática.
A própria noção de eu me causa estranhamento: sinto-me como uma esponja ou como uma árvore que produz diariamente folhas novas, novas não só no sentido de que são uma produção nova de elementos idênticos, mas novas no sentido absoluto do termo: folhas que não se repetem, porque são a cada dia um novo produto, novas folhas nunca vistas. Não sou uma metamorfose ambulante, como diria a música, mas o núcleo do que sou com certeza não é o eu.
Sei que estou a anos-luz de Kafka, não tenho a menor pretensão de me comparar a ele no plano literário, mas somente quanto à universal dor de ser humano num mundo que se desumaniza cada vez mais. Sinto-me irmanado com sua dor, e ao ler seus diários, tenho a sensação de que estou a ler algo que a minha pessoa poderia ter escrito, em momentos semelhantes de angústia.
A verdade é que não achamos, ainda, nosso quid, não conseguimos conciliar o conhecimento com a práxis, a essência com a existência, quiçá porque não devamos procurar o quid, mas senti-lo, através da vivência poética, do desregramento dos sentidos, como diria Breton, da encarnação do absoluto através do amor.
Sei que são questões que parecem por demais abstratas, mas não o são. A vida tem uma dimensão trágica justamente porque o homem é uma arena dividida entre o conhecimento e a vivência (vide Édipo), entre o ser e a existência: somos incompletos, frágeis e mesmo o mundo que criamos não está mais sobre nosso controle, parece que virou uma esfera autônoma onde a burocracia e a tecnologia andam de mãos dadas contra o homem.
Por isso às vezes me pego olhando às estrelas: Sirius , a constelação de Órion, a estrela Vesper: talvez elas me dêem alguma resposta, talvez me tragam alguma luz. Tenho a impressão que nasci no cosmos errado. Preciso pensar melhor no que disse essa amiga que amo tanto: assumir minha condição alienígena é assumir meu estranhamento, assumir o que sou. Aí, quem sabe, encontre meu quid.

2 comentários:

Neko Whisper disse...

sempre tem que ter um "eu" no meio, não é mesmo?

Ana Lucia disse...

A D O R E I!!!!! E digo: que quem causa estranhamento, neste nosso mundo, são os melhores seres porque não se adaptam ao lugar comum e ao confinamento da ordem...