25 agosto 2007

Osíris Rei - Monólogo


Monólogo em 2 Atos

Osíris, rei dos mundo dos mortos, lembra a vida e a morte, lembra do passado e do futuro. E lembra e anseia por Ísis.

- Não posso recolher de mim o que perdi, porque não sou inteiro. Estou em muitos lugares, muitos lugares agora são os nomes do que sou, porque minha carne virou terra e como terra, estou nas sementes, nas espigas desse trigo que cresce sob a sombra poderosa do Nilo. Não posso me tornar o que já fui, não seria o mesmo - tantas cicatrizes me tornaram outro, marcado pela dor e além dela - o gosto de terra nas veias, os olhos, paisagens. Porque agora sou rei do mundo dos mortos, como outrora o fui do mundo dos vivos, esse Egito que, brotando do ventre da eternidade, espalhava seus frutos pela terra. Mas os mortos são os puros, a quem nada mais resta, a quem nada mais se pode tirar. Eis-me aqui a espera de tua plenitude, minha irmã, minha alma, minha porção maior. Amor. Amor era nascer ao teu lado antes das cortinas do tempo, amor era ouvir tua voz marulhar meu nome nas festas de Abidos, sentir teu perfume de lótus ao tocar tua pele morena de Nilo. Nada, nem os anéis do tempo, nem o esquecimento da memória humana, me afastará de ti, pois sou Osíris, senhor do ato e baixo Egito, regente da terra dos deuses e da terra dos homens, regente do submundo, e meu sangue é teu sangue, tua vida é meu sêmen, teu ka é meu ka, minhas entranhas são a gestação do impronunciável que teu nome irá dizer. Teu amor, nosso amor, é a música do mundo, meu amor, minha paisagem, Ísis, ouves a voz da estrela Sírios.


- Em Biblos, a escuridão era útero, eu seria o fruto a pender sob as raízes de uma tamargueira. A traição, porque moeda tão amarga tem que inundar os corações ? Porque Seth, o vermelho, teria o gosto do assassínio contra mim ? Nascêramos muito além do tempo, salve minha mãe, Nut, que carregaste-me em teu ventre, entre estrelas e as águas nunca pronunciadas. Salve meu pai, Geb, terra de perfumada cor, horizonte dos viventes, cruzamento de mundos. Salve Néftis, minha irmã, bailando na solidão e no deserto. Salve Ísis, meu amor, luz da minha vida, desde antes da eternidade. Do mesmo ventre, da mesma semente, eu e Seth. Seth, meu irmão, meu inimigo. Juntos na inimizade desde que os homens abriram seus olhos de toupeira, seu olhos de cegueira noturna. Falo para os homens. Os deuses estão dentro de mim e são minha voz. Eis que Rá desperta de minha garganta com a manhã que gosta, Bastet devasta as legiões de Seth, brotando de uma lágrima, Sekimet coroando o horizonte com meu olhar marrom. Eu sou Atum e mordo minha própria cauda. Eu sou Geb e sou os fundamentos do mundo que não se vê.

- Nasci além do tempo e da eternidade, no ventre de minha mãe Nut, que me alimentou com seu leite de estrelas, que me deu seu sangue de espaços vazios, de imensidões inexploradas. Sou o pai de minha mãe, sou o pré-existente, cuja forma minha mãe trouxe à tona do mar além. No princípio, era tudo coração, a minha e a tua alma juntas no mar primordial. Depois, o ouvido e a língua juntos na aurora, o mistério secreto do que sou revelando-se, anunciando-se e escondendo-se. Salve, oh Nut, minha primeira mãe, que me modelaste do oceano primevo, que ouvistes o eco de minha voz sobre os penhascos do indefinível e intuístes minha forma, olhastes para a água e vistes meu rosto. Salve, oh Nut, tu que és o primeiro gesto, salve, tu que criastes o movimento, minha mãe e filha. Salve Geb, meu pai, oh fundamento e estabilidade, âncora e pedra para um mar desconhecido, casa para os homens. Salve Geb, meu pai, meu filho, de cuja semente plasmou-se meu coração antigo, resgatando-me da plenitude silenciosa, trazendo-me para os braços de Nut.

- Porque nasci sou vosso filho, porque sou antes de vós, sou vosso pai. De Atum ao mundo inferior passava o fio do meu destino, tendo ao meio a terra dos homens, outrora também terra dos deuses. Conto-me para restaurar minha lembrança e as lembranças do fundamento. Canto-me para evocar o ouro dos tempos e mostrar aos homens o esplendor do mundo sob Ma’ath, num reinado que a muito se desfez.



2o. Ato

OSÍRIS REI

- Um dia o céu seria tomado por arco-íris de sangue, mas isso seria o futuro. O Vermelho de Seth, os cabelos ruivos do céu. Mas o tempo traria de volta os frutos da eternidade. Naquele presente, que agora é passado - ainda que pouco me importe as entradas e saídas do tempo -, naquele presente, eu era rei, rei e senhor do Egito, senhor das cataratas do Nilo Azul, senhor do Delta, senhor de Bubástis, de Heliópolis, de Abidos. As estações cresciam sob a luz da estrela Sírios, tu minha irmã, Ísis, me fecundava com teu amor e nosso amor fecundava a terra inteira..

- Mas o passado não importa, agora que minha voz ecoa na eternidade. Sou senhor dos mundo dos mortos, sou o senhor das passagens, dos intervalos entre mundos, das transições entre os universos. Essa é a plenitude, da tensão entre um e outro estado, da alegria que se tem entre a partida e a chegada, desse intervalo que é tudo. Povos bárbaros chamariam esse estado de apoteose. A plenitude do sol no céu não existe sem o tempo que Rá gasta entre o horizonte do nascimento e o horizonte do declínio - a força se acumula aos poucos, o espírito vai devagar se realizando e quando ele aparece em seu esplendor, já está à beira de seu declínio. Então, a mesma coisa entre a morte e a vida. Sou o deus dos mortos, mas não dos que já estavam mortos em vida, mortos por não ouvirem as vozes da vida, por corromperem o ritmo das estações, por abortarem a vida do trigo, por falsificarem o óleo do sésamo, por negarem à vida e à terra os frutos que são seus de direito. Sou o deus dos mortos, dos que largaram aos dentes de Sobek o destino de seus egos, dos que colheram a escândea no tempo certo, dos que ouviram a voz de Anúbis, meu filho, ecoar em meio a noite anunciando os ritmos da vida, dos que traziam Ma’ath em meio ao coração.

- Ma’ath, o que seria dos deuses e dos homens sem ti ? Tu, que trazes o som da balança para os ouvidos insones, tu, que guardas a luz um dia vista para os dias futuros, quando ela faltará, diz-me, oh Ma’ath, o que seria de mim sem tua esperança, quando pela primeira vez me via afastado de minha amada, quando pela primeira vez vi a morte ? Morri na obscuridade, naquele que se tornaria um segundo útero para mim, esquife fruto das sinistras intenções de Seth. Seth, teu nome seja amaldiçoado, que Sobek estraçalhe teus membros, que Hórus te arranque os olhos, não precisamos de tuas limitações, não precisamos que nos tolha nosso senso de infinito, não adianta furtar nossas asas de pássaro, nem servir-nos tua cicuta como leite - a força da vida vem à tona em busca do semelhante, da mais ínfima até a maior semente, a semente do humano, a força quer renascer, a força que surgir em busca do seu amor.

- Ísis, Ísis, aqui fala teu irmão, aqui fala o teu amor: lembro-me de tua voz de andorinha a ecoar sobre meu túmulo, meu corpo entre as raízes de uma tamargueira a se animar com o som da tua voz - cada parte do meu corpo lembrava do teu, meu falo lembrava de tua vagina, minha boca de teus seios, minhas mãos de tuas mãos, meus ouvidos de tua voz, meu ser inteiro chamava por ti.

- Sei o que sou, sou o porvir e o nada, sou imagem e movimento, sou a eterna transição entre os seres, a crista que dá a forma à onda. Compreenderão os homens e os deuses que tudo é porvir ? Entenderão que meu rosto é o rosto da eterna força, que assume uma face para a temporalidade, para os que vivem na temporalidade ? Porque viemos da eternidade por caminhos desconhecidos, Geb e Nut, Shu e Tefnut, Osíris e Ísis, mil rostos de uma mesma força, espelhos diferentes para o eterno sem face, mas não sem nome - seu nome é amor, ele só existe quando o outro o reflete, quando há outro para repartir sua chama.

- Shu, fogo primordial, leão que partiu do sem nome, fogo que tudo cria pelas mãos do criador, Ptah, divino ferreiro, que modelastes a aparência, que destes ao porvir a forma do ser, luzes criadoras que brilham sobre o mundo, ouviram a voz de uma deusa a lamentar sua sina ? Ouviram o lamento que partiu de um coração que comporta o mundo ? É a voz da minha amada, é a voz do meu amor, que se espalha entre céus e terras, é a voz do meu amor a beijar meu hálito. Sou todo memória de ti, e como memória, sou passado e presente. Tu recolhestes meu corpo em Biblos e me amparastes no deserto com teus ritos secretos, teu amor reunia minha essência temporal, meu corpo aos poucos vibrava as cordas da temporalidade. Meu ka é o ka da vida inteira e a vida inteira é uma nota do porvir somada num instante. Anúbis velava por mim, junto dos outros animais do deserto. Tu expulsastes as hordas de Seth na forma de Sekimet, Toth velava para que a noite ocultasse minha presença enquanto o sopro da vida não houvesse retornado inteiro. Mas Seth, o maldito Seth, me alcançou na obscuridade e repartiu meu corpo como quem divide uma fruta em muitas partes. Clamei por ti desde o silêncio, clamei por ti da obscuridade, meus corpos estavam à beira do corpo e agora eu era nada, passagem desfeita, um falo para Sobek, o resto para o Nilo inteiro, minha alma em todos os lugares.


III

- Poderia trazer meu coração de volta ao tempo - como fonte que pulsa e brota, rio que amanhece no meio do caminho, ele surgiria irradiando todas as águas possíveis, todos os Nilos possíveis, de estrelas e arco-íris, de palmeira e jade. Rios de luzes amanhecidas tardiamente, rios de montanha, esgueirando-se como amante nas costas da amada, rios de silêncio. Meu coração brotaria no lótus, meu coração chegaria carregado dos estranhos frutos da eternidade, meu coração se vestiria da noite mais pura, e o tempo, o tempo renasceria com as mãos das crianças azuis.

- Tenho em mim a solidão do mistério, e o mistério da presença que se quer irremediável. Lembro de teus olhos de ágata adormecida, é a luz do sol que amanhece o transe da bruma da manhã, é o sangue que anima os passos da aurora -teu olhar vaga, teu olhar vela: sou tua luz que amanhece na terra dos mortos, sou a solidão da presença que a tudo penetra, mas só a si se faz compreender.

- Meu coração voltou ao tempo pelas mãos de meu filho. Salve Hórus, duas vezes nascido, senhor das terras baixas e das terras altas. Salve tu, que vencestes Seth, que atravessastes os portais dos mundos e trouxestes a paz aos fundamentos, eu sou tu e tu és o que sou, gerações nascerão e morrerão como as areias levadas pelos ventos dos deserto, mas tu permanecerás porque tua essência é o fundamento e fundamento é permanência. Neith é fundamento, Neith, mãe de Sobek, o que recolhe, o que procura as sementes da origem. Salve Sobek, que guiastes os passos de Ísis a minha procura. Salve Sobek, que guardastes meu falo. Salve a herança dos tempos, Ísis, Hórus, Sobek, salve a permanência, a aparência do porvir que por um momento se consegue ouvir. A permanência é a música do transitório que se quer ouvir. O verdadeiro permanente é o transitório, a luz. A luz sou eu. Ela não tem destino. Ilumina a todos, homens, cobras, chacais. À noite, quando as estrelas brilham sobre os desertos, águas e areias, a mesma luz brilhará nos corações sedentos de vida - a vida vem em espirais profundas do infinito, espalha-se qual vento do deserto nas ruas de Heliópolis. Nos suspiros dos mortos, na alegria dos vivos, no coração do mundo subterrâneo, em teus olhos de jaspe, Oh Ísis, nas escamas de Sobek, a mesma chama navega nas várias formas, sou eu que habito a noite, o dia, o não, o sim, a eternidade, a alegria.

- E quando minha voz repete os mistérios do mundo, quando os poetas repetem o canto da minha história, a minha morte-vida, o mundo ressurge, a luz vibra: o meu e o teu nome, Oh Ísis, ressurgem das auroras sombrias como a lua em meio ao lago, e meu coração vibra com teu nome, a saudade amanhece, minha voz nesse espelho do mundo cresce como o sol nas pirâmides e eu digo- eu te amo.

O Colosso de Big Sur


A Grécia e Henry Miller

Devo a mim mesmo uma viagem à Grécia; as razões são as mais variadas possíveis, de ordem afetiva, intelectual e até familiar. Explico-me: não que eu tenha parentes gregos (não que eu saiba), mas a Grécia sempre foi, para mim, desde a infância, uma espécie de lar espiritual, um lugar mil vezes vislumbrado na imaginação, a partir do momento em que li a Odisséia de Homero; sei que há uma imensa distância no tempo entre a Grécia homérica e a Grécia de agora, mas sabia que paisagem grega fundamentalmente seria a mesma.
A leitura de Homero, e depois a de Ésquilo, Sófocles, bem como de todo o horizonte espiritual desenhado pelos gregos foram definitivos para mim, para minha formação: minha mente é pagã, no sentido délfico do termo, ainda que contaminada pela heresia cristã, poluída pelos terrores e vícios do dogma cristão. A viagem que prometi a mim mesmo desde a infância, de ir à Grécia, é uma dívida de gratidão a uma cultura, a um povo, a um horizonte.
Nada me parece mais antípoda da nossa estúpida sociedade massificada do que a antiguidade pagã, grega, o que por si só já é motivo para conferir ao passado e à geografia que o gerou o estatuto de mitos. Mas quando lemos
O Colosso de Marússia, de Henry Miller, descobrimos que a Grécia ainda pulsa com toda sua força, na sua paisagem única, na alma de seus homens e mulheres.
O colosso a que Miller se refere é o poeta Katsimbalis, figura deslumbrante, onipresente em todo o livro. Mas se Miller enxerga em Katsimbalis o símbolo do humano, pela inteira liberdade, pelas potencialidades plenamente realizadas, pela absoluta coragem e despojamento, o próprio Miller vai se revelando um outro colosso, um
outsider a proclamar aos quatro ventos a estupidez da assepsia civilizatória , sua absoluta falta de sentidos.
Acho que foi Gide que disse uma vez que com bom sentimentos não se faz boa literatura. Bom, literatura não é puro sentimento, literatura é forma, o que não quer dizer que não se possa expressar sentimentos, ter uma tonalidade afetiva, emocional. Literatura é vida, e como a vida, não podemos isolá-la em unidades estanques, fechadas sobre si mesmas - razão, sentimentos, vontade, etc -; assim como a vida é a literatura, só pode ser apreendida como um todo, não adianta dissecá-la.
A viagem de Miller é mágica: entramos em outro universo, o céu grego solta as palavras no ar e elas se unem freneticamente em mil cópulas instantâneas, gerando milhares de anjos de fogo. A recusa ao lugar comum, a grande percepção da unidade da vida e, ao mesmo tempo, o absoluto domínio da escrita, a consciência plena daquilo que se escreve transformam
O Colosso de Marússia numa obra única; aliás, ele não é uma obra, é um acontecimento, um momento realizado, uma realização do acaso objetivo.
Katsimbalis, sem dúvida, deve ter sido alguém fascinante, daqueles seres onde uma intenda vontade de viver encontra uma necessária liberdade de expressão, algo como poesia em estado bruto, e puro. A poesia só pede isso, que o sol esteja por dentro e que possa sair pelos poros da caneta, pela febre dos olhos, pela combustão interna das palavras; alguém como Guimarães Rosa: quem já leu
Corpo de Baile (prefiro a 1a. edição, em dois volumes) sabe o que estou dizendo - é epifania pura: natureza rediviva.
A leitura de Miller no
Colosso também: ao nomear ele torna presente o nomeado, do modo mais grego possível, pois Heidegger não dizia que o grego é a única língua em que se dizendo se nomeia ? Katsimbalis salta aos nossos olhos, parece que podemos tocá-lo, sentir o sabor de retsina que desce pela sua garganta, saborear o carneiro assado e cantar com os galos da Ática. Katsimbalis é puro, primitivo, e aí está sua grandeza. Miller de alguma forma é reativo, e sua recusa ao american way of life, irremediavelmente, aumenta sua aura mítica.
Aprendemos, com Miller, a não ter medo das palavras, nem da vida. Isso não quer dizer que o caminho das palavras seja um caminho fácil, mas nem por isso somos obrigados a coabitar com a esterilidade e o vazio; nossa escritura não precisa ter ar de papel moeda, nem cheirar a desinfetante ou clorofórmio: não importa a cor das letras, mas a palavra é o que importa. Não é a teoria que deve ter a chave da literatura. A literatura é um labirinto de muitas entradas e poucas saídas, e as chaves estão perdidas.
Sim, devo a mim mesmo uma viagem à Grécia. E depois que sair de Marússia, vou à Big Sur. É vizinho.




20 agosto 2007

Admirável Mundo Velho

Subitamente, a realidade me invade os poros: corremos rápido para o grande vácuo da indistinção, para o abismo insípido que a sociedade capitalista cavou. Já falei sobre nossa escravidão cultural, moral e psicológica, sobre nossa falta de perspectivas de valores, mas o fato é que se a ciência não isolar-se dos objetivos imediatos do capital, corremos o risco de transformarmos nosso niilismo em uma necessidade programada a ser respondida pelos favores da ciência e da civilização.Pensem na depressão e na forma como ela é tratada: como doença hereditária, condicionamento genético ou sei lá o quê, e nunca como o resultado do descompasso entre a vida do indivíduo e as pressões sociais.Escravizados que somos pela máquina social, é normal que nosso corpo-psique responda com uma permanente insatisfação, por fazer aquilo que não deseja, sem que tenha tempo para os sonhos, os sentimentos, sem que se tenha tempo para a interioridade. O indivíduo depressivo não é produtivo, então, haja diazepans, prozacs e congêneres, haja o universo das drogas permanentes e transitórias ( álcool, cigarros, televisão, cocaína, maconha, status, sexo, churrascos, músicas de ritmo acelerado, movimentos pela paz, narcóticos gerais...), para manter o indivíduo em um estado satisfatório para a máquina do estado.
Na verdade, não vivemos, somos vividos. Assumir a vida, de fato, é assumir a existência de sua própria interioridade e da necessidade de criarmos nós mesmos os eventos que ajudem a satisfazer nossas necessidades psico-culturais. Não vivemos. Assumimos o que não somos e o que não queremos pela pressão fabulosa da máquina social, pela pressão invisível da ideologia, pela pressão interna dos valores que inconscientemente assumimos e que conformam nosso ser a uma moldura que não lhe corresponde.
Deveria, aqui, conclamar ao suicídio coletivo, se ele fosse a resposta, como maneira de quebrar a opressão do estado. Mas não, clamo à revolta. Não à revolta de substituir um estado por outro (capitalista por comunista ou socialista), mas à revolta do indivíduo de auto-determinar-se, de conformar sua própria interioridade, de assumir sua escala de riscos, valores e perigos, de trilhar sua jornada interior ainda que no mundo e contra ele.
Num mundo de escravos, devemos fazer uma revolta de senhores. Não comer dos velhos alimentos enlatados, os matrix da vida, a música estúpida e repetitiva das bandas de pagode e axé, das roupas padronizadas, dos mesmos programas de fins de semana. Uma desobediência civil interior. Como diria o grande poeta surrealista Benjamin Peret: eu não como desse pão.
Quero o imprevisível, não o óbvio. A vida é sinuosa e suas águas nunca são as mesmas. É preciso romper os diques que nos prendem no horizonte da previsibilidade.
Admirável mundo velho: não me importa se tua escravidão é asséptica e tecnológica - é escravidão.
Chamo à revolta e à liberdade A liberdade de se construir o próprio destino, nem que seja na solidão impensável dos horizontes do espírito.
É preciso dizer sim à vida e não à insânia do Capital. Dialética do imprevisível: construir um horizonte de nãos para poder dizer sim.
Até a morte.

15 agosto 2007

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Rasguei a cortina em muitos pedaços

o tesouro estava do outro lado

mas eu era preso pelos pés


com lâmina afiada cortei raízes

escorria seiva pelos pés

caminhar

lacerava o aço dos meus passos


respirei o ar das montanhas

bebi água dos lagos

vi vulcões em erupção, ilhas nascendo


sangue ficou pelo caminho

no lugar de raízes, espinhos

para cada passo, um parto


o preço da liberdade é a dor.


O Que Me resta

Talvez eu não consiga dizer exatamente o que quero dizer

palavras são constelações

e o tempo se curva na memória

dobrando o vazio dos dias.

Espalhados sobre a mesa dos tempos

milhares de recordações, profecias, intuições

aguardam o canto da minha garganta

minha boca grita numa América de sonho

minhas pernas estão nas savanas d'África


Como poderei erguer o tempo

como poderei reunir a noite e o dia enquanto o sol e a lua dormem

e gritar muitos poemas para amanhecer

se estou fragmento


tenho inveja das pedras

sou mercúrio derramado que se desfaz em mil esferas

cada uma refletindo o cosmos

cada uma refletindo a outra ao seu lado

saí do ventre da terra

a fórceps

num parto de trinta anos

sujo de terra vermelha

cansado de escalar montanhas de vento

as pernas entre aço e fogo

demorei mais 10 dias para abrir os olhos

meus olhos de sol, meus olhos de sol

a primeira coisa que vi foi o sol de fora

a língua aguardou o canto de outros pássaros

para falar

sem truques existenciais

sem declinações, sem gerúndios

como as pedras

olhando o espaço ao redor

de 200 milhões de cores

de muitos anjos ocultos


mas a garganta cala

não sabe como montar o mosaico da vida

ali o absoluto em flor

aqui a morte, a fome, o cancro

numa cruz suspensa no espaço

o corpo do deus e a gangrena de um sifilítico

há uma rocha sobre meu fígado

todo dia ela arranca um terço de minhas emoções

suga minha bílis

meu sangue então respinga pela via láctea

alimentando o cosmos

alimentando meu corpo sobre a terra

soltei os ventos da minha garganta, muitos ventos de muitos nomes

agora posso dizer

o que me resta.


13 agosto 2007

Antonioni e a alienação

Quem assistiu Blow-Up, do Michelangelo Antonioni, deve lembrar da última cena do filme, em que o fotógrafo, personagem principal, fica a ver um jogo de tênis imaginário, jogado por uma trupe de mímicos e, depois, sai a correr para pegar a bola imaginária que caíra fora da quadra. Essa cena, de certo modo, resume o espírito do filme: o personagem só consegue participar efetivamente de algo que não existe, ou que, se existe, não é real, é um simulacro, um jogo imaginário. Porque durante todo o filme, o personagem que é o fotógrafo, é de uma arrogância impressionante, principalmente em seu estúdio, seu mundo privado, sua esfera própria, seu mundo: só naquele espaço ele participa de algo, porque é o mundo que ele controla. Fora dali ele é um estranho, como todos nós somos estranhos para o mundo que habitamos e em nossa intimidade reproduzimos os valores do mundo lá fora. Mas, efetivamente, como participamos do mundo ? As coisas acontecem sem que tenhamos o menor domínio sobre o que quer que seja, tudo acontece sem que consigamos determinar o rumo, no fundo só enxergamos a nós mesmos. Porque reproduzimos, na esfera individual, a lógica dos valores capitalistas, de atomizar sentimentos e indivíduos, de classificá-los segundo uma escala de valores relacionado com os nossos interesses; enxergamos, sempre inconscientemente, na maior parte das vezes, enxergamos os outros como coisas e assim também nos enxergamos, como uma coisa a serviço de alguma força exterior a nós.
Nosso mundo não se torna cada vez mais somente um simulacro das coisas ? Uma arena onde nos acostumamos a expor nossas vísceras, nossas misérias interiores como prêmios televisivos ? E que alienação pode ser maior que essa, a alienação da imagem, onde nossa própria interioridade desfaz-se como uma miragem projetada sob os refletores ?
Por isso que o fotógrafo, depois de devolver a bola imaginária, fica sozinho sobre o gramado, e a câmera se afasta, fazendo com que ele apareça, cada vez menor, na sua completa insignificância frente ao mundo...
A Esfera da Manhã

A idéia é ter um espaço para o pensar e para pensar; ainda que o pensamento seja, muitas vezes, essencialmente paranóico, porque remete o indivíduo a si mesmo, como se espelhos fossem nossos guias na descoberta do mundo, ainda assim é preciso ter esse espaço, já que quase todos os outros espaços públicos são censurados, de uma ou outra maneira.
A esfera da manhã é a forma mais completa e iluminada que nos guia em direção a alguma forma de luz, interior ou exterior. O difícil, na vida, é conseguir conciliar o interno com o externo, a natureza de dentro com a de fora, o ser com o mundo. Ficamos crucificados e suspensos no tempo, entre a eternidade e o aqui e agora, mas nada nos impede de tentar, de imaginar um outro mundo, não de sonhos, mas do real que sempre esteve aqui e não conseguimos enxergar...