24 novembro 2010

As Coisas-Pessoas, As Pessoas-Coisas

Pensando sobre a relação entre o criador e a criatura nessa sociedade tão marcada pelo vazio, é curioso pensar que paulatinamente nossa humanidade se esvai pelas frestas da história e que provavelmente a próxima revolução a ser travada será para afirmar nosso senso de humanidade frente à humanização dos objetos. Tal humanização não seria nenhum problema se não fosse feita em detrimento das pessoas; poderia significar talvez nosso desejo de nos refletirmos nos objetos, torná-los mais dúcteis à nossa sensibilidade num mundo povoado deles.
Mas não é isso o que acontece, Há séculos o humano vem perdendo sua dimensão mítica e sua dignidade; primeiro ele foi reduzido no discurso filosófico - como o fez Descartes, para depois ser reduzido à servidão maquinal nas mãos do capital. Porque o humano foi se desnaturando para se adaptar e atender às engrenagens produtivas: a regularidade, a constância, a disciplina, a renúncia às paixões ou o controle extremo das pulsões atrofiaram nossa natural irregularidade, nossa capacidade de expectativas súbitas e êxtases de beleza foram tomadas por impulsos previamente estimulados e por uma sensibilidade domesticada que não nos possibilitam mais nem perceber as cores do cotidiano, os tons do crepúsculo, o som das asas das libélulas.
Os sentimentos foram enquadrados nas necessidades dos grandes esquemas produtivos, mecanizados, requeridos somente quando necessários à lógica das corporações (nos locais de trabalho) ou à lógica do consumo. Assim, nos mecanizamos; nós que éramos a imagem e semelhança do criador nos tornamos sombras de nós mesmos; somos nosso próprio autômato.
Por outro lado, o mundo dos objetos foi se humanizando. Metaforicamente, nossa vitalidade foi sugada para o universo das máquinas: impressoras falam com doce voz de mulher, robôs são projetados com a peculiaridade de conseguirem ou tentarem aprender a expressar ficções de sentimentos; sem falar nas cópias que já foram criadas, robôs com aparência tão humana que poderiam - não fosse a ainda imperfeição dos gestos - nos enganar.
Me pergunto até quando conseguiremos perceber essas diferenças. O humano de hoje é mais uma caricatura de si mesmo, nem uma fera ou pássaro enjaulado, mas uma pessoa-coisa, descaracterizada pelos processos produtivos e pela falta de sentidos numa sociedade incapaz de produzi-los, onde a justificativa se encontra em sua própria mecanicidade, em consumir-se estaticamente no tempo-espaço, sem expectativas, sem esperanças. As pessoas das imagens de publicidade são somente simulacros da vida real, emulações sublimadas destinadas a estimularem as pessoas reais a encontrarem um sentido na ilusória liberdade de consumo.
É uma sociedade fetichizada; não somente o fetiche do dinheiro: ao modo de certas sociedades ditas "primitivas" - como diria Jung - nossa libido é transferida para os objetos, só que nossos objetos são desprovidos de relações simbólicas ou míticas; ainda que o discurso mítico-simbólico esteja presente na publicidade, ele é um discurso falso, sem lastro real: assim, por exemplo, as imagens associadas à liberdade - de pássaros, viagens ou velocidade, não dizem respeito à liberdade real, mas a uma falsa projeção da liberdade. O discurso publicitário é o discurso dos simulacros.
Os objetos tornam-se coisas-pessoas, mas essa pessoa é somente a máscara, persona com que os objetos são dotados para esconderem sua contingencialidade produtiva: emulando o humano, a indústria procura capturar a atenção dos consumidores, que buscam fora o que não mais encontram em si.
Como todo produto social, essa movimentação da pessoa à coisa não é um movimento natural: é oriundo de complexas relações de produção, de um arcabouço jurídico e de um discurso que em nome de interesses de classe tornaram alguns pressupostos econômicos e de valor em pretensos universais: a lógica produtiva e mecanicista de nossa sociedade de mercado não é um valor universal, nem no tempo nem no espaço. A ambição predatória, a relação pragmática - e não lúdica ou poética - com o espaço, com a natureza ou com as pessoas não são valores universais nem desejáveis.
Na medida em que nos desnaturamos nos mecanizamos e maior se torna o abismo entre nós e nossa natureza. A lógica dessa sociedade exige de nós um permanente exílio da nossa natureza, da nossa sensibilidade. Nos tornamos estranhos para nós mesmos.
E as coisas nos sorriem, nos felicitam, nos dão bom dia, nos dizem obrigado, enquanto nós, mudos e estáticos, contemplamos com angústia nossos espelhos, sem saber mais se o que vemos é uma ruga ou uma trinca no material.

2 comentários:

Anônimo disse...

Ninguém mais poderia ter escrito estas palavras, nesta disposição, neste contexto, com essa emoção...Conhecendo você, so um pouquinho, alguém saberia que esta obra só poderia ser SUA. Parabéns mais uma vez, meu querido amigo.
Beijo
Conceição

Anônimo disse...

Ninguém mais poderia ter escrito estas palavras, nesta disposição, neste contexto, com essa emoção...Conhecendo você, so um pouquinho, alguém saberia que esta obra só poderia ser SUA. Parabéns mais uma vez, meu querido amigo.
Beijo
Conceição