27 dezembro 2007

Fim de Ano III

Transcrevo, abaixo, a última página do livro O Anticristo, do Nietzsche. Nunca deixei dúvidas quanto ao meu próprio anticristianismo, mas às vezes é bom falar de todo mal que veio desse solo nefasto: basta lembrar que nosso modelo de civilização -eurocêntrica-, é cristão e foi esse modelo que nos trouxe aonde estamos agora: à beira do abismo. As igrejas estão sempre afiando suas garras e tentando manter a humanidade num estado de permanente idiotia, num permanente autismo espiritual: o grande salto de tigre é um salto no reino do espírito, sem deus, mas com inúmeras possibilidade humanas e além humanas. Mas é preciso sepultar, com terra nova, os produtos espúrios de dois mil anos de ignorância, atraso e cegueira.


Do AntiCristo - de Nietzsche

Lei Contra o Cristianismo

Com data do dia da salvação, primeiro dia do ano Um (em 30 de setembro de 1888, pelo falso calendário)

Guerra mortal contra o vício:o vício é o cristianismo

Primeira Proposição:
Viciosa é toda forma de ir contra a natureza. A forma humana mais viciada é o sacerdote: ele prega a contradição da natureza. Contra o sacerdote não há razões e sim cadeia.

Segunda Proposição: Toda participação a um serviço religioso é um atentado à moralidade pública. Deve-se agir com mais rigor contra protestantes do que contra católicos, mais rigorosamente contra protestantes liberais do que contra os de fé sólida. Entre as massas, quanto mais próximo se está da ciência, mais criminoso se torna ser cristão. Conseqüentemente, o criminoso dos criminosos é o Filósofo.

Terceira Proposição: O solo amaldiçoado onde o cristianismo chocou seus ovos de basílicas deve ser destruído pedra por pedra, tornando-se o lugar mais infame da terra, o terror de toda posteridade. Deve-se criar cobras venenosas nesse lugar.

Quarta Proposição: A doutrina da castidade é uma instigação pública à contradição da natureza. Todo desprezo à vida sexual, toda tentativa de contaminá-la através do conceito de "impureza" é na verdade o próprio pecado contra o espírito sagrado da vida.

Quinta Proposição: Comer à mesa com um sacerdote é proibido: dessa forma excomungá-lo-emos da sociedade honesta. O sacerdote é nosso Tschandala, temos de expulsá-lo, deixá-lo morrer de fome, impelí-lo para alguma forma de deserto.

Sexta Proposição: Deve-se chamar a "sagrada história" pelo nome que merece, de história maldita; devem-se usar as palavras "Deus", "terra da promissão", "redentor", "santo", como xingamentos, como epítetos de criminosos.

Sétima Proposição: O resto virá por si só.

26 dezembro 2007

Fim de Ano II

2007 foi um ano bom. 2008 será ainda melhor. A todos, meus abraços e o anelo de que consigamos muito mais de vida e felicidade o ano que vem.

Fim de Ano

RECADO:
Às vezes confundo pessoas com arquétipos.

13 dezembro 2007

Benjamin e Bertolucci Sob o Céu Que Nos Protege


P/ Pablo e Rosângela - Que assistiram o filme

Walter Benjamin, nas notas preparatórias às Teses Sobre O Conceito da História, fala que as revoluções, no lugar delas serem as locomotivas da humanidade, que elas são provavelmente o freio da história, que as revoluções vêm abortar o caminho do progresso, que nos levaria não a futuras evoluções, mas sim a um confronto inevitável com a barbárie.
Benjamin inverte a imagem comum do progresso como uma locomotiva que caminha para a frente ao melhor dos mundos possíveis: o progresso passa a ser então representado como uma locomotiva descontrolada que conduz à barbárie; ainda a imagem da locomotiva, mas uma locomotiva condenada ao desastre, à catástrofe, ao confronto com o abismo ou ao choque com as forças históricas destrutivas mobilizadas pelo próprio progresso.
A crítica de Benjamin, que de certa forma inverte o raciocínio marxista, de que as revoluções, ou a revolução, sejam uma consequencia do desenvolvimento das forças produtivas - o que é uma visão progressiva da luta de classes - é uma crítica também à modernidade: o progresso é a razão de ser da própria modernidade; sobre o progresso a modernidade construiu as bases de seu discurso; sobre a idéia do progresso a modernidade afirmou sua identidade, se construiu frente ao passado, apontou caminhos de continuidade para seu processo vertiginoso em direção a algum lugar - que se revelou ser lugar nenhum.
Um dos efeitos colaterais da sociedade capitalista, principalmente da modernidade capitalista, foi o esvaziamento das relações humanas, a mecanização dos afetos e a massificação do tédio, tão bem percebido por Baudelaire em alguns poemas de As Flores do Mal. A atomização dos sujeitos, a despotencialização das interioridades dos indivíduos são tantos outros efeitos colaterais. As pessoas isolam-se em suas redomas sociais e dentro de suas redomas sociais isolam-se em seu próprio vazio:o mundo capitalista é o mundo da quase absoluta incomunicabilidade; é uma alegoria kafkiana.
Bernardo Bertolucci também é um crítico feroz da sociedade burguesa e das relações marcadas pelo conformismo: quem assistiu O Último Tango em Paris sabe o que estou dizendo. Mas, para mim, onde ele faz uma das maiores críticas à sociedade burguesa e ao ideal de progresso é no filme O Céu Que Nos Protege, baseado no livro do escritor norteamericano Paul Bowles.
O filme conta a história de um casal norteamericano - ele, compositor de música erudita; ela, escritora -, que resolve viajar até o Marrocos numa tentativa de ressuscitar, retomar uma relação que mostra-se desgastada, e junto com o casal vai um amigo, que revela-se um obstáculo para a retomada da paixão amorosa.
Já na abertura do filme, enquanto o letreiro vai passando, vão sendo mostradas imagens da New York dos anos 40 - época em que se passa o filme -, com direito a todos os ícones do progresso: fornos elétricos, máquinas de lavar, cidade moderna, casais dançando, distribuição de peixes no mercado... enfim, amostras do cotidiano moderno e progressivo da América; já no fim da abertura, a última imagem a aparecer é a de um navio que se afasta lentamente da baía de Manhattan, como a se despedir de todo esse mundo moderno.
A viagem de Port e Kit Moresby - o casal em crise -, é um afastamento consciente da modernidade, dos valores burgueses; o destino, o Marrocos, a África bérbere; depois, a África negra. A tomada seguinte à abertura é que mostra os viajantes chegando ao Marrocos, ao som de uma música árabe: a paisagem que se vê é o oposto da asséptica paisagem nova iorquina, é o outro, o não moderno.
Mas o que nos interessa, num primeiro momento, é a cena em que, instalados num restaurante de Casablanca, Port, Kit e o amigo conversam; Port começa a contar, sob a forte oposição de Kit, o sonho que tivera na noite anterior. No sonho, ele estava num trem que corria célere em direção a uma montanha de lençóis, contra a qual o trem vai se chocar. Port fala que quebra todos os dentes,que pareciam de gesso e começa a chorar, ele conta, terríveis soluços de sonhos, que se ouviam à distância. Quando Port está a contar, todos do restaurante param para ouví-lo, como se o sonho dissesse respeito a todos e a cada um deles.
O sonho de Port nos interessa duplamente e nos parece que ele tem uma dupla função: ele anuncia o destino de Port - o trem que corre infindavelmente para um beco sem saída - e é ao mesmo tempo uma alegoria do progresso e da modernidade, que conduz todos à catástrofe; progresso do qual Port tenta fugir, modernidade a qual ele quer esquecer. Pois é disso que trata a viagem à África: a busca de uma reconciliação amorosa através do esquecimento da modernidade, da civilização: pois quando Port percebe que Kit, sua mulher, teve ou está tendo um caso com o amigo que veio com eles - Turner, um milionário americano típico, representante perfeito do american way of life -, Port cada vez mais adentra no território africano, até morrer de tifo num forte da Legião Estrangeira no meio do deserto do Saara.
As analogias entre o pensamento de Benjamin e sua representação do progresso como uma locomotiva desgovernada que nos conduzirá à catástrofe e o sonho de Port, no filme do Bertolucci, são mais que pertinentes: na sequência do filme, após a morte de Port, Kit segue com uma caravana bérbere pelo deserto, e encontra o tipo de sociedade primitiva que, segundo Michael Lowy, Benjamin achava que tivesse precedido o Estado e as sociedades de classes; as relações nessa sociedade são outras - Kit encontra uma sexualidade pura, primitiva e sem culpas, justo ela que se preocupava com o que diria a costa leste quanto ao sonho de Port.
A imagem do sonho de Port - o desastre do trem, que é também o desastre da civilização e da sua própria vida -, se contrapõem às imagens do mundo que Kit encontrará. Contra a arquitetura das linhas retas de Nova York, as curvas das dunas; contra o jazz, o bebop e o swyng, cantos bérberes e transe estático; contra Port, expressão máxima da civilização da qual ele mesmo quer fugir, o bérbere anônimo, que sem cerimônia faz a corte à Kit.
Port sonha, prevê sua própria desgraça ao sonhar com o trem que se chocará com as montanhas. Como falei, ele é um representante da civilização que ele nega:branco, norteamericano, compositor de música erudita; por isso que ele é tão crítico, ele conhece os valores que ele rejeita. A imagem do sonho é a imagem do nosso próprio destino enquanto civilização, por isso que quando Port começa a contar o sonho, todos param para ouví-lo, pois aquele é o destino comum a todos os que estão ali: ou verem o choque do trem com o futuro ou tentarem mudar o curso da história.
Após a morte de Port - o choque do trem -, Kit segue uma caravana bérbere e com eles vai passar a viver: uma comunidade onde o dinheiro não importa, onde as relações têm um caráter primitivo - no sentido de puro -, uma sociedade pré-capitalista, tal como as idealizadas por Walter Benjamin e descritas por Bachofen. A viagem de Kit é uma viagem em direção ao passado: à medida em que ela se afasta da civilização, ela penetra numa sociedade que é quase uma encarnação de um inconsciente histórico: relações baseadas no parentesco, à base de trocas, onde o dinheiro não é o determinante das relações sociais. Kit se dirige ao mundo que Port procurava, não ela.
A narrativa de O Céu Que Nos Protege é uma das mais belas da história do cinema: as tomadas panorâmicas, os planos longos, a música melancólica, as paisagens deslumbrantes, ajudam a contar essa que é uma história de amor e de busca de si mesmo. Port procura reencontrar o amor de Kit, ao mesmo tempo que procura se afastar da modernidade, do progresso. Ele procura pular do trem do progresso, evitar a catástrofe, que acaba se consumindo em sua própria morte.
Nós, indivíduos, que somos também sujeitos históricos, nós não podemos pular do trem da história: nossa historicidade está colada a nós como uma pele, a qual, se arrancarmos, expõe nossas vísceras e nos deixa à morte. A única direção na qual podemos caminhar é a do futuro: nos apropriamos do passado como um feixe de lembranças - revolucionárias ou não -, que nos servem como uma alavanca; nossa matéria é o presente, mas nosso ideal é o futuro.
Quando Kit aparece, já no fim do filme, como alguém que está saindo de uma crise de loucura, com tatuagens nas mãos e nos pés, é a imagem de alguém que tentou pular para fora da história, de sua própria história, e, é claro, não conseguiu; ela perde sua identidade, ao tentar encontrar um sentido para tudo o que ela passou.
Não li o livro do Paul Bowles, que deu origem ao filme, e nem quero dizer que foi intencional, da parte do Bertolucci, se utilizar dessa metáfora benjaminiana: mas os paralelos são pertinentes e todo o filme vai sendo construído em torno dessa metáfora da viagem do trem, que é a imagem também de um distanciamento, mas que leva a uma catástrofe; também o distanciamento do mundo vazio da civilização, essa gaiola de ouro que nos prende com seus visgos: basta lembrar que Kit voltará para a civilização, apesar de tudo. Acho que não é à toa quie Kit tem medo da viagem de trem, como se o trem fosse o anunciador da desgraça.
Mas é uma dramática história de amor e sexo. Uma das mais belas cenas românticas que já vi, é a cena em que Port, à beira da morte, diz que só agora via que toda a razão de sua vida era amar Kit, e que tudo que fazia era por ela: essa cena tem uma carga dramática muito grande, porque mistura amor e morte, eros e tanatos estão unidos no coração de Port.
II
A imobilidade do céu é o símbolo da própria natureza atemporal, desse locus que permanece frente ao universo dinâmico da cultura; a natureza é uma constante, ainda que não o seja em relação a ela mesma. O céu que nos protege é a natureza imóvel frente à modernidade, é o elemento fora das turbulências da civilização e também das turbulências dos sujeitos.
O filme inteiro é de uma beleza pungente: os diversos elementos se combinam de modo perfeito - os estados interiores das personagens, as paisagens, o ambiente - , a fuga e ao mesmo tempo, busca, de Port, tentando (re)encontrar o amor e se afastar da civilização, o encontro de Kit com uma sociedade quase atemporal e com uma natureza que é, frente à civilização, uma permanência e, ao mesmo tempo, um refúgio. Aliado a esse discurso,uma trilha sonora excepcional, que reforça a sensação de estar fora do tempo, pular para fora da história. Sem falar na atuação excepcional de John Malkovich e Debra Winger.
Walter Benjamin, de maneira brilhante, fez a crítica da modernidade e, em suas Teses Sobre O Conceito da História, criticou a noção de progresso, apontando a saída revolucionária como um salto para fora dos trilhos do progresso, unindo dialeticamente o passado e o futuro dos oprimidos através desse corte na história que a revolução representa; Bertolucci também nos apresenta um salto para fora da história, através dessa fuga, do afastamento do vazio da civilização feita por Port e Kit, numa tentativa desesperada de encontrarem um sentido para suas vidas.
Porque sob o céu que nos protege, só nós podemos encontrar e construir o sentido das coisas, seja através da redenção revolucionária ou da fusão erótica-amorosa, vias transformadoras capazes de fazerem com que a roda da história gire a nosso favor, seja sob a trilha acidentada do tempo, sobre as areias de um deserto ou sob um céu que nos guarda de todas as mazelas.



09 dezembro 2007

3 Poemas

Aurora Austral

Porque o amor explode em vácuos arrebóis e manhãs

não procurarás a salvação dos mortos vivos

não comerás dos festins macabros

te aguarda: a manhã selvagem

teus olhos irrompem na cortina das nuvens

a hera dos meus dedos se dissolve em ti


Seremos mar subterrâneo, tambores nas dunas


Amor, amor é faca de destino na garganta

a libertar

os pássaros da manhã.


______________ P/VItoriazinha

Esquecendo os símbolos

quando você nasceu o dia não se pôs

parece simples demais comemorar a vida

celebramos muito mais

demiurgos secretos trabalhavam

no ventre secreto de tua mãe

devas para os cabelos e a língua

gnomos para as unhas

nereidas para o sangue

silfídes para os pulmões

elaboravam de um estranho caos

um novo ser

havia música lá dentro

e música aqui fora

tentativas barrocas em flautas doce

que faziam você se agitar como um duende

o ventre-bolsa-de-canguru oscilando

pés,mãos,pernas

pequena baleia no aquário

quando você nasceu

trazia um sol

quando você nasceu fomos

heróis de um romance a escrever.


____________ P/Ariadne

Olhando o mar que não vi

posso dizer

que ter você

bolinha amorfa a tomar leite

era como ver o mar

crisálida de alma

crisálida de carne

sorria às vezes

séria como Buda


As maquinações dos hospitais

a insanidade dos homens vestidos de branco

os vampiros sanitários

a todos vencestes

em duras batalhas

como Sita na floresta

Rama depois do exílio, tu voltavas

mais forte

terna menininha nua

rosto de flor


quando sorris agora

também abro asas e vôo

atrás de ti.


01 dezembro 2007

Dias de Razão


Nasci em dias de razão

só eu estava louco, sentia

em todas as coisas um hálito de morte

tudo era eficiente demais

as plantações, os massacres, as prostitutas

os remédios, as prisões, os hospícios

as guerras eram limpas

a medicina era sala de estar para o tédio

só os cadáveres se escondiam no porão


Eu era sujo, burro às vezes

burro quase sempre

o mundo era um jogo de xadrez

mas eu não sabia xadrez

só tinha certeza do sorriso das mulheres

dos ventos nas marés

também das cores no entardecer

do cheiro das frutas, das estrelas


eu não era eficiente

mas via a manhã se erguer sobre os edifícios.