22 dezembro 2009

Outros Dois

Nus

Um dia controlarão nossos pensamentos
ainda em sua
gênese
com
catracas virtuais, ordens eletrônicas
nos dirão a
direção
do correto pensar
então abriremos os braços para a loucura
rabiscaremos em pergaminhos
toda razão será castigada
amanheceremos nus.


Palimpsesto


Camada por camada, não me encontro
palimpsesto temporal
sou humano bissexto
outros tempos, sou bicho em lugar escuro
torvelinho no meio da estrada
se olhar no espelho, tropeço
o único que sei de mim é voz
murmurando canções
do tempo em que se planejavam revoluções
o resto não sei
deixei de saber
só me reconheço pelo tato
tocando o espírito, ouço palavras de ordem
liberdade, liberdade, liberdade

Um Poema

Sob a Cidade


Os dedos de limo da cidade
aprisionam a fala dos que sonham
do quarto imaginamos estrelas, amores,
extravios
rotas no deserto
melodias contra o tédio
o que queremos é gritar, voar como tufão
suspensos por um fio
pendentes no vazio de Deus
sim, deixem-nos recitar a esperança
por dentro somos livres, dentes de leão ao vento
por fora nossas mãos armam revoluções
a derrubar muralhas, desfazer ídolos
estamos sob o céu da cidade
estamos sob o
oxigênio bêbado do presente
as nuvens de gás, os genocídios
emergimos bradando contra o nada
chega de corpos nos abismos
quanto será preciso
para libertar os sorrisos dos homens
os sorrisos dos deuses
há muralhas invisíveis entre nós
o amor estende os braços
os homens fecham os olhos

15 dezembro 2009

Dois Poemas

Os deuses

sempre duvide dos deuses
nunca sabemos as razões do divino egoísmo
somos cercados por rochedos insanos
derrubam nossas muralhas
nos mandam doenças, nos enlouquecem

sejamos deuses
derrubemos muralhas, enlouqueçamos as pedras
façamos do amor doença e cura

só ele pode amanhecer
mesmo o mundo
dos deuses


Hai Kai

borboleta da espuma d'água
que vôo leve
a manhã te aguarda








15 outubro 2009

A memória, as memórias, o indivíduo

a Gilvan - In Memorian

A individualidade é formada não somente por sedimentos do si mesmo, mas também de sedimentos do outro - amigos, família, etc -; somos cada um desaguadouro de rios dos que nos antecederam no tempo.
Sempre refleti sobre o como nos formamos, o como nos constituímos como sujeitos, como indivíduos. Nietzsche - que tanto lutou para achar a si mesmo-, fazia uma distinção entre a primeira e a segunda natureza de cada um, sendo a primeira natureza aqueles traços que herdamos do ambiente familiar e a segunda natureza aquela que é decorrente das nossas decisões e escolhas como sujeitos autônomos.
Mas nada é tão simples assim: como falei no início, somos resultado da sedimentação de diferentes forças que desaguam em nós, somos quais árvores que temos raízes e folhas - as raízes são nossas heranças, o chão comum em que crescemos -, e as folhas e flores e frutos são a expressão da nossa autonomia, mas ambos estão misturados no mesmo sujeito; a individualidade é um produto híbrido e dinâmico, somos quais células cuja membrana permite a entrada daquilo que nos alimenta e nos faz crescer. Nossas naturezas estão misturadas e em processo ao longo do tempo.
Mas esse não é um texto de filosofia, é mais um recorte da memória e uma indagação sobre o que sou e sobre a ação daqueles que amei e amo sobre mim; é uma tentativa de seqüestrar o tempo com palavras para que ele trabalhe a nosso favor.
Sempre, desde as lembranças mais remotas que possuo, sempre tive uma ligação visceral com a música, ela sempre foi para mim um alimento - às vezes mais importante que a comida do dia a dia. Mas isso não foi algo inato, foi herança do ambiente em que cresci, mas principalmente herança de uma pessoa da qual estou muito longe - porque ela já se foi de entre nós e nós deixou com interrogações e esse vazio da ausência. Essa pessoa se chamava Gilvan. Ainda me lembro,quando, em 1978 - eu tinha seis anos - quando Milton Nascimento lançou o Clube da Esquina 2, e mal havia sido lançado e nós já o ouvíamos em casa, assim como ouvíamos Bob Dylan, Beethoven, Led Zepellin, Deep Purple e Elomar. Uma das marcas de Gilvan era seu bom gosto e ecletismo musical, o que o fazia ouvir o mais recente LP do Belchior e do Raíces de América ao mesmo tempo que poderia ouvir Pink Floyd ou Bach. A música, para ele, era também um alimento, principalmente porque ela refletia uma intensa ânsia pela vida, uma vontade de mudar - dentro do seu horizonte possível, o mundo ao seu redor. Éramos, de certo modo, os extremos: ele, o irmão mais velho,eu, o mais novo numa família de nove irmãos; não éramos muito próximos, o que é normal quando há diferenças tão grandes de idade, mas de qualquer forma ele foi uma influência determinante para a formação de uma natureza musical em mim, como se meu corpo fosse tecido não de fibras,músculos, ossos, etc, mas de notas musicais, de intervalos sonoros, de ritmos que, fora de mim,expressavam aquilo que eu carregava dentro.
Um sedimento feito do outro, da terra onde se nasceu, das primeiras palavras que se ouviu, dos primeiros gestos, assim como a água dos rios altera o caminho das margens ao longo do tempo e deposita no mar novos sedimentos da sua longa passagem pelo tempo, assim somos nós.
Cedo me afastei da família em que nasci, movido pela dinâmica interna e externa da vida e depois que vim para São Paulo nunca mais o vi, só nos falávamos por telefone até ele morrer.
Curioso é que um mês antes dele morrer sonhei que andávamos os dois juntos e ele encontrava enterrado uma estátua do deus Sobek – o deus crocodilo egípcio – e ela virava um crocodilo de verdade e tentava lhe engolir; e mais curioso ainda foi que, no dia da sua morte, aliás, mais ou menos na hora em que ele morria lá no Maranhão, sonhei, aqui em São Paulo, com minha mãe a chorar dizendo que era triste ver sua família se desfazer por que as pessoas estavam morrendo.
De qualquer maneira, ele deixou essa herança indelével e perene que todos nós que vivemos com ele assimilamos. Queria muito ter conversado com ele e saber dele o que ele acharia da obra de um Philip Glass ou que ele acharia do violão do Yamandu Costa. Quais seriam as impressões dele sobre o Madredeus ou o que ele diria sobre o rock de hoje (para mim um lixo). São conversas que não conseguimos ter, onde poderia discutir com eles esses que são músicos da minha segunda natureza, fruto das escolhas que fiz no longo caminho pela realização da autonomia e da liberdade.
Além dele, outros – do passado e do presente – deixaram suas marcas em mim – alguns, mesmo aqueles dos quais por uma ou outra razão me afastei, deixaram suas marcas ou lembranças, seja quando me ensinaram a ouvir o outro,quando me confessaram suas esperanças ou aquilo que lhes parecia ser o amor, ainda que depois o tempo tenha feito seus estragos sobre nós. É minha maneira de me construir enquanto indivíduo – amar e absorver o amor dos outros enquanto há tempo, mesmo que fiquem as feridas dos desencontros – a ponto de não conseguir pronunciar certos nomes sem sentir dor.
Mas a vida é dinâmica e nada pára. Escrevo esse texto numa pequena pausa da greve dos bancários da Caixa, na qual tenho lutado com insistência. Porque é da nossa natureza não se entregar à estupidez da história e faz parte de nós insistir no amor pelo mundo, pois só assim conseguimos nos salvar e salvar o horizonte das humanas possibilidades.
E a música continua em meus ouvidos. Como se fosse a voz dele.

Fazer a História


Éramos poucos, éramos mil
vaga de sonhadores contra o paredão da história
bandeiras hasteadas contra o tempo
sonhos tremulando
na pura solidão

Éramos poucos, éramos milhões
síntese de corpos em luta pelas ruas
armas em punho contra o medo
palavras, gestos arrancados do fundo do peito
a esperança pelas ruas
cortejo de revoluções

Éramos poucos, éramos todos
acuando a opressão pelos becos
matando a fera insana, dominando o medo
apostando todos os gritos
no vôo do futuro

01 setembro 2009

O Filho Morto


Ela jogava comida pelo teto tentando escapar da mente
as paredes cheiravam a feijão velho
lembranças escorrendo dos ladrilhos
gritava os nomes de Deus que nunca ouvira
esperava inscrições em semita
o dedo a decifrar as cores da dor

depois de eternidades o sol abriu os olhos
em qualquer água as nereidas falavam
teu filho está em nossos braços
assim é o amor.

26 agosto 2009

O Que Amamos

O que conhecemos aprendemos a amar
mesmo as coisas cujas formas
são sempre passageiras

assim com as pessoas
que encontramos na estrada
que em um dia, um mês, um ano

em ritmo de sonho
nos contam suas dores, seus encantos
os olhos em busca

daquilo que sem nome nos assusta
esperamos que a meia-noite nunca venha
possa o tempo saltar a madrugada

as mãos deslizam pelo mapa
rugosidade das montanhas, azul dos rios
tantos lugares onde não habitamos

tantos lugares longe do presente
esses aromas, esses ventos
essas cortinas de estrelas

que descem sobre nossas palavras
mais dia, menos dia se desfarão
palavras, folhas, ventos

bolhas de sabão que a eternidade engole
manchas no espelho da memória
rio das lembranças se desfaz

na garganta do tempo
aqui, ali teu nome, meus silêncios
na areia das ruas o imóvel calendário

nos assombra
sob a garrafa da palavra mais rubra
sob o abraço que a ameaça da manhã apressa

amamos o que desconhecemos
paisagens longínquas, animais estranhos
rotas que não pisamos

onde a liberdade sempre
jorra em silêncio a poesia
amamos sempre tudo

o que a morte nos nega

11 agosto 2009

Digam-nos


Digam-nos quantos mares
dormem em vossas entranhas
e neles quantos seres
anunciam a poesia
que o horizonte derrama

Digam-nos quantos homens
abrem os olhos à noite
e sequestram hipocampos
que vagam nas estrelas

Digam-nos quanto sangue
escorre do silêncio
e quanto silêncio há
na boca das feridas
que os senhores escondem

Poesia é arma
para abrir os olhos

Poesia é adaga
para limpar os ossos

Poesia é plasma
para cicatrizar os sonhos

30 julho 2009

HidraFLor

HidraFlor

Hidraflor, maresia
alto céu, noite vaga
lobos poetam à lua vadia

bebíamos o orvalho
que se acumulara nos espinhos
maresia, hidraflor
em barcarola dançávamos

somos dos que encontram
no mar o próprio rosto
hidraflor, maresia
na distância nossas vozes
desabrocham o oceano

21 julho 2009

Dois Novos Poemas

Impossível Mar

é impossível se perder no mar
é impossível alcançar o mar
é impossível dessalgar o mar
é impossível enxergar o mar
e impossível flutuar o mar
é impossível perverter o mar
é impossível conquistar o mar
é impossível soletrar o mar
é impossível vomitar o mar
é impossível faturar o mar
é impossível repetir o mar
é impossível falsificar o mar
é impossível adormecer o mar
é impossível vegetar o mar
é impossível etiquetar o mar
é impossível esvaziar o mar
é preciso navegar o mar
no que improvável há
em nós.



Ainda Há Pouco

Ainda há pouco, milênios atrás
nem sabia da imensa caligrafia
das pedras imaginava ser o papel tinta dos ventos
num ângulo de 45º entre a pirâmide e a areia
tempo deslizava entre os grãos
ainda há pouco ouvi meu grito
na placenta do futuro.

24 junho 2009

Promessas do Sol

Como diria Nietzsche, certos estados de espírito só podem ser traduzidos em música; frente ao marasmo geral dos nossos tempos, do pragmatismo cínico que impera na política, no meio sindical e até mesmo na mais que fragmentada esquerda, frente ao pragmatismo também das pessoas nas relações pessoais, frente ao cinismo deslavado da direita, enfim!, frente a essa pequena meia noite, quando saimos do caos mas não sabemos também para onde vamos, essa música do Milton Nascimento e Fernando Brandt, que fala daqueles que foram mortos na América, dos índios assassinados, eu, que também sou índio e sangue surreal lançado no espaço da solidão cósmica, também digo:

Você me quer forte
E eu não sou forte mais
Sou o fim da raça, o velho que se foi
Chamo pela lua de prata pra me salvar
Rezo pelos deuses da mata pra me matar

Você me quer belo
E eu não sou belo mais
Me levaram tudo que um homem podia ter
Me cortaram o corpo à faca sem terminar
Me deixaram vivo, sem sangue, apodrecer

Você me quer justo
E eu não sou justo mais
Promessas de sol já não queimam meu coração
Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?
Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?

17 junho 2009

O Que Foi Feito de Nós

Deusa, dai-nos, agora e sempre, a eterna inconformidade...
Gledson


Penso na terrivelmente bela música de Milton Nascimento e Fernando Brandt, O Que Foi Feito De Vera/ O Que Foi Feito Devera: “o que foi feito amigo/de tudo que a gente sonhou/ o que foi feito da vida/ o que foi feito de nós...”
Preciso dizer quem é esse nós; esse nós pode ser entendido como uma geração, a geração a que pertenço, a geração que nasceu em meados dos 70, que viveu ainda sob os “auspícios” da ditadura militar(ainda cantávamos o hino nacional em formação militar nas escolas), que viveu também, ainda na adolescência, os ventos da república nova, a abertura, a queda do muro de Berlim e o fim da URSS, ou seja, uma geração que nasceu e cresceu entre esperanças e medos, que se defrontou com o improvável e viu o nascer e o morrer de sonhos acalentados durante anos; particularmente, sou também um ser que sempre viveu em transição: saí muito cedo de casa, mais ou menos aos 14 anos, saí muito cedo do lugar em que nasci(vim para São Paulo em 1991, a 18 anos atrás) e inevitavelmente carrego o peso desse desenraizamento, a perca voluntária e involuntária dessa que Nietzsche chamaria de primeira natureza, essa personalidade formada ou deformada no meio da família. Cedo aprendi com Nahum Goldman que as minhas raízes estão em mim.
Mas nada simples, nada fácil. Me pergunto o que foi feito de nós, o que foi feito de nossas esperanças? Quantos de nós abandonaram os sonhos em troca de uma vida prosaica, quantos de nós desacreditaram dos sonhos porque se entregaram à lógica do sistema ou quantos de nós enlouqueceram ou sucumbiram sob o peso das drogas ou da aposta sem volta entre o abismo e o nada ?
Não saberia precisar o número e peço licença para falar de meu próprio caso particular como um elemento de geração; não que minha vida seja a expressão de um elemento universal comum a todos, mas sou um homem dessa geração e a singularidade do que vivi até agora não me isola dos outros companheiros do tempo.
Sempre pergunto a mim mesmo o que me motiva ou o que me dá esperanças para lutar por algo e o que é esse algo. Na infância, cresci sob o clima da Guerra Fria, o medo do The Day After (quem lembra do filme sobre a guerra nuclear?), de uma possível guerra EUA X URSS causada pelo idiota do Ronald Reagan ou pelo senil Brejnev (aos nove anos discutíamos sobre a bomba na hora do recreio no pátio da escola). Na adolescência tive uma militância empírica e incompleta no movimento estudantil e na Convergência Socialista, além de ter participado ativamente, tempos depois, em um grupo esotérico, onde praticamente me formei, numa busca desesperada por conhecimento. Casei muito cedo, por opção e por amor, perdi minha primeira filha, passei fome e frio quando vim para São Paulo, voltei à militância política já adulto, e ainda continuo acreditando no amor e na capacidade do homem de transformar o mundo, mudar a vida.
Mas durante todos esses anos vi o mundo dar uma guinada violenta à direita, vi o peso da ideologia capitalista e sua lógica de mercado esmagarem as boas intenções e o discurso utópico, vi antigos companheiros se converterem ao mundo burguês e prosaico ou simplesmente serem tragados pela grande mó da máquina do mundo. Conheci outros companheiros e companheiras, continuo apanhando ( e muito ) da vida por simplesmente continuar teimando, insistindo, porque acho que nunca devemos nos conformar com nada, nunca haverá um ponto de perfeição nem de repouso, no todo nossa vida sempre será incompleta e sempre em algum aspecto teremos algo a ser superado.
E me pergunto: o que foi feito de nós ? Qual nosso lugar no mundo ? O que fazemos ? Vou falar por aqueles que não perderam a esperança, porque aprenderam a cultivá-la; esse é o primeiro ponto, a esperança não é uma virtude negativa, uma virtude passiva. Entendida de modo não cristão, a esperança é a capacidade ativa de projetar o futuro através da construção consciente de valores e atitudes que nos levem a um outro patamar da existência. Não é simplesmente ficar esperando, é construir a espera possível até que o futuro se conforme em nossas mãos. E em nome dessa esperança, vejo que surge uma outra esquerda, que se utiliza do marxismo como ferramenta, mas que aprofunda o discurso marxista para que se pense também o valor do planeta, as relações ecológicas, a superação da dominação dos gêneros, que questionam a legitimidade da violência, que lutam para preservar a liberdade. Há os movimentos pela terra, pela moradia, há a defesa da infância, há as diversas militâncias de resistência contra a lógica insípida e destrutiva do capital, como há também aqueles que ainda apostam na poesia, no amor, na plena liberdade.
Somos poucos, parecemos borboletas sob o sol, mas nossa força está na convicção íntima e profunda de que o que está posto sobre a mesa do mundo está errado, que os donos do poder e todos aqueles que contribuem, direta ou indiretamente com eles e sua visão de mundo, nos levam para a destruição do planeta e que é preciso resistir, encontrar e construir outras alternativas.
Não sei se haverá um dia em que a poesia triunfará, em que o desejo superará as barricadas (Valeu Olgária!), mas esse é um dia possível desde que acreditemos nele.
Adorno dizia que faz parte do mecanismo da opressão esconder a dor que ela causa: essa é uma das nossas tarefas máximas, revelar a dor que se esconde no cotidiano, no dia a dia daqueles que são esmagados nos trens e metrôs (aqui em São Paulo, só na ilha da Fantasia das cabeças do PSDB é que o metrô é perfeito; o governador Serra vive no mundo de Bob), daqueles que vivem longe de suas famílias nas jornadas insanas de trabalho, daqueles que vivem nas ruas, dos que sofrem de depressão por não se adequarem às normas estúpidas de um cotidiano estúpido de uma sociedade estúpida, como também a dor dos animais maltratados pelo homem, a dor dos mortos do passado – na luta de classes e nas guerras, a dor das pedras do Atol de Bikini (onde os EUA testou sua bomba de hidrogênio), a dor dos mortos de Hiroshima e Nagasáqui, a dor do non-sense da vida que levamos nas garras do capital.
Só revelando essa dor poderemos ter consciência para lutar por um outro mundo, essa dor nos insere na grande corrente da vida, porque saímos de nossas ilhas privadas de subjetividade e somos capazes de enxergar o outro, e é preciso não cair no discurso pragmático – nem da direita nem da velha esquerda: as pessoas não são números (seja para o capital ou para a revolução), as pessoas são pessoas, entes singulares capazes de cosmicizarem o mundo ao redor...
A música continua: falo assim sem saudade/falo por acreditar/ que é cobrando o que fomos/ que nós podemos crescer/ outros outubros virão, outras manhãs/ plenas de sol e de luz...(...) nem vá dormir como pedra e esquecer/ o que foi feito de nós...
Sim, é preciso cobrar de si mesmo o que fomos, não para ficarmos parados no tempo – somos dinâmicos demais para isso, metamorfoses ambulantes, mas para construirmos uma linha de coerência íntima ao longo do tempo. Algo nos define logo nos primeiros anos de vida e esse algo permeará toda nossa vida. Uma vez falei que, apesar de ter nascido numa família numerosa, foi a arte que me salvou de ser autista, porque sempre, como último irmão, cresci meio isolado em relação aos outros. Acho que nesse caso, Homero, Nietzsche, Kafka e Platão são responsáveis, em parte, por essa ânsia permanente de auto superação e amor pelo mundo: com Homero, aprendi com Ulisses a não desistir, a sempre procurar voltar para casa, mesmo quando, como diria Bob Dylan, no direction home; com Nietzsche, aí pelos 11 anos, aprendi a desconfiar do senso comum, do estabelecido, da moral e seus subterrâneos; Kafka me ensinou que eu iria encontrar um mundo estranho e sem sentido e Platão me ensinou a procurar a beleza, essa companheira infatigável que continuo a buscar.
Sei o quanto erramos ao caminhar e sei o quanto ainda vou errar; o amor me ensinou que é preciso manter a esperança, mas nunca haverá um amor absoluto possível, porque o absoluto está como possibilidade latente em nós e não fora: o outro pode ser uma porta para ele, mas não ele. Continuarei lutando, insistindo no amor e na justiça como ideais naturais da existência, os quais são razões suficientes para dotarmos o mundo de sentido.
E aí sei que temos irmãos, no tempo e no espaço, que se encontram e se entendem por el lejano mirar, que aspiram os mesmos tons e buscam os mesmos horizontes, almas gêmeas revolucionárias que mantêm acesas as chamas do amor e da liberdade, que podem dizer sem medo o que foi feito de nós...
Outros outubros virão...então, que venham! E sejam plenos como deve ser toda a vida...

05 junho 2009

dois poemas sem nome



a palavra mais dura corre para dentro
a grade na janela, meus olhos pelos vãos
pássaros bebem água da chuva
tão dentro, tão vasto, tudo em mim.


XXXXXXXXXXXXXXXXXXX


Estava ali desde o início
era seu nome este lugar

atrás de cortinas o coração voava
imensa tocha de vapores

onde alguma vez um rosto, um nome
a fogo eram inscritos na paisagem

esperava esse rosto nas esquinas
luz dos viadutos, lâmpadas de néon

esperava esse rosto no passado
na trama do futuro, na ausência

esperava ouvir o nome ao acaso 
mantra a despertar manhãs

e o nome se repetir no fogo dos vulcões
na voragem das folhas
na ânsia vertical dos fetos

estava lá desde o começo
olhos de marujo sobre o mar

divisando rochedos, corais
esperando a nau de um só nome

tão forte que a boca
emudece

01 junho 2009

Dois Poemas Curtos

Tantos pensamentos
mas nada que valha
o suspiro de um bebê no colo

As Coisas
Conversamos com as coisas
em língua de cristal e nuvem
na meia noite quando os horizontes
escrevem ideogramas
a voz esvai-se num arrepio
no pêlo do mundo incrustado às coisas
frases de um amor incompleto
que falamos
sem cessar.

29 maio 2009

Dois Novos Poemas

A Morte e a Donzela

Dizem que é um velho mundo esse das estrelas
que só há tempo para abismos

dizem que não vale à pena
a luz das constelações, melhor ver a luz no esgoto

as serpentes, orquídeas, caçadores
antas, emas, heróis muito além

brilham sem sede
de seus olhos
a poesia pulsa em plasma

dizem que só importa
a dura mão da morte
pousada sobre as coisas

e estrelas seguram as asas
da moça que corre para casa.



A Chama

Essas cores estranhas
vermelho amarelo azul fogo
depende do humor da chama
inquieta me escuta, língua de dragão

e trocamos sorrisos, sabemos
o que nela está por fora, em mim está por dentro
somos irremediavelmente
uns.

04 maio 2009

Gestos

De todas as coisas e gestos
guardo a semente daqueles
que se assemelham ao mar

onde na distância palavras ecoem
fortes como o trigo
nos campos de maio

assim poderei sempre partir
em busca da água, do fuzil

assim poderei sempre encontrar
a luz, a transparência

como a mão alcança o ombro no deserto
e caminhar se torna outro gesto
maior que o mar.

Os Sentidos da Terra

Ele queria ver o mar
esperava das ondas as respostas
que não lhe dera o vento

Ele cruzou fronteiras
andou nas terras onde a bruma esconde o sol
vagou entre os homens que cultivavam o esquecimento
também entre aqueles
que profetizavam o passado

seguia por onde houvesse
sussurros de nereida e onda
cruzou com magos que conjuravam flores
desdenhou aqueles que se chamavam de pastores
com os bolsos cheios de Deus

quando se escuta o azul, que mais importa

Ele queria ver o mar
que se estende, promessa bêbada entre os horizontes
nasceu entre aqueles que fumam narguilé nas torres
visitou os outros que encolhem cabeças
ele sabia do mar não somente brisa
mas também os sentidos da terra
ele queria bebê-lo até os dedos transbordarem algas
o céu dos olhos se dissipar em corais
até a música ser somente ondas
até não restar mais que sargaços
até desabrocharem a anêmona dos versos
até a voz liquefazer-se

Ele queria ver o mar

30 março 2009

Uma (boa) Notícia

Depois de um início de ano atribulado e difícil, até que enfim uma boa notícia: recebi hoje, de Lisboa, o livro Desigualdade no Feminino, da editora Apenas Livros Lda., onde participo com o ensaio Presença do Feminino nos Relatos de Viajantes.
O livro pode ser comprado no site da http://apenas-livros.com/pagina/inicio, mas vou ver se consigo fazer com que a distribuidora Loyola importe o mesmo.
Abraços a todos.

13 fevereiro 2009

Alguns Poemas

Ítaca

Telhados
Paredes
Horizontes
Brancos, brancos, brancos

e os olhos negros das mulheres
perscrutando o mar.


O Zero e o Infinito

Vocês que bebem o sumo das antenas de TV
talvez não saibam
a terra tem feridas que nunca cicatrizam
alguns poemas são marcas a fogo
em pleno Janeiro a lua nova
sumiu sob a luz dos viadutos
não sei como alcançar o nirvana
sem pagar as contas que restam
no primeiro dia era certeza
euforia de Olimpo, esperanças
no trigésimo dia, perguntas
vocês não escutam os gritos que vêm das florestas ou dos edifícios
meus ouvidos estão cheios de sustenidos de dor
cheios dessa voz intolerante que empurra os mendigos nas calçadas
derruba a seda das aranhas, mata com ácido e sarcasmo
a melodia bipolar do mar
talvez seja possível salvar a inocência
esse número que desdenha o infinito
talvez seja possível acordar todos os zeros
num coven à terra-mãe
no fundo dos olhos a pureza resiste, chama
vocês adormeceram sobre estradas de metal
ouço que em três dias nossas línguas falarão
sem medo
as palavras que a liberdade reclamar
não tenho pressa
a voz precisa do infinito.

20 janeiro 2009

Três poemas

Silêncio

Mergulhados nas branas de muitos universos
em mahasamadhi de poesia
vemos de nós os rostos que perdemos
primitiva poeira sem nome

desenhando em gozo a atmosfera
de planetas gasosos
encontramos o compasso
que traça em torno de nós
o círculo

pequena chama que nos rodeia
o cosmos
admirável onda
em que dança a Deusa-mãe

plenos de oceano
a boca
silêncio


Augúrios

Podemos dizer
num vôo de águia
o quanto esperamos da vida

mas na incerta solidão das borboletas
falamos
a língua do amor


JANUS

Abres as portas com teu sorriso ambíguo
nossas mãos de dupla face
seguram o machado da pedra do céu
somos fortes, primitivos como cristal
desbastamos o tempo dia após dia
para ficarmos como tu
o olho no passado, a mão no futuro
uma mão no xadrez, outra no punhal
alegres feito íbis
nas portas do templo
alegres como o vento soprando nas janelas
alegres como o tempo
que não sabe mais para onde ir

14 janeiro 2009

Sou

Preciso ser o que sou
andarilho em cujas mãos o vento desenhou estigmas
poeta cego para o que não seja a Deusa
assim poderei abrir as portas
e me encontrar inteiro
voltar do labirinto pela rota do espelho
desenhar o mosaico dessa palavra
única palavra
ser

05 janeiro 2009

Troppo Vecchio

Por um instante, me senti como o "velho dos dias"; como se já houvesse carregado todos os caixões, sentido todas as dores, padecido todos os estigmas, amado todas as mulheres. Mas não como um gesto de cansaço ou apatia; talvez insatisfação, como a do peregrino que depois de muito andar percebe que foi na direção oposta de seu destino.
Dizem que os velhos têm o coração endurecido; eu, por muito amar, tenho sal nas artérias, o que ele bombeia é água do mar, porque tomei o mar em grandes goles, tentando calar uma ânsia de infinito, tentando traduzir um amor sem vestes, um sentimento de miragens e nomes de deusas, que ouvi encarnação após encarnação. Mio cuore não é um músculo involuntário, é uma caverna luminosa onde nereidas se reúnem à noite para cantar.
Ano após ano armando estratégias para capturar a beleza, ano após ano tentando fotografar as mutações do tempo e do espaço, até perceber a inutilidade da poesia, a insipidez dos gestos, a insidiosa loucura que é tentar agarrar o tempo, até se sentir como um afresco pompeiano, vendo o mundo se desfazer em ruínas, enquanto você permanece como a imagem de um mundo que desapareceu, ou que nunca existiu, a não ser em você.
Vi o sol nascer muitas, muitas vezes, mas isso não me cansa; tivesse que acordá-lo todos os dias, o faria com gosto, chamaria todos os pássaros, aquelas estrelas que amanhecem e a túnica púrpura do céu e todos os dias o veria levantar-se novamente e cobrir o planeta de luz.
Faço vigílias para o sol.E devo ter feito sempre, eternidade após eternidade. Quando desço aos meus infernos nunca perco a esperança porque mesmo lá enxergo um sol; e luto por ele. Amanhecer é um direito inalienável.
Troppo vechio, bebi muitos vinhos em honra da lua; enquanto magos sinistros consultavam o fígado dos mortos, esperava o desabrochar das flores noturnas, via presságios nas pétalas que desabrochavam e nos desenhos que as marés da lua cheia faziam na areia.
Aprendi a não forçar o destino; não tentar suborná-lo, chantageá-lo, apressá-lo, amadurecê-lo a força. As frutas só têm sabor quando maduras e a maturação é um processo lento: é preciso que a seiva encontre o tempo justo de levar o dulçor pelos caminhos da árvore, é preciso um certo cansaço, e porque não dizer, um certo desencanto para dar-se por inteiro à vida. A fruta madura está pronta para morrer. Mas sua morte é a garantia de que verá outras manhãs, não mais como fruto, mas como árvore.
Ou melhor dizendo, como ela mesma. Nós velhos sabemos que a forma pouco importa. Pouco importa a garrafa, é a água que mata a sede. Os poemas transmudam-se de muitas para poucas palavras, de poucas palavras para nada, do nada para o rio, mas o que é essencial permanece, que é a sede de expressar o mundo e a dor de sentir-se separado.
Às vezes me sinto cansado, troppo vecchio, o velho dos velhos. Um simples gesto, uma palavra de sol, um sorriso de minhas filhas, uma frase como "Olá companheiro, como estás ?" e o sangue volta-me à face; sinto vontade de correr, de abraçar a todos, de xingar todos os cínicos, fazer a dança da chuva no meio da chuva em pleno viaduto até ser preso por desacatar os ventos e diluir o bom senso e a boa ordem numa garrafa de vinho.
É o que pede a liberdade de um velho de 36 anos.