25 agosto 2007

O Colosso de Big Sur


A Grécia e Henry Miller

Devo a mim mesmo uma viagem à Grécia; as razões são as mais variadas possíveis, de ordem afetiva, intelectual e até familiar. Explico-me: não que eu tenha parentes gregos (não que eu saiba), mas a Grécia sempre foi, para mim, desde a infância, uma espécie de lar espiritual, um lugar mil vezes vislumbrado na imaginação, a partir do momento em que li a Odisséia de Homero; sei que há uma imensa distância no tempo entre a Grécia homérica e a Grécia de agora, mas sabia que paisagem grega fundamentalmente seria a mesma.
A leitura de Homero, e depois a de Ésquilo, Sófocles, bem como de todo o horizonte espiritual desenhado pelos gregos foram definitivos para mim, para minha formação: minha mente é pagã, no sentido délfico do termo, ainda que contaminada pela heresia cristã, poluída pelos terrores e vícios do dogma cristão. A viagem que prometi a mim mesmo desde a infância, de ir à Grécia, é uma dívida de gratidão a uma cultura, a um povo, a um horizonte.
Nada me parece mais antípoda da nossa estúpida sociedade massificada do que a antiguidade pagã, grega, o que por si só já é motivo para conferir ao passado e à geografia que o gerou o estatuto de mitos. Mas quando lemos
O Colosso de Marússia, de Henry Miller, descobrimos que a Grécia ainda pulsa com toda sua força, na sua paisagem única, na alma de seus homens e mulheres.
O colosso a que Miller se refere é o poeta Katsimbalis, figura deslumbrante, onipresente em todo o livro. Mas se Miller enxerga em Katsimbalis o símbolo do humano, pela inteira liberdade, pelas potencialidades plenamente realizadas, pela absoluta coragem e despojamento, o próprio Miller vai se revelando um outro colosso, um
outsider a proclamar aos quatro ventos a estupidez da assepsia civilizatória , sua absoluta falta de sentidos.
Acho que foi Gide que disse uma vez que com bom sentimentos não se faz boa literatura. Bom, literatura não é puro sentimento, literatura é forma, o que não quer dizer que não se possa expressar sentimentos, ter uma tonalidade afetiva, emocional. Literatura é vida, e como a vida, não podemos isolá-la em unidades estanques, fechadas sobre si mesmas - razão, sentimentos, vontade, etc -; assim como a vida é a literatura, só pode ser apreendida como um todo, não adianta dissecá-la.
A viagem de Miller é mágica: entramos em outro universo, o céu grego solta as palavras no ar e elas se unem freneticamente em mil cópulas instantâneas, gerando milhares de anjos de fogo. A recusa ao lugar comum, a grande percepção da unidade da vida e, ao mesmo tempo, o absoluto domínio da escrita, a consciência plena daquilo que se escreve transformam
O Colosso de Marússia numa obra única; aliás, ele não é uma obra, é um acontecimento, um momento realizado, uma realização do acaso objetivo.
Katsimbalis, sem dúvida, deve ter sido alguém fascinante, daqueles seres onde uma intenda vontade de viver encontra uma necessária liberdade de expressão, algo como poesia em estado bruto, e puro. A poesia só pede isso, que o sol esteja por dentro e que possa sair pelos poros da caneta, pela febre dos olhos, pela combustão interna das palavras; alguém como Guimarães Rosa: quem já leu
Corpo de Baile (prefiro a 1a. edição, em dois volumes) sabe o que estou dizendo - é epifania pura: natureza rediviva.
A leitura de Miller no
Colosso também: ao nomear ele torna presente o nomeado, do modo mais grego possível, pois Heidegger não dizia que o grego é a única língua em que se dizendo se nomeia ? Katsimbalis salta aos nossos olhos, parece que podemos tocá-lo, sentir o sabor de retsina que desce pela sua garganta, saborear o carneiro assado e cantar com os galos da Ática. Katsimbalis é puro, primitivo, e aí está sua grandeza. Miller de alguma forma é reativo, e sua recusa ao american way of life, irremediavelmente, aumenta sua aura mítica.
Aprendemos, com Miller, a não ter medo das palavras, nem da vida. Isso não quer dizer que o caminho das palavras seja um caminho fácil, mas nem por isso somos obrigados a coabitar com a esterilidade e o vazio; nossa escritura não precisa ter ar de papel moeda, nem cheirar a desinfetante ou clorofórmio: não importa a cor das letras, mas a palavra é o que importa. Não é a teoria que deve ter a chave da literatura. A literatura é um labirinto de muitas entradas e poucas saídas, e as chaves estão perdidas.
Sim, devo a mim mesmo uma viagem à Grécia. E depois que sair de Marússia, vou à Big Sur. É vizinho.




Um comentário:

Anônimo disse...

Caramba!!! Adorei!!! Dá pra fazer um livro!!! Mas onde fica Marússia? Eu acaho que o rio amazonas deságua nas cataratas do iguaçu... :( hehe!

*Vivi* (sim, me conhece!)