16 março 2008

Cartas à Martina

Carta 2

I

Martina,

tu me ouvirás ? Sim, tu escutarás minha voz, tu, fronteira de minha sanidade, limite mesmo do que sou ? Escutarás minhas palavras, que ganham ares da mais estranha solidão ? Escutarás isso que é não um lamento, mas espelho convertido em palavras ? Ouvirás como te chamo na madrugada alta, como te busco mesmo após o amanhecer, como te vejo entre os interstícios do mundo ?
Tu bombardeastes a cidadela da razão; enquanto aqui e ali, homens e rumores de homens se preparam para outras guerras, te erguestes com teus espelhos de punhais, com tua artilharia de flores pesadas, com teus venenos secretos que corroem o germe do intelecto para que eu possa renascer além, muito além dos muros da minha tão frágil sanidade.
Me derrubastes com teu perfume de rosas silvestres e amparaste-me com muitos nadas, para que eu encontre em mim uma saída.
Meus olhos de fogo enxergam milhares de luzes: vejo nos gestos a dança de fadas invisíveis, nas mulheres encontro sereias de águas que nunca enxerguei; mas um vazio me corroe por dentro, uma falta que o ego nunca saciará.
Tu me lembras o Tibete. Algum dia te aguardei na beira de um lago, esperando tuas revelações, tu, oráculo que conhece a fome da eternidade - a fome da eternidade é o tempo. Antes, muito antes das hordas chinesas invadirem o Tibete, tu recitavas mantras secretos e revelava o futuro, em enigmas que nem sempre entendi. Antes mesmo de eu nascer, antes do caótico ano de 1972.
Lago sobre a montanha: a paisagem ao redor é inóspita - o lago é tomado por pedras e quase nenhuma erva ao redor. Imagino que as águas do lago sejam o resultado mesmo do derretimento da neve no verão. A área em que o lago se encontra é uma planície em meio a um vale, na quase fronteira com a Índia. Ali, tu vaticinavas sobre o tempo; ali, dançavas as palavras que traziam inquietação e beleza. Ali, começamos uma viagem pelo transitório. Foi ali que nos separamos.

II

Sou magma, lava, pedra derretida: o amor me toma por inteiro. Aposto todas as fichas numa única jogada, se me arrisco por amor, não temo o inferno, o que importa é o coração tranquilo, esteja onde estiver: não venham me falar em virtudes burguesas, em comedimento hipócrita, quando o ser tudo quer, quando o ser toma-me de excessos. Pro's diabos minha coerência, pro's diabos o intelecto: a vida é um caminho direto ao coração: não há meias medidas no amor. Meu sangue é puro vinho de muitas gerações. As flores cheiram quais o sexo das mulheres, doce aroma de primavera cósmica, cheiro de terra molhada, nascimento dos deuses.
Perdi meus nomes, perdi meus gestos, perdi minha face, agora sou somente uma espera. Só o que permanece, o amor que dou, o amor que recebo. Amo os gestos das pessoas com âmago, amo as mulheres, outras tantas projeções e encarnações de ti. Amo o próprio amor.
Ah, os demônios batem na porta dos fundos, mas só escuto música medieval que vem pela janela, windows, winds, vento de verão, brisa quente, deserto. Não há inferno, não há condenação eterna, há intermináveis desvios que os homens inventam para não encontrarem a si mesmos, para não encarnarem sua própria natureza.
Sou vento soprado ao acaso, não há regras que delimitem o que sou ou aonde posso circular. Se é armas que preciso, pegarei em armas - punhais de Kali, venenos de cobras-reais, palavras tão certeiras quanto um tiro de fuzil na cabeça de um fascista. Se o mundo precisa de revolução, abrirei minhas veias e despejarei meu sangue para fecundar o milho maduro da revolta, jogarei minha carne para que os chacais da noite invoquem Anúbis e que Ísis venha me redimir com seus unguentos feitos da doce saliva cósmica de sua boca, de seu leite de mil vacas, das secreções de seu sexo secreto; não existo mais: eu, eu - matei um ciclope, tomei vinho no amanhecer, vi o amor em tantos rostos, tantas deusas, fui tocado até o mais profundo coração pelos olhos de uma mulher e, meu nome, meu nome é ninguém.
Ninguém, repetem os livros, os mil ecos de outros tantos gestos. Mas o gesto primordial foi o verbo copulando, o sexo verbal entre os deuses. Palavras genitais, palavras sêmen, palavras útero, súmula-sêmen-soma. Amor.

III

Na cidade cinza
deuses brincam de aquarela
estrela e tinta.

IV

Martina, minha bela, minha cara, meu amor: fui tomado pelo daemon de Eros: ele apaga os reflexos do espelho e desenha seus nomes na nossa caligrafia errante - cada vez que tento escrever meu nome, só sei o nome do outro, o nome do amor,
meu nome é orvalho
meu nome é terra
meu nome é pedra
meu nome é vitória
meu nome é ariadne, às vezes labirinto
meu nome é teia
meu nome é girassol
meu nome é maria
meu nome é brisa
meu nome é silêncio na madrugada
meu nome é madrugada
meu nome é fada
meu nome é vinho
meu nome é via-láctea
meu nome é espada
meu nome é flor-selvagem
meu nome é sexo entre orquídeas
meu nome é leite
meu nome é seio
meu nome é lingam
meu nome é yoni
meu nome é albatroz
meu nome é fogo
meu nome é raga
meu nome é rach
meu nome é trovão
meu nome é pássaro
meu nome é pai
meu nome é mãe
meu nome é transição
meu nome é lobo
meu nome é nada
meu nome é liberdade
e meu nome não é mais o que sou
meu nome é
Marte.

V
A Dança
I
O machado de dupla face
a pedra caída do céu
a lágrima no mármore
o peixe no gineceu

Poronominare jovem
Apolo envelhecido
o leite da cabra sagrada
a rocha no ventre do deus
a lua coberta de sangue
o vômito sideral
estrelas cheias de leite
os deuses dos portais

Quetzalcoatl em Tula
Hernan em Tenochtitlan
Colombo às portas da América
a roda prestes a girar
planetas na constelação de aquário
1 9 6 2
vinho, rubayat e mulheres
o paraíso de Prometeu
mil vezes a dureza mais doce de uma mulher
que o nada anônimo
antropofagia cósmica
estelas e bandeiras
em rota de colisão
amor, inscrição numa rocha
única língua possível
de redenção.

II
Vi tua face
cantos de guerra

trago tintas para o corpo
marcas selvagens para a morte

em tuas mãos sou trigo
germe que renasce após o corte
sem sorrisos
as trevas nos cercam no caminho
às vezes
a razão é
caminho da loucura

no meio da ponte
que fazia enquanto passava
meu nome caiu
pelos vãos do nada

no meio do caminho
a máscara que me cobria o rosto
se partiu na estrada

no meio da viagem
nu
sofri fome e sede de ti

perdido entre astrolábios
esquecido entre bússolas
e cartas-portulano

não resistir à morte

ela é
o reverso da cópula
num instante
o eu
se desfaz.

VI

Essa carta parece um escrito de viagem, e de alguma maneira é; o único detalhe é que a viagem não começou agora.
Não me recordo qual foi o ponto de partida: isso não importa mais. O que importa é a viagem em si.
Conhecer é o que importa.
Conhecer não somente para se deslumbrar com o conhecido, mas para mudar o conhecedor.
Paisagens são gestos.
Línguas são afetos.
Humanos são entes singulares onde conhecemos o bem e o mal.
Alguns também são paisagens.
Gestos permanentes de amor.
Não sei de onde parti, não sei o pouso de chegada.
O que importa é a língua que o coração fala.
Importa saber que outros entendam, mesmo os inanimados, os inorgânicos.
Importa saber que ao longo da viagem uma face substituirá a máscara que perdi.
Agora, penso numa música que fala do movimento incessante.
Moto-perpétuo, o amor.
Desde a mais tenra data, desde a mais longa era, quando nada era, o amor.
Tantas falhas, tantos erros cometidos, tanto medo de assumir a verdadeira natureza, de ser o que se é. Hesitei tanto.
Perdoem-me os vacilos: deuses, família, amigos, perdoem-me.
Perdoem-me a cegueira, aquela de se achar que se sabe demais, perdoem-me.
Perdoem-me os amigos, por não ter um rosto petrificado de sal.
Quero ser somente um gesto, um aceno de adeus, um beijo de amor.
Uma amizade que se esquece pela proximidade, pois esquecemos porque é como se o outro fizesse parte de nós.
Alguém que diz sim, diria Nietzsche. Um sim sem fim.
Minha bela, minha cara, a viagem - não sei onde estou. Mas quando chegar, tu saberás. Teu rosto será primeiro o que verei, na outra margem do rio.

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