04 março 2008

Cartas à Martina

Carta 1
03/03/2008
I
Cara Martina,
Estou cansado.
Desculpe-me esse início abrupto, sem preparação alguma; imagino que tu deva estar rindo desse início, pensando em como sou ansioso e ao mesmo tempo cheio de justificativas, mas não poderia ser de outra maneira.
Porque essa é uma constatação factual, algo como medir o peso de uma pedra, descobrir o resultado de uma equação, achar a localização de um tesouro: estou cansado. Mas não só fisicamente, e também não psicologicamente a ponto de pensar em suicídio: fique tranquila, essa época já passou. É um cansaço diferente, estou cansado daquilo que sou ou imaginei ser, um cansaço de ver sempre esse mesmo rosto no espelho, sempre com essa presunção humana demasiada, de ter sempre os mesmos gestos, os mesmos medos, a mesma voz.
Minha bela, nosso pobre mundo humano é tão prosaico, tão destituído de sentidos, que você nem imagina. Você sabe o quanto reparo e admiro as coisas da natureza, de aranhas minúsculas a flores gigantes, e sempre me admiro porque cada criatura vive seu papel - bem ou mal resolvido - na singela felicidade da ignorância.
Mas nós!... Quanta loucura... nunca sabemos nosso lugar na ordem das coisas, nunca conseguimos definir, nem para nós mesmos, o que somos exatamente, ou o que pretendíamos ser. Minha marca de Caim é o selo de Édipo, é sempre andar atrás da esfinge: será que o que procuro é um suicídio heróico ? Ser devorado por um monstro ? Mas a realidade é mais dura que sua própria aparência mítica: acho que Édipo e a esfinge são dois lados de uma mesma moeda e nossas entranhas foram cunhadas com o mesmo metal.
Minha bela, o que cansa é o eu, estou cansado de mim mesmo como alguém que chega ao fundo do poço e não encontra água. Isso é terrível e, de certa maneira, angustiante. Pois sei que para encontrar essa água terei que dar um salto sobre o abismo que sou. Que água poderá saciar minha sede de vida e preencher esse vazio com alguma forma de luz ? Acho que só a água de teus olhos ou mesmo de teus lábios poderá minar essa angústia, poderá saciar minha fome de ti.
É madrugada. No quarto ao lado, minhas filhas dormem. No outro quarto, dorme minha esposa; na mesa em que escrevo, uma formiga minúscula anda numa trajetória que para mim parece sem sentido, em movimentos incessantes e sem ordem aparente; essa mesa,para ela, deve ser um universo. Devo ser algo incomensurável e sem sentido para seus pequenos olhos de formiga, mesmo quando ela está em mim: sou somente uma realidade inalcançável, um todo incompreensível em torno do qual ela pode girar eternidades e eternidades.
Essa formiga sou eu.
II
Minha bela do amanhecer, se eu sou a formiga, tu és o todo, a realidade com seu véu; quis o destino, sempre generoso, que tu aparecesses na minha vida como a mais bela dama, a qual nunca esquecerei: há tanto tempo que não mais te reencontro...
Muitas pessoas vieram me perguntar quem ou o que ou onde estava Martina, como se eu controlasse teu destino, como se eu soubesse de teus passos, quando a verdade é que é tu que sabes dos meus.
Um sentimento, uma metáfora ou uma borboleta são coisas vivas, marcadas pela singularidade de quem as vivencia; só o mais tosco materialismo quer coisas concretas, toscamente concretas, a cauda de um elefante apalpada por um cego.
É a auto-suficiência intelectual que Robert Graves critica no livro A Deusa Branca e é dessa auto-suficiência que estou cansado; dessa pretensão geralmente nihilista de tentar preencher os vazios que vemos com simulacros de sentidos, como se um vazio pudesse preencher outro. Isso é impossível: o vazio que vemos somos nós.
O mundo é pleno, nós não. Sei que o bisturi da auto-crítica recai diretamente sobre meu pescoço, esse vazio também é meu, mas nada posso fazer. Esse cansaço, essa angústia, não são movimentos engendrados nem pelo intelecto nem pelo consciente, eles são impulsos autônomos da alma, sopro de palavras tuas, emanações de teus longos cabelos castanhos a nos conduzirem a outra margem, onde nem sempre o intelecto tem morada...
III
Minha bela, o dia já amanheceu com todas suas forças, com suas multicores iluminando o espaço, e nada, nada parece real para mim, é como se tudo fosse um sonho, desenhado pelas mãos de um louco sonhador na beira do mar.
Num instante a língua do mar varrerá essa paisagem, e essas mãos de devaneio criarão outra vez essa paisagem de palavras, esses sonhos de conhecimento, de tentar impor ao universo ao nosso redor, nossa marca, o grafismo da nossa tão humana presença no todo incomensurável, nesse nada gigantesco que abre suas asas em torno e ao longo de nós.
Objetos, artefatos, pessoas, paisagens, tempos: o que é enigma criado por nós ou o que é enigma de fato ? Qual o mistério que envolve o mundo ou não há mistério a não ser na linguagem ? Não que o mundo seja esvaziado, desprovido de atributos por si sós suficientes para conferir-lhe grandeza e beleza, mas será a linguagem quem criará limites aos nossos vôos, quem delimitará as fronteiras por onde andaremos.
Música, música, música, é o que esperamos: movimentos variáveis, ritmos imprevisíveis, melodias terríveis de tanta beleza que nos preencham não somente os ouvidos, mas todo nosso interior. Talvez as notas consigam dizer de nós aquilo que as palavras não conseguem, talvez a harmonia contínua traga um pouco de ordem a esse caos que somos, a esse mar de angústia em que nos transformamos.
Martina, perdoa-me todo esse desvario, perdoa-me minha sinceridade, perdoa-me essa torrente de palavras saídas de desvãos povoados de luzes e angústias; estou cansado. Sou somente uma presença incômoda, somente um simulacro de deserto. Tu, somente tu, tens a grandeza. Tua presença fere-me como uma flecha de fogo e teu amor, teu amor, resgata-me das trevas que às vezes se abatem sobre mim.
Te amo.

Nenhum comentário: