21 março 2008

Cartas à Martina

Carta 3


Minha cara, meu amor:

os valores que escolhemos, partindo de percepções e interesses, têm o caráter de poder serem potencializados em metáforas vivas, expressões quase materiais da nossa interioridade. Outrora falei da autonomia dos processos psíquicos, e é engraçado que mesmo essa autonomia, essa revelia psicológica, ela é a expressão de uma racionalidade própria da psique, nada acontece aleatoriamente, mas dentro e como consequência de um processo que muitas vezes escapa ao consciente.
Posso dizer que não erro ao te chamar de fronteira última da minha sanidade, pois de fato tu encarnas as possibilidades mais radicais da razão, de ser uma razão ativa que tem o intelecto somente como instrumento a uma teleologia maior da própria interioridade.
As dúvidas e perguntas que fiz e faço parecem-me um esforço de decodificar-me; talvez esse esforço seja paranóico; mas não é paranóico todo esforço da civilização ? Toda separação da natureza, todas as fronteiras, todo o conhecimento, não poderiam ser vistos então como um gigantesco delírio de interpretação, como diria Karl Jaspers ? Encontro uma razão maior, perto da qual nossa normalidade cristã é apenas um arremedo e domesticação. Permitam-me ser dialético na própria carne: trago em mim as contradições.
Parte de toda essa angústia é somente solidão, eu o sei; não há como compartilhar essa sensação cósmica de unidade e solidão com aqueles que gostam de futebol ou novela, ou que querem evitar, a todo custo, pensar naquilo que determina suas vidas. Então, conversamos com os diários, com as ausências, com as memórias, com os ventos.
A radicalidade desse percepção é dolorosa. Não nos consideramos melhores que ninguém: detestamos não as pessoas da massa, mas a "massa"; rejeitamos um modo de vida onde os sujeitos são determinados pelo ambiente, onde não há mais nenhuma reserva ética ou moral de preservar-se a si mesmo, um modo de vida onde tudo é passível de venda. E de compra.
Para mim ainda há territórios sagrados, espaços - interiores ou exteriores -, de pura imanência, capazes de revelarem o melhor de nós, e que devem, acima de tudo, serem preservados. Preservados principalmente da lógica destrutiva do capitalismo, que insiste em se apropriar de tudo o que porventura permanece livre. O amor, as fontes de água, florestas, rios , sentimentos profundos, a esperança, a alegria, as cores, as serpentes, os gestos de amor, são lugares onde a natureza se manifesta e se transforma, onde alçamos vôo. Os corpos, o sexo, a combustão erótica, a metamorfose das lagartas, a lenta transformação dos planetas, são espaços livres, divinos pela imanência, pela potencial liberdade, pela expressão condensada do devir em curso.
Entre o segredo e a solidão, vejo rostos desconhecidos no metrô, nas ruas, rostos anônimos marcados pela guerra contínua que é a vida. A natureza, a vida, cobram seus tributos, e acho justo pagá-los. Mas nós transformamos nossa vida em sociedade não numa guerra contínua, mas num processo sem sentido, numa autoconsumação entrópica que não leva à nada. Não há teleologia no capitalismo, não há tempo futuro no capitalismo. Ainda que rejeite o passado e procure o novo, o que se busca não é o futuro, mas maneiras mais brutais de se apropriar do presente em sua totalidade. : espaços, natureza, tempo. A produção de lucro e o consumo que ele propicia, não o que ele propiciará. As preocupações ecológicas vêm a reboque das outras preocupações em torno do lucro, porque as gerações atuais não verão o grau de destruição que estão engendrando.
Não sei se essa é a compaixão que Nietzsche tanto abominava, mas sinto-me presente no mesmo barco em que todos nós estamos a navegar: lamento que minha pessoa seja somente uma: queria ter o dom da ubiquidade ou a propriedade de multiplicar-me à vontade, para fazer tudo o que é preciso, para amar muito mais, estar ao lado de maneira total daquelas pessoas que amo, respeitando sua liberdade e individualidade, mas amando-as de maneira absoluta.
Sei que sou utópico, mas minha utopia não é um devaneio, é minha maneira de estar no mundo, assim como ser poeta é uma maneira de estar só, acho que foi Pessoa que o disse sobre ser poeta: os poetas estão sempre sós. Pago um preço por isso, mas não reclamo. Há coisas tão belas ao nosso redor: há mulheres que passam por mim que parecem sonhos e me trazem a grata sensação de que há muito mais na natureza; entre os dias de sol ou as gotas de chuva, a luz se desenha oblíqua revelando sombras, refrações, segredos; às vezes, flores brotam no asfalto, desafiando mesmo a esterilidade, e as crianças insistem em desafiar as leis, o estado e a estupidez, rindo dos homens, rindo da quase absoluta falta de sentidos que é o mundo adulto. Às vezes viajo, e vejo na beira da estrada aves de rapina de um porte tão altivo que nos olham com desprezo, a nós, humanos, nós que nos consideramos a quintessência da criação... Tudo é muito belo; o coração, muito vasto.
A musa da esperança, tão jovem, com seus longos cabelos e seu sorriso de criança, ainda é capaz de me animar os dias, de depositar em mim os frutos tão preciosos que ela traz.
Não sei qual horizonte alcançarei, não sei em qual altura se encontra a viagem que empreendi, só sei que sigo, levado pelas forças secretas do coração e pelos ventos selvagens da esperança.
Esse nome é uma flecha de fogo: ele rasga meu coração em muitas partes e então me consumo, qual Fênix do futuro, em nome do amor.
Em nome do amor.
Adeus.

16 março 2008

Cartas à Martina

Carta 2

I

Martina,

tu me ouvirás ? Sim, tu escutarás minha voz, tu, fronteira de minha sanidade, limite mesmo do que sou ? Escutarás minhas palavras, que ganham ares da mais estranha solidão ? Escutarás isso que é não um lamento, mas espelho convertido em palavras ? Ouvirás como te chamo na madrugada alta, como te busco mesmo após o amanhecer, como te vejo entre os interstícios do mundo ?
Tu bombardeastes a cidadela da razão; enquanto aqui e ali, homens e rumores de homens se preparam para outras guerras, te erguestes com teus espelhos de punhais, com tua artilharia de flores pesadas, com teus venenos secretos que corroem o germe do intelecto para que eu possa renascer além, muito além dos muros da minha tão frágil sanidade.
Me derrubastes com teu perfume de rosas silvestres e amparaste-me com muitos nadas, para que eu encontre em mim uma saída.
Meus olhos de fogo enxergam milhares de luzes: vejo nos gestos a dança de fadas invisíveis, nas mulheres encontro sereias de águas que nunca enxerguei; mas um vazio me corroe por dentro, uma falta que o ego nunca saciará.
Tu me lembras o Tibete. Algum dia te aguardei na beira de um lago, esperando tuas revelações, tu, oráculo que conhece a fome da eternidade - a fome da eternidade é o tempo. Antes, muito antes das hordas chinesas invadirem o Tibete, tu recitavas mantras secretos e revelava o futuro, em enigmas que nem sempre entendi. Antes mesmo de eu nascer, antes do caótico ano de 1972.
Lago sobre a montanha: a paisagem ao redor é inóspita - o lago é tomado por pedras e quase nenhuma erva ao redor. Imagino que as águas do lago sejam o resultado mesmo do derretimento da neve no verão. A área em que o lago se encontra é uma planície em meio a um vale, na quase fronteira com a Índia. Ali, tu vaticinavas sobre o tempo; ali, dançavas as palavras que traziam inquietação e beleza. Ali, começamos uma viagem pelo transitório. Foi ali que nos separamos.

II

Sou magma, lava, pedra derretida: o amor me toma por inteiro. Aposto todas as fichas numa única jogada, se me arrisco por amor, não temo o inferno, o que importa é o coração tranquilo, esteja onde estiver: não venham me falar em virtudes burguesas, em comedimento hipócrita, quando o ser tudo quer, quando o ser toma-me de excessos. Pro's diabos minha coerência, pro's diabos o intelecto: a vida é um caminho direto ao coração: não há meias medidas no amor. Meu sangue é puro vinho de muitas gerações. As flores cheiram quais o sexo das mulheres, doce aroma de primavera cósmica, cheiro de terra molhada, nascimento dos deuses.
Perdi meus nomes, perdi meus gestos, perdi minha face, agora sou somente uma espera. Só o que permanece, o amor que dou, o amor que recebo. Amo os gestos das pessoas com âmago, amo as mulheres, outras tantas projeções e encarnações de ti. Amo o próprio amor.
Ah, os demônios batem na porta dos fundos, mas só escuto música medieval que vem pela janela, windows, winds, vento de verão, brisa quente, deserto. Não há inferno, não há condenação eterna, há intermináveis desvios que os homens inventam para não encontrarem a si mesmos, para não encarnarem sua própria natureza.
Sou vento soprado ao acaso, não há regras que delimitem o que sou ou aonde posso circular. Se é armas que preciso, pegarei em armas - punhais de Kali, venenos de cobras-reais, palavras tão certeiras quanto um tiro de fuzil na cabeça de um fascista. Se o mundo precisa de revolução, abrirei minhas veias e despejarei meu sangue para fecundar o milho maduro da revolta, jogarei minha carne para que os chacais da noite invoquem Anúbis e que Ísis venha me redimir com seus unguentos feitos da doce saliva cósmica de sua boca, de seu leite de mil vacas, das secreções de seu sexo secreto; não existo mais: eu, eu - matei um ciclope, tomei vinho no amanhecer, vi o amor em tantos rostos, tantas deusas, fui tocado até o mais profundo coração pelos olhos de uma mulher e, meu nome, meu nome é ninguém.
Ninguém, repetem os livros, os mil ecos de outros tantos gestos. Mas o gesto primordial foi o verbo copulando, o sexo verbal entre os deuses. Palavras genitais, palavras sêmen, palavras útero, súmula-sêmen-soma. Amor.

III

Na cidade cinza
deuses brincam de aquarela
estrela e tinta.

IV

Martina, minha bela, minha cara, meu amor: fui tomado pelo daemon de Eros: ele apaga os reflexos do espelho e desenha seus nomes na nossa caligrafia errante - cada vez que tento escrever meu nome, só sei o nome do outro, o nome do amor,
meu nome é orvalho
meu nome é terra
meu nome é pedra
meu nome é vitória
meu nome é ariadne, às vezes labirinto
meu nome é teia
meu nome é girassol
meu nome é maria
meu nome é brisa
meu nome é silêncio na madrugada
meu nome é madrugada
meu nome é fada
meu nome é vinho
meu nome é via-láctea
meu nome é espada
meu nome é flor-selvagem
meu nome é sexo entre orquídeas
meu nome é leite
meu nome é seio
meu nome é lingam
meu nome é yoni
meu nome é albatroz
meu nome é fogo
meu nome é raga
meu nome é rach
meu nome é trovão
meu nome é pássaro
meu nome é pai
meu nome é mãe
meu nome é transição
meu nome é lobo
meu nome é nada
meu nome é liberdade
e meu nome não é mais o que sou
meu nome é
Marte.

V
A Dança
I
O machado de dupla face
a pedra caída do céu
a lágrima no mármore
o peixe no gineceu

Poronominare jovem
Apolo envelhecido
o leite da cabra sagrada
a rocha no ventre do deus
a lua coberta de sangue
o vômito sideral
estrelas cheias de leite
os deuses dos portais

Quetzalcoatl em Tula
Hernan em Tenochtitlan
Colombo às portas da América
a roda prestes a girar
planetas na constelação de aquário
1 9 6 2
vinho, rubayat e mulheres
o paraíso de Prometeu
mil vezes a dureza mais doce de uma mulher
que o nada anônimo
antropofagia cósmica
estelas e bandeiras
em rota de colisão
amor, inscrição numa rocha
única língua possível
de redenção.

II
Vi tua face
cantos de guerra

trago tintas para o corpo
marcas selvagens para a morte

em tuas mãos sou trigo
germe que renasce após o corte
sem sorrisos
as trevas nos cercam no caminho
às vezes
a razão é
caminho da loucura

no meio da ponte
que fazia enquanto passava
meu nome caiu
pelos vãos do nada

no meio do caminho
a máscara que me cobria o rosto
se partiu na estrada

no meio da viagem
nu
sofri fome e sede de ti

perdido entre astrolábios
esquecido entre bússolas
e cartas-portulano

não resistir à morte

ela é
o reverso da cópula
num instante
o eu
se desfaz.

VI

Essa carta parece um escrito de viagem, e de alguma maneira é; o único detalhe é que a viagem não começou agora.
Não me recordo qual foi o ponto de partida: isso não importa mais. O que importa é a viagem em si.
Conhecer é o que importa.
Conhecer não somente para se deslumbrar com o conhecido, mas para mudar o conhecedor.
Paisagens são gestos.
Línguas são afetos.
Humanos são entes singulares onde conhecemos o bem e o mal.
Alguns também são paisagens.
Gestos permanentes de amor.
Não sei de onde parti, não sei o pouso de chegada.
O que importa é a língua que o coração fala.
Importa saber que outros entendam, mesmo os inanimados, os inorgânicos.
Importa saber que ao longo da viagem uma face substituirá a máscara que perdi.
Agora, penso numa música que fala do movimento incessante.
Moto-perpétuo, o amor.
Desde a mais tenra data, desde a mais longa era, quando nada era, o amor.
Tantas falhas, tantos erros cometidos, tanto medo de assumir a verdadeira natureza, de ser o que se é. Hesitei tanto.
Perdoem-me os vacilos: deuses, família, amigos, perdoem-me.
Perdoem-me a cegueira, aquela de se achar que se sabe demais, perdoem-me.
Perdoem-me os amigos, por não ter um rosto petrificado de sal.
Quero ser somente um gesto, um aceno de adeus, um beijo de amor.
Uma amizade que se esquece pela proximidade, pois esquecemos porque é como se o outro fizesse parte de nós.
Alguém que diz sim, diria Nietzsche. Um sim sem fim.
Minha bela, minha cara, a viagem - não sei onde estou. Mas quando chegar, tu saberás. Teu rosto será primeiro o que verei, na outra margem do rio.

10 março 2008

Um Intervalo nas Cartas à Martina

Abrimos espaço para uma colaboração de um grande amigo nosso, o EDNEY(Almeida de Brito), que vem com uma reflexão sobre rupturas e mudanças, sobre o fluxo do crescimento e a coragem que temos de ter para seguirmos em frente e crescermos...

Ruptura

Edney Almeida Brito


Pensar em ruptura logo nos remete a termino, ponto final, dor, desprendimento, solidão, divisão e “reinício”.

Culpa e dúvidas são sentimentos comuns quando rompemos com um ciclo, ou mudamos o rumo de nossas vidas, de nossos sentimentos, transformando o que não nos faz bem.

Somos como uma árvore de base sólida e forte, fixadas ao chão como um alicerce, mas uma árvore tem seus galhos que crescem durante sua existência.

Imagino que cada relacionamento, cada amizade, cada amor, cada companheiro de trabalho, escola ou pessoas que apenas passam em nossas vidas e desaparecem como uma luz que se apaga, represente um galho dessa árvore. E que cada pessoa que nos fosse apresentada por um conhecido, gerasse um novo galho, e assim outro e outro.

Imagine como seria pesada a copa dessa árvore?

O peso seria insuportável. Iria se quebrar.

Mas partindo desse ponto que cada ser presente em nossa ligeira vida, representasse um galho da árvore e levando em conta o peso, a base seria demasiadamente frágil para suportar tanto peso (responsabilidade); quando perdemos alguém ou rompemos, caracteriza uma poda. Uma árvore para poder crescer saudável precisa de ser podada e cultivada, o terreno tem que ser arado.

O mesmo se aplica a nossa vida e nossos relacionamentos afetivos. O rompimento é necessário para o sustento de bases fixas e para a saúde do espírito. Rompemos com pessoas, conceitos, preconceitos e principalmente com certezas. As certezas são as podas mais cruéis e dolorosas, pois lidamos com sentimentos alheios e principalmente os que habitam o nosso mais inóspito ser, certezas que por vezes nos amarram, nos impedem de viver, de amar, de sentir, de sofrer.

O sofrer também faz parte do amadurecimento e evolução da alma, do espírito, da própria razão, razão essa que às vezes nos torna irracionais, intolerantes, Mas o que é a racionalidade? É algo que a ciência explica ou algo que julgamos saber?

Julgar, julgar e julgar, das ações mais efetuadas por humanos, e condenamos quem assume o risco dessa prática, mesmo assim perpetuamos, continuamos o ciclo, por mais que lutemos somos seguidores da marcha que rege nossas vidas.

Mas assim como a ruptura é necessária, se faz necessário ararmos a terra (nosso coração) para assim termos pessoas iluminadas que nos tornem pessoas mais felizes e pensantes.



04 março 2008

Cartas à Martina

Carta 1
03/03/2008
I
Cara Martina,
Estou cansado.
Desculpe-me esse início abrupto, sem preparação alguma; imagino que tu deva estar rindo desse início, pensando em como sou ansioso e ao mesmo tempo cheio de justificativas, mas não poderia ser de outra maneira.
Porque essa é uma constatação factual, algo como medir o peso de uma pedra, descobrir o resultado de uma equação, achar a localização de um tesouro: estou cansado. Mas não só fisicamente, e também não psicologicamente a ponto de pensar em suicídio: fique tranquila, essa época já passou. É um cansaço diferente, estou cansado daquilo que sou ou imaginei ser, um cansaço de ver sempre esse mesmo rosto no espelho, sempre com essa presunção humana demasiada, de ter sempre os mesmos gestos, os mesmos medos, a mesma voz.
Minha bela, nosso pobre mundo humano é tão prosaico, tão destituído de sentidos, que você nem imagina. Você sabe o quanto reparo e admiro as coisas da natureza, de aranhas minúsculas a flores gigantes, e sempre me admiro porque cada criatura vive seu papel - bem ou mal resolvido - na singela felicidade da ignorância.
Mas nós!... Quanta loucura... nunca sabemos nosso lugar na ordem das coisas, nunca conseguimos definir, nem para nós mesmos, o que somos exatamente, ou o que pretendíamos ser. Minha marca de Caim é o selo de Édipo, é sempre andar atrás da esfinge: será que o que procuro é um suicídio heróico ? Ser devorado por um monstro ? Mas a realidade é mais dura que sua própria aparência mítica: acho que Édipo e a esfinge são dois lados de uma mesma moeda e nossas entranhas foram cunhadas com o mesmo metal.
Minha bela, o que cansa é o eu, estou cansado de mim mesmo como alguém que chega ao fundo do poço e não encontra água. Isso é terrível e, de certa maneira, angustiante. Pois sei que para encontrar essa água terei que dar um salto sobre o abismo que sou. Que água poderá saciar minha sede de vida e preencher esse vazio com alguma forma de luz ? Acho que só a água de teus olhos ou mesmo de teus lábios poderá minar essa angústia, poderá saciar minha fome de ti.
É madrugada. No quarto ao lado, minhas filhas dormem. No outro quarto, dorme minha esposa; na mesa em que escrevo, uma formiga minúscula anda numa trajetória que para mim parece sem sentido, em movimentos incessantes e sem ordem aparente; essa mesa,para ela, deve ser um universo. Devo ser algo incomensurável e sem sentido para seus pequenos olhos de formiga, mesmo quando ela está em mim: sou somente uma realidade inalcançável, um todo incompreensível em torno do qual ela pode girar eternidades e eternidades.
Essa formiga sou eu.
II
Minha bela do amanhecer, se eu sou a formiga, tu és o todo, a realidade com seu véu; quis o destino, sempre generoso, que tu aparecesses na minha vida como a mais bela dama, a qual nunca esquecerei: há tanto tempo que não mais te reencontro...
Muitas pessoas vieram me perguntar quem ou o que ou onde estava Martina, como se eu controlasse teu destino, como se eu soubesse de teus passos, quando a verdade é que é tu que sabes dos meus.
Um sentimento, uma metáfora ou uma borboleta são coisas vivas, marcadas pela singularidade de quem as vivencia; só o mais tosco materialismo quer coisas concretas, toscamente concretas, a cauda de um elefante apalpada por um cego.
É a auto-suficiência intelectual que Robert Graves critica no livro A Deusa Branca e é dessa auto-suficiência que estou cansado; dessa pretensão geralmente nihilista de tentar preencher os vazios que vemos com simulacros de sentidos, como se um vazio pudesse preencher outro. Isso é impossível: o vazio que vemos somos nós.
O mundo é pleno, nós não. Sei que o bisturi da auto-crítica recai diretamente sobre meu pescoço, esse vazio também é meu, mas nada posso fazer. Esse cansaço, essa angústia, não são movimentos engendrados nem pelo intelecto nem pelo consciente, eles são impulsos autônomos da alma, sopro de palavras tuas, emanações de teus longos cabelos castanhos a nos conduzirem a outra margem, onde nem sempre o intelecto tem morada...
III
Minha bela, o dia já amanheceu com todas suas forças, com suas multicores iluminando o espaço, e nada, nada parece real para mim, é como se tudo fosse um sonho, desenhado pelas mãos de um louco sonhador na beira do mar.
Num instante a língua do mar varrerá essa paisagem, e essas mãos de devaneio criarão outra vez essa paisagem de palavras, esses sonhos de conhecimento, de tentar impor ao universo ao nosso redor, nossa marca, o grafismo da nossa tão humana presença no todo incomensurável, nesse nada gigantesco que abre suas asas em torno e ao longo de nós.
Objetos, artefatos, pessoas, paisagens, tempos: o que é enigma criado por nós ou o que é enigma de fato ? Qual o mistério que envolve o mundo ou não há mistério a não ser na linguagem ? Não que o mundo seja esvaziado, desprovido de atributos por si sós suficientes para conferir-lhe grandeza e beleza, mas será a linguagem quem criará limites aos nossos vôos, quem delimitará as fronteiras por onde andaremos.
Música, música, música, é o que esperamos: movimentos variáveis, ritmos imprevisíveis, melodias terríveis de tanta beleza que nos preencham não somente os ouvidos, mas todo nosso interior. Talvez as notas consigam dizer de nós aquilo que as palavras não conseguem, talvez a harmonia contínua traga um pouco de ordem a esse caos que somos, a esse mar de angústia em que nos transformamos.
Martina, perdoa-me todo esse desvario, perdoa-me minha sinceridade, perdoa-me essa torrente de palavras saídas de desvãos povoados de luzes e angústias; estou cansado. Sou somente uma presença incômoda, somente um simulacro de deserto. Tu, somente tu, tens a grandeza. Tua presença fere-me como uma flecha de fogo e teu amor, teu amor, resgata-me das trevas que às vezes se abatem sobre mim.
Te amo.

03 março 2008

Musa

Não bebi dos sete rios da sabedoria
para dizer teu nome
eis que a chama de teus olhos invisíveis
pousou minha mão
em horizontes de maio
para cantar teu nome
deusa sedenta de tributos
aos teus pés
flores, pássaros, canções
lembranças, coração, meu ser inteiro
por onde quer que eu ande
desenho mapas secretos
do que leva a ti
cartas celestes, nascimentos
o todo reduzido ao instante
a primavera numa concha de palavras
te entrego
se salto sobre abismos ou
se tropeço em rochas nuas
o amanhecer me chama com teus nomes
ferida de sol cicatriza a alma
que teus cabelos me escondam do mundo
flor aberta, rosa intacta
eis a teus pés
uma canção.