Deusa, dai-nos, agora e sempre, a eterna inconformidade...
Gledson
Penso na terrivelmente bela música de Milton Nascimento e Fernando Brandt, O Que Foi Feito De Vera/ O Que Foi Feito Devera: “o que foi feito amigo/de tudo que a gente sonhou/ o que foi feito da vida/ o que foi feito de nós...”
Preciso dizer quem é esse nós; esse nós pode ser entendido como uma geração, a geração a que pertenço, a geração que nasceu em meados dos 70, que viveu ainda sob os “auspícios” da ditadura militar(ainda cantávamos o hino nacional em formação militar nas escolas), que viveu também, ainda na adolescência, os ventos da república nova, a abertura, a queda do muro de Berlim e o fim da URSS, ou seja, uma geração que nasceu e cresceu entre esperanças e medos, que se defrontou com o improvável e viu o nascer e o morrer de sonhos acalentados durante anos; particularmente, sou também um ser que sempre viveu em transição: saí muito cedo de casa, mais ou menos aos 14 anos, saí muito cedo do lugar em que nasci(vim para São Paulo em 1991, a 18 anos atrás) e inevitavelmente carrego o peso desse desenraizamento, a perca voluntária e involuntária dessa que Nietzsche chamaria de primeira natureza, essa personalidade formada ou deformada no meio da família. Cedo aprendi com Nahum Goldman que as minhas raízes estão em mim.
Mas nada simples, nada fácil. Me pergunto o que foi feito de nós, o que foi feito de nossas esperanças? Quantos de nós abandonaram os sonhos em troca de uma vida prosaica, quantos de nós desacreditaram dos sonhos porque se entregaram à lógica do sistema ou quantos de nós enlouqueceram ou sucumbiram sob o peso das drogas ou da aposta sem volta entre o abismo e o nada ?
Não saberia precisar o número e peço licença para falar de meu próprio caso particular como um elemento de geração; não que minha vida seja a expressão de um elemento universal comum a todos, mas sou um homem dessa geração e a singularidade do que vivi até agora não me isola dos outros companheiros do tempo.
Sempre pergunto a mim mesmo o que me motiva ou o que me dá esperanças para lutar por algo e o que é esse algo. Na infância, cresci sob o clima da Guerra Fria, o medo do The Day After (quem lembra do filme sobre a guerra nuclear?), de uma possível guerra EUA X URSS causada pelo idiota do Ronald Reagan ou pelo senil Brejnev (aos nove anos discutíamos sobre a bomba na hora do recreio no pátio da escola). Na adolescência tive uma militância empírica e incompleta no movimento estudantil e na Convergência Socialista, além de ter participado ativamente, tempos depois, em um grupo esotérico, onde praticamente me formei, numa busca desesperada por conhecimento. Casei muito cedo, por opção e por amor, perdi minha primeira filha, passei fome e frio quando vim para São Paulo, voltei à militância política já adulto, e ainda continuo acreditando no amor e na capacidade do homem de transformar o mundo, mudar a vida.
Mas durante todos esses anos vi o mundo dar uma guinada violenta à direita, vi o peso da ideologia capitalista e sua lógica de mercado esmagarem as boas intenções e o discurso utópico, vi antigos companheiros se converterem ao mundo burguês e prosaico ou simplesmente serem tragados pela grande mó da máquina do mundo. Conheci outros companheiros e companheiras, continuo apanhando ( e muito ) da vida por simplesmente continuar teimando, insistindo, porque acho que nunca devemos nos conformar com nada, nunca haverá um ponto de perfeição nem de repouso, no todo nossa vida sempre será incompleta e sempre em algum aspecto teremos algo a ser superado.
E me pergunto: o que foi feito de nós ? Qual nosso lugar no mundo ? O que fazemos ? Vou falar por aqueles que não perderam a esperança, porque aprenderam a cultivá-la; esse é o primeiro ponto, a esperança não é uma virtude negativa, uma virtude passiva. Entendida de modo não cristão, a esperança é a capacidade ativa de projetar o futuro através da construção consciente de valores e atitudes que nos levem a um outro patamar da existência. Não é simplesmente ficar esperando, é construir a espera possível até que o futuro se conforme em nossas mãos. E em nome dessa esperança, vejo que surge uma outra esquerda, que se utiliza do marxismo como ferramenta, mas que aprofunda o discurso marxista para que se pense também o valor do planeta, as relações ecológicas, a superação da dominação dos gêneros, que questionam a legitimidade da violência, que lutam para preservar a liberdade. Há os movimentos pela terra, pela moradia, há a defesa da infância, há as diversas militâncias de resistência contra a lógica insípida e destrutiva do capital, como há também aqueles que ainda apostam na poesia, no amor, na plena liberdade.
Somos poucos, parecemos borboletas sob o sol, mas nossa força está na convicção íntima e profunda de que o que está posto sobre a mesa do mundo está errado, que os donos do poder e todos aqueles que contribuem, direta ou indiretamente com eles e sua visão de mundo, nos levam para a destruição do planeta e que é preciso resistir, encontrar e construir outras alternativas.
Não sei se haverá um dia em que a poesia triunfará, em que o desejo superará as barricadas (Valeu Olgária!), mas esse é um dia possível desde que acreditemos nele.
Adorno dizia que faz parte do mecanismo da opressão esconder a dor que ela causa: essa é uma das nossas tarefas máximas, revelar a dor que se esconde no cotidiano, no dia a dia daqueles que são esmagados nos trens e metrôs (aqui em São Paulo, só na ilha da Fantasia das cabeças do PSDB é que o metrô é perfeito; o governador Serra vive no mundo de Bob), daqueles que vivem longe de suas famílias nas jornadas insanas de trabalho, daqueles que vivem nas ruas, dos que sofrem de depressão por não se adequarem às normas estúpidas de um cotidiano estúpido de uma sociedade estúpida, como também a dor dos animais maltratados pelo homem, a dor dos mortos do passado – na luta de classes e nas guerras, a dor das pedras do Atol de Bikini (onde os EUA testou sua bomba de hidrogênio), a dor dos mortos de Hiroshima e Nagasáqui, a dor do non-sense da vida que levamos nas garras do capital.
Só revelando essa dor poderemos ter consciência para lutar por um outro mundo, essa dor nos insere na grande corrente da vida, porque saímos de nossas ilhas privadas de subjetividade e somos capazes de enxergar o outro, e é preciso não cair no discurso pragmático – nem da direita nem da velha esquerda: as pessoas não são números (seja para o capital ou para a revolução), as pessoas são pessoas, entes singulares capazes de cosmicizarem o mundo ao redor...
A música continua: falo assim sem saudade/falo por acreditar/ que é cobrando o que fomos/ que nós podemos crescer/ outros outubros virão, outras manhãs/ plenas de sol e de luz...(...) nem vá dormir como pedra e esquecer/ o que foi feito de nós...
Sim, é preciso cobrar de si mesmo o que fomos, não para ficarmos parados no tempo – somos dinâmicos demais para isso, metamorfoses ambulantes, mas para construirmos uma linha de coerência íntima ao longo do tempo. Algo nos define logo nos primeiros anos de vida e esse algo permeará toda nossa vida. Uma vez falei que, apesar de ter nascido numa família numerosa, foi a arte que me salvou de ser autista, porque sempre, como último irmão, cresci meio isolado em relação aos outros. Acho que nesse caso, Homero, Nietzsche, Kafka e Platão são responsáveis, em parte, por essa ânsia permanente de auto superação e amor pelo mundo: com Homero, aprendi com Ulisses a não desistir, a sempre procurar voltar para casa, mesmo quando, como diria Bob Dylan, no direction home; com Nietzsche, aí pelos 11 anos, aprendi a desconfiar do senso comum, do estabelecido, da moral e seus subterrâneos; Kafka me ensinou que eu iria encontrar um mundo estranho e sem sentido e Platão me ensinou a procurar a beleza, essa companheira infatigável que continuo a buscar.
Sei o quanto erramos ao caminhar e sei o quanto ainda vou errar; o amor me ensinou que é preciso manter a esperança, mas nunca haverá um amor absoluto possível, porque o absoluto está como possibilidade latente em nós e não fora: o outro pode ser uma porta para ele, mas não ele. Continuarei lutando, insistindo no amor e na justiça como ideais naturais da existência, os quais são razões suficientes para dotarmos o mundo de sentido.
E aí sei que temos irmãos, no tempo e no espaço, que se encontram e se entendem por el lejano mirar, que aspiram os mesmos tons e buscam os mesmos horizontes, almas gêmeas revolucionárias que mantêm acesas as chamas do amor e da liberdade, que podem dizer sem medo o que foi feito de nós...
Outros outubros virão...então, que venham! E sejam plenos como deve ser toda a vida...
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