08 maio 2008

Silêncio

4:00 hs, madrugada fria, a cidade quase dorme. Eu precisava desse silêncio; por mais que viva numa cidade e num mundo que, regra geral, despreza o silêncio, ele é mais que necessário. Parece que tentamos, nas sociedades contemporâneas, preencher a todo custo nosso próprio vazio interior nos enchendo de sons e imagens, como se eles fossem operar a mágica de preencher os espaços vazios dentro de nós ou então como se eles tivessem a virtude terapêutica de diminuir nossas angústias, amenizar a solidão, trazer respostas.
Os sons estão onipresentes, seja como músicas, como vozes de comando, como barulho de máquinas; nas estações de metrô, uma voz onipresente nos diz como nos comportar, o que fazer, o que não fazer; nos supermercados, outra voz nos guia pelos labirintos das promoções imperdíveis, das delícias de ocasião, das novidades anunciadas; nos consultórios e repartições, há sempre aquela música que não cessa e que todo mundo ouve mas ninguém escuta, tão mecânicos nos tornamos em nossos sentidos: olhamos, mas não vemos; ouvimos, mas não escutamos.
Há um distanciamento entre o ato da percepção (ouvir, olhar) e atenção consciente sobre as percepções (ver, escutar), o que só revela nossa alienação em relação a nós mesmos e o mundo ao redor. Quantas vezes passamos por uma mesma praça e nunca reparamos na quaresmeira que quase nos assalta com seu colorido ? Ou seja, olhamos, mas não percebemos, não sentimos sua beleza ? Quantas vezes percebemos o canto tímido dos beija-flores pousados sobre os fios ou em alguma árvore em frente à nossa casa, no meio do amanhecer ? Quase nenhuma, com certeza, porque estamos cada vez mais alienados das nossas próprias possibilidades, embotados em nossa sensibilidade, brutalizados que somos em um cotidiano que nos rouba, ou tenta nos roubar, o direito à esperança e ao sonho.
É uma estratégia do capitalismo, via senhores do marketing(que nunca é inocente), essa manipulação constante dos nossos sentidos, porque dessa maneira nos mecanizamos cada vez mais, atrofiamos nossa sensibilidade, nossa capacidade de discernimento e aí não sabemos mais o que é real, o que são de fatos nossos desejos e necessidades e aquilo que é uma imposição mercadológica: quantas vezes não presenciei, nos supermercados, as pessoas sairem correndo desesperadas ao serem anunciadas novas promoções, sem ao mínimo pensarem, refletirem, como robôs acionados a um comando de voz: a máxima de Marx em carne viva - as pessoas tornadas "sujeitos para os objetos".
Ser possuído continuamente por sons e imagens embota nossos sentidos, atrofia nosso senso estético, nos mecaniza; sem falar que aquilo que é veiculado - imagens e músicas -, invariavelmente são "produtos" que primam pela absoluta falta de gosto, de cultivo estético, tornando padrão justamente aquilo que numa crítica do gosto nem entraria numa escala de valores. Além do que essa é uma maneira de transformar todo o tempo privado, subjetivo, num tempo igual ao da produção. Como bem já haviam observado Adorno e Horkheimer, "o tempo de lazer é igual ao tempo de trabalho".
A natureza conhece os tempos de atividade e os tempos de repouso: o capitalismo é essa ruptura absoluta com a própria natureza, de maneira que a sujeita não só externamente, mas também internamente: é preciso não só controlar o curso dos rios, derrubar florestas ou transformar genes, é preciso controlar, subjugar a natureza dentro do homem - controlar sua fisiologia, seus ritmos, controlar sua psique, pois só assim o homem se torna disponível para o capital, quando ele, o homem, se mecaniza. Por isso a onipresença dos sons, das imagens, dos movimentos: maneiras de mecanizar, controlar e destruir nossa verdadeira natureza, para assim ficarmos livres para o capital.
De minha parte, amo o silêncio, objeto de luxo que a madrugada me permite desfrutar de modo quase absoluto. É uma maneira de estar a sós consigo mesmo, de ouvir nossas vozes interiores, de distinguir o que somos e o que não somos. Por trás de minha aparência errante se esconde um bicho: como qualquer animal, me escondo quando estou doente, me estresso quando enjaulado, quero hibernar quando chega o frio. E se for preciso, uivo.
Mas sei também me levantar de madrugada só pelo prazer de esperar a aurora, de sentir de leve os pequenos movimentos dos pássaros quando a luz do sol só se anuncia, de ver o céu mudar seus tons, se inundar de púrpura, rosas e azuis inexplicáveis, enquanto as estrelas desaparecem lentamente.
Me aproprio assim do tempo, e nesse tempo, posso ouvir os pássaros quebrarem a simetria do nada, posso quebrar outras simetrias, somando a percepção dessa hora mágica à memória, com a lembranças das pessoas que amo e das singularidades que vivi, algumas secretas, quase místicas; outras, cotidianas, quase banais, como é ver sempre o amanhecer. Mas cada amanhecer é único.
Aí a cidade pode acordar, gritar, espernear: os sons que queria ouvir, já ouvi; o tempo que eu queria, já roubei. Isso também é revolução.


Um comentário:

Daniel Walker disse...

Gledson,
por sugestão de sua esposa, cidinha, que foi minha aluna, acessei seus blogs e quero lhe parabenizar pelo excelente conteúdo apresentado. Você escreve bem. Detive-me mais demoradmente neste texto - Silêncio - e constatei que nele você demonstrou muita sensibilidade. Parabéns!