25 agosto 2007

Osíris Rei - Monólogo


Monólogo em 2 Atos

Osíris, rei dos mundo dos mortos, lembra a vida e a morte, lembra do passado e do futuro. E lembra e anseia por Ísis.

- Não posso recolher de mim o que perdi, porque não sou inteiro. Estou em muitos lugares, muitos lugares agora são os nomes do que sou, porque minha carne virou terra e como terra, estou nas sementes, nas espigas desse trigo que cresce sob a sombra poderosa do Nilo. Não posso me tornar o que já fui, não seria o mesmo - tantas cicatrizes me tornaram outro, marcado pela dor e além dela - o gosto de terra nas veias, os olhos, paisagens. Porque agora sou rei do mundo dos mortos, como outrora o fui do mundo dos vivos, esse Egito que, brotando do ventre da eternidade, espalhava seus frutos pela terra. Mas os mortos são os puros, a quem nada mais resta, a quem nada mais se pode tirar. Eis-me aqui a espera de tua plenitude, minha irmã, minha alma, minha porção maior. Amor. Amor era nascer ao teu lado antes das cortinas do tempo, amor era ouvir tua voz marulhar meu nome nas festas de Abidos, sentir teu perfume de lótus ao tocar tua pele morena de Nilo. Nada, nem os anéis do tempo, nem o esquecimento da memória humana, me afastará de ti, pois sou Osíris, senhor do ato e baixo Egito, regente da terra dos deuses e da terra dos homens, regente do submundo, e meu sangue é teu sangue, tua vida é meu sêmen, teu ka é meu ka, minhas entranhas são a gestação do impronunciável que teu nome irá dizer. Teu amor, nosso amor, é a música do mundo, meu amor, minha paisagem, Ísis, ouves a voz da estrela Sírios.


- Em Biblos, a escuridão era útero, eu seria o fruto a pender sob as raízes de uma tamargueira. A traição, porque moeda tão amarga tem que inundar os corações ? Porque Seth, o vermelho, teria o gosto do assassínio contra mim ? Nascêramos muito além do tempo, salve minha mãe, Nut, que carregaste-me em teu ventre, entre estrelas e as águas nunca pronunciadas. Salve meu pai, Geb, terra de perfumada cor, horizonte dos viventes, cruzamento de mundos. Salve Néftis, minha irmã, bailando na solidão e no deserto. Salve Ísis, meu amor, luz da minha vida, desde antes da eternidade. Do mesmo ventre, da mesma semente, eu e Seth. Seth, meu irmão, meu inimigo. Juntos na inimizade desde que os homens abriram seus olhos de toupeira, seu olhos de cegueira noturna. Falo para os homens. Os deuses estão dentro de mim e são minha voz. Eis que Rá desperta de minha garganta com a manhã que gosta, Bastet devasta as legiões de Seth, brotando de uma lágrima, Sekimet coroando o horizonte com meu olhar marrom. Eu sou Atum e mordo minha própria cauda. Eu sou Geb e sou os fundamentos do mundo que não se vê.

- Nasci além do tempo e da eternidade, no ventre de minha mãe Nut, que me alimentou com seu leite de estrelas, que me deu seu sangue de espaços vazios, de imensidões inexploradas. Sou o pai de minha mãe, sou o pré-existente, cuja forma minha mãe trouxe à tona do mar além. No princípio, era tudo coração, a minha e a tua alma juntas no mar primordial. Depois, o ouvido e a língua juntos na aurora, o mistério secreto do que sou revelando-se, anunciando-se e escondendo-se. Salve, oh Nut, minha primeira mãe, que me modelaste do oceano primevo, que ouvistes o eco de minha voz sobre os penhascos do indefinível e intuístes minha forma, olhastes para a água e vistes meu rosto. Salve, oh Nut, tu que és o primeiro gesto, salve, tu que criastes o movimento, minha mãe e filha. Salve Geb, meu pai, oh fundamento e estabilidade, âncora e pedra para um mar desconhecido, casa para os homens. Salve Geb, meu pai, meu filho, de cuja semente plasmou-se meu coração antigo, resgatando-me da plenitude silenciosa, trazendo-me para os braços de Nut.

- Porque nasci sou vosso filho, porque sou antes de vós, sou vosso pai. De Atum ao mundo inferior passava o fio do meu destino, tendo ao meio a terra dos homens, outrora também terra dos deuses. Conto-me para restaurar minha lembrança e as lembranças do fundamento. Canto-me para evocar o ouro dos tempos e mostrar aos homens o esplendor do mundo sob Ma’ath, num reinado que a muito se desfez.



2o. Ato

OSÍRIS REI

- Um dia o céu seria tomado por arco-íris de sangue, mas isso seria o futuro. O Vermelho de Seth, os cabelos ruivos do céu. Mas o tempo traria de volta os frutos da eternidade. Naquele presente, que agora é passado - ainda que pouco me importe as entradas e saídas do tempo -, naquele presente, eu era rei, rei e senhor do Egito, senhor das cataratas do Nilo Azul, senhor do Delta, senhor de Bubástis, de Heliópolis, de Abidos. As estações cresciam sob a luz da estrela Sírios, tu minha irmã, Ísis, me fecundava com teu amor e nosso amor fecundava a terra inteira..

- Mas o passado não importa, agora que minha voz ecoa na eternidade. Sou senhor dos mundo dos mortos, sou o senhor das passagens, dos intervalos entre mundos, das transições entre os universos. Essa é a plenitude, da tensão entre um e outro estado, da alegria que se tem entre a partida e a chegada, desse intervalo que é tudo. Povos bárbaros chamariam esse estado de apoteose. A plenitude do sol no céu não existe sem o tempo que Rá gasta entre o horizonte do nascimento e o horizonte do declínio - a força se acumula aos poucos, o espírito vai devagar se realizando e quando ele aparece em seu esplendor, já está à beira de seu declínio. Então, a mesma coisa entre a morte e a vida. Sou o deus dos mortos, mas não dos que já estavam mortos em vida, mortos por não ouvirem as vozes da vida, por corromperem o ritmo das estações, por abortarem a vida do trigo, por falsificarem o óleo do sésamo, por negarem à vida e à terra os frutos que são seus de direito. Sou o deus dos mortos, dos que largaram aos dentes de Sobek o destino de seus egos, dos que colheram a escândea no tempo certo, dos que ouviram a voz de Anúbis, meu filho, ecoar em meio a noite anunciando os ritmos da vida, dos que traziam Ma’ath em meio ao coração.

- Ma’ath, o que seria dos deuses e dos homens sem ti ? Tu, que trazes o som da balança para os ouvidos insones, tu, que guardas a luz um dia vista para os dias futuros, quando ela faltará, diz-me, oh Ma’ath, o que seria de mim sem tua esperança, quando pela primeira vez me via afastado de minha amada, quando pela primeira vez vi a morte ? Morri na obscuridade, naquele que se tornaria um segundo útero para mim, esquife fruto das sinistras intenções de Seth. Seth, teu nome seja amaldiçoado, que Sobek estraçalhe teus membros, que Hórus te arranque os olhos, não precisamos de tuas limitações, não precisamos que nos tolha nosso senso de infinito, não adianta furtar nossas asas de pássaro, nem servir-nos tua cicuta como leite - a força da vida vem à tona em busca do semelhante, da mais ínfima até a maior semente, a semente do humano, a força quer renascer, a força que surgir em busca do seu amor.

- Ísis, Ísis, aqui fala teu irmão, aqui fala o teu amor: lembro-me de tua voz de andorinha a ecoar sobre meu túmulo, meu corpo entre as raízes de uma tamargueira a se animar com o som da tua voz - cada parte do meu corpo lembrava do teu, meu falo lembrava de tua vagina, minha boca de teus seios, minhas mãos de tuas mãos, meus ouvidos de tua voz, meu ser inteiro chamava por ti.

- Sei o que sou, sou o porvir e o nada, sou imagem e movimento, sou a eterna transição entre os seres, a crista que dá a forma à onda. Compreenderão os homens e os deuses que tudo é porvir ? Entenderão que meu rosto é o rosto da eterna força, que assume uma face para a temporalidade, para os que vivem na temporalidade ? Porque viemos da eternidade por caminhos desconhecidos, Geb e Nut, Shu e Tefnut, Osíris e Ísis, mil rostos de uma mesma força, espelhos diferentes para o eterno sem face, mas não sem nome - seu nome é amor, ele só existe quando o outro o reflete, quando há outro para repartir sua chama.

- Shu, fogo primordial, leão que partiu do sem nome, fogo que tudo cria pelas mãos do criador, Ptah, divino ferreiro, que modelastes a aparência, que destes ao porvir a forma do ser, luzes criadoras que brilham sobre o mundo, ouviram a voz de uma deusa a lamentar sua sina ? Ouviram o lamento que partiu de um coração que comporta o mundo ? É a voz da minha amada, é a voz do meu amor, que se espalha entre céus e terras, é a voz do meu amor a beijar meu hálito. Sou todo memória de ti, e como memória, sou passado e presente. Tu recolhestes meu corpo em Biblos e me amparastes no deserto com teus ritos secretos, teu amor reunia minha essência temporal, meu corpo aos poucos vibrava as cordas da temporalidade. Meu ka é o ka da vida inteira e a vida inteira é uma nota do porvir somada num instante. Anúbis velava por mim, junto dos outros animais do deserto. Tu expulsastes as hordas de Seth na forma de Sekimet, Toth velava para que a noite ocultasse minha presença enquanto o sopro da vida não houvesse retornado inteiro. Mas Seth, o maldito Seth, me alcançou na obscuridade e repartiu meu corpo como quem divide uma fruta em muitas partes. Clamei por ti desde o silêncio, clamei por ti da obscuridade, meus corpos estavam à beira do corpo e agora eu era nada, passagem desfeita, um falo para Sobek, o resto para o Nilo inteiro, minha alma em todos os lugares.


III

- Poderia trazer meu coração de volta ao tempo - como fonte que pulsa e brota, rio que amanhece no meio do caminho, ele surgiria irradiando todas as águas possíveis, todos os Nilos possíveis, de estrelas e arco-íris, de palmeira e jade. Rios de luzes amanhecidas tardiamente, rios de montanha, esgueirando-se como amante nas costas da amada, rios de silêncio. Meu coração brotaria no lótus, meu coração chegaria carregado dos estranhos frutos da eternidade, meu coração se vestiria da noite mais pura, e o tempo, o tempo renasceria com as mãos das crianças azuis.

- Tenho em mim a solidão do mistério, e o mistério da presença que se quer irremediável. Lembro de teus olhos de ágata adormecida, é a luz do sol que amanhece o transe da bruma da manhã, é o sangue que anima os passos da aurora -teu olhar vaga, teu olhar vela: sou tua luz que amanhece na terra dos mortos, sou a solidão da presença que a tudo penetra, mas só a si se faz compreender.

- Meu coração voltou ao tempo pelas mãos de meu filho. Salve Hórus, duas vezes nascido, senhor das terras baixas e das terras altas. Salve tu, que vencestes Seth, que atravessastes os portais dos mundos e trouxestes a paz aos fundamentos, eu sou tu e tu és o que sou, gerações nascerão e morrerão como as areias levadas pelos ventos dos deserto, mas tu permanecerás porque tua essência é o fundamento e fundamento é permanência. Neith é fundamento, Neith, mãe de Sobek, o que recolhe, o que procura as sementes da origem. Salve Sobek, que guiastes os passos de Ísis a minha procura. Salve Sobek, que guardastes meu falo. Salve a herança dos tempos, Ísis, Hórus, Sobek, salve a permanência, a aparência do porvir que por um momento se consegue ouvir. A permanência é a música do transitório que se quer ouvir. O verdadeiro permanente é o transitório, a luz. A luz sou eu. Ela não tem destino. Ilumina a todos, homens, cobras, chacais. À noite, quando as estrelas brilham sobre os desertos, águas e areias, a mesma luz brilhará nos corações sedentos de vida - a vida vem em espirais profundas do infinito, espalha-se qual vento do deserto nas ruas de Heliópolis. Nos suspiros dos mortos, na alegria dos vivos, no coração do mundo subterrâneo, em teus olhos de jaspe, Oh Ísis, nas escamas de Sobek, a mesma chama navega nas várias formas, sou eu que habito a noite, o dia, o não, o sim, a eternidade, a alegria.

- E quando minha voz repete os mistérios do mundo, quando os poetas repetem o canto da minha história, a minha morte-vida, o mundo ressurge, a luz vibra: o meu e o teu nome, Oh Ísis, ressurgem das auroras sombrias como a lua em meio ao lago, e meu coração vibra com teu nome, a saudade amanhece, minha voz nesse espelho do mundo cresce como o sol nas pirâmides e eu digo- eu te amo.

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