04 fevereiro 2008

Observações sobre O 3º Concerto para piano e orquestra, de Rachmaninov

A Rach 3


A Rach 3, como é conhecido o Concerto Nº. 3 para piano e orquestra, de Rachmaninov, é uma obra poderosa. Ao escutá-la, temos a nítida sensação de que nos encontramos frente a uma obra de arte, com todas as letras maiúsculas possíveis, a sensação que temos quando nos aproximamos dessas criações que, pela pura forma, transcendem o imediato do seu veículo de expressão e apontam horizontes não previstos, possibilidades não vistas e valores que desconhecíamos.

Muito se falou da dificuldade técnica de execução: a Rach 3 é considerada uma das obras mais difíceis de ser executada, para piano. Do ponto de vista técnico não tenho como falar – não sou pianista. O que vou falar se detém no exame da forma arquitetural, da organização geral da obra e do seu poder sobre nós, ouvintes.

Portanto, essa será uma análise impressionista, sentimental e existencial, falem o que quiserem. Não existe forma pura, significante sem significado; então, prossigamos.

A primeira imagem que me aparece quando escuto a Rach 3, é a de um rio, caudaloso, turbulento e uniforme; explico-me: há, ao longo de todo o concerto, uma gama extraordinária de emoções distintas entre si, de sensações diferentes, de expressões diferentes que são uniformizadas pela tensão da forma, que conduz as emoções expressas a um dado fim; é como se fosse um rio feito não de água, mas de diferentes elementos expressos na forma de gotas, como se cada gota fosse de um diferente elemento, cada gota distinta da que está ao seu lado – distinta e às vezes contraditória -, mas todas mantidas unidas pela tensão da forma do próprio rio. Mas o que é a forma ? Uma ilusão temporária ? Uma tensão presente somente no momento da execução ? Não, a forma é a própria transitoriedade, o contínuo temporal por onde a música desliza.

O concerto mantém essa coesão, essa tensão liberadora, de uma força impressionante, é como se Rachmaninov nos quisesse transmitir, de maneira condensada, toda uma tensão acumulada, de sensações guardadas durante séculos. O piano mantém sua posição solista e conduz a carga dramática da obra, e às vezes a orquestra é um ponto de repouso e fuga.

Comparativamente ao 2º. Concerto para Piano e Orquestra, do mesmo Rachmaninov, esse é muito mais profundo. Não sei se a palavra profundo expressa exatamente o que quero dizer: a música tem profundidade ? É possível aplicar uma categoria espacial a uma arte temporal ? Talvez deva dizer que esse concerto é muito mais forte emocionalmente, que ele consegue expressar, de maneira condensada, uma gama de emoções e sensações diferentes e contraditórias que o 2º. Concerto não consegue na mesma proporção. O 2º. Concerto é de uma beleza deslumbrante, mas ele é mais previsível – isso é uma heresia -; é previsível porque sabemos mais ou menos aonde ele nos conduzirá; a Rach 3 é mais imprevisível, ele mantém coerência mesmo expressando sensações contraditórias entre si, mesmo mantendo uma multiplicidade de vozes; não sabemos ao certo onde ele vai dar.

O 2º Concerto para piano e orquestra é de uma beleza pungente: há uma dialética entre seus três movimentos, diria que uma dialética quase perfeita – o 2º movimento é quase uma antítese do 1º movimento, e o 3º movimento consegue ser uma síntese perfeita do espírito do conjunto. Além do mais, ele possui um caráter liberador, como se nos livrássemos de algo, como se atingíssemos uma possibilidade de liberdade. Não é à toa que Rachmaninov escreveu o 2º concerto quando estava saindo de uma terrível depressão. O concerto tem esse poder liberador e expressa essa luminosidade do reencontro consigo mesmo.

Mas a Rach 3, se tem esse poder liberador próprio do 2º concerto, o tem de maneira distinta; se o 2º concerto é o momento do reencontro de Rachmaninov com suas próprias forças criadoras, a Rach 3 é a completa liberdade do criador com ele mesmo, o perfeito domínio dos seus meios de expressão, a completa certeza da sua economia de formas. Desde o início, a Rach 3 tem uma força expressiva muito grande: às primeira notas iniciadas pelo piano são repetidas pela orquestra e aí começa um jogo delicioso, onde às vezes piano e orquestra vão se contrapor e outras vão nadar na mesma direção.

Rachmaninov nunca abriu mão de ser o que ele era, um artista complexo que não abria mão de expressar-se da maneira que achava conveniente – nunca fez parte dos movimentos de vanguarda – e sempre manteve-se, esteticamente, próximo da estética romântica – ele chegou a estudar com Tchaikovsky -, mas conseguiu dominar, de maneira muito intensa e muito própria, a melodia, o ritmo, sem as “dissoluções harmônicas” que tanto irritavam Nietzsche: ele não tinha medo da melodia, nem da emoção na música: a forma musical era um veículo para expressar toda a sua força. A música de Rachmaninov é uma experiência orgânica, assim como certas borboletas de vidro voando perdidas no amanhecer.

Além do mais, a Rach 3 tem um efeito afrodisíaco, ela potencializa as expressões amorosas, ou nos leva a isso; talvez porque se assemelhe, pelo caráter de torrente, às torrentes da própria paixão amorosa – uma emulação da natureza.

Não consigo fazer uma análise fria, porque me identifico muito com esse concerto: nada mais distante da modernidade vazia e da barulheira contemporânea do que a Rach 3: precisamos de reclusão e silêncio para ouví-la – ela não se dá de graça, ela só se dá para quem se deu para ela, para quem se entrega ao seu poder, para quem se deixa absorver pela sua multiplicidade, pela sua força.

Mas esse pequeno ensaio nada mais é do que uma maneira de homenagear a esse grande poeta musical, a esse gênio solitário que foi Rachmaninov.

Um comentário:

Anônimo disse...

Querido amigo,
Depois deste ensaio, Rachmaninov terá de compor, através de alguém, uma outra Rach apenas para homengeá-lo. Aproveito para prestar minha homenagem a um gênio na arte das palavras e das emoções. Belíssimo ensaio, parabéns!