14 fevereiro 2008

Em Defesa da Dor


Antes de tudo, convém esclarecer que não sou dos adeptos do sr. Sacher-Masoch e sim um crítico das perspectivas vazias da atual civilização.
O padrão de homogeneização psicológica que essa civilização impõe às pessoas é de tal índole que procura destituí-las daquelas características que até agora foram determinantes para garantir nosso senso mesmo de humanidade: a capacidade de sentir, de pensar, nossas emoções... ou seja,nosso material psíquico – irregular e não uniforme.
Nessa roupagem asséptica com que se procura vestir os sujeitos sociais, a dor não é bem vinda,seja ela moral ou física, porque a dor ativa os conteúdos máximos da subjetividade, a própria noção de indivíduo e toda a semântica pessoal da individualidade, que desfaz o discurso genérico e frio do coletivismo consumista e produtivo do início do século XXI.
A dor existencial ou a dor moral, é conseqüência de que haja um descompasso ou desacordo entre a consciência individual e os valores coletivos, um confronto entre o indivíduo e os valores sociais, que repercute no âmago do sujeito; assim é quando entramos em confronto com aqueles valores que foram determinados pela sociedade, mas que não são nossos valores ou não correspondem às nossas aspirações íntimas; a dor aí assinala a existência,senão de uma individualidade, pelo menos do seu germe, mas também, sem dúvida, a presença de uma consciência ativa. Há também a dor oriunda da nossa fragilidade, ou sensação de fragilidade frente ao inexorável: a morte, a perecibilidade, a impermanência, a dinâmica fugaz da nossa existência. Em ambos os casos, o que se ressalta é a presença de um germe de individualidade e/ou uma consciência ativa capaz de discernir o ser e o mundo, entre a esfera privada e a esfera do mundo.
Mas nossa sociedade quer dar um grande salto sobre o abismo da dor, esquecendo as causas, procurando eliminar os sintomas, como se, ao apagar os sintomas, as causas deixassem de existir; exemplos disso são os números sobre a depressão e o suicídio, no mundo:as estatísticas são altas demais para tentar descaracterizar a patologia psicosocial dessas doenças, mas mesmo assim a indústria farmacêutica, ano após ano, produz novos antidepressivos e ansiolíticos, e a medicina se esforça para caracterizar a origem bioquímica das doenças psíquicas e não sua origem noética, como resultado do descompasso entre sujeito e sociedade, achando que assim será possível encontrar o tratamento bioquímico que elimine essas indesejadas doenças sociais.
Assim, aos poucos e cada vez mais se dilui a teia da subjetividade e os valores a ela relacionados, em nome de horizontes absolutamente vazios, que só têm a ver com uma sociedade de números e não de indivíduos. Estão aí os defensores da felicidade bioquímica para garantir o mínimo de coesão naquelas pessoas duramente afetadas pela depressão, como se a dor expressa não fosse ela mesma a expressão máxima da coerência interior.
Cada sociedade produz seu conceito do que seja saudável ou do que seja ou não a sanidade; a questão aqui é se esse conceito e essa práxis correlata de saúde e racionalidade produzidas por nossa época são em si racionais, se eles correspondem à nossa própria natureza inquiridora.
O discurso das grandes corporações, que já ultrapassa o muro das empresas e adentra mesmo nos lares sob a forma de livros e dvd’s de auto-ajuda, insiste na necessidade do equilíbrio, do protagonismo, da normalidade como condições sine qua non que garantem a vitória dos sujeitos no meio social; a normalidade – aqui entendida como o fruir do nada (o trânsito livre entre pequenas emoções, prazeres mundanos e vasto consumo)- é condição de acesso a novos patamares de status: fora a melancolia, as paixões violentas, os amores que desestabilizam. Alguém já viu um gerente de banco que surta de amor e passa a declamar Holderlin em pleno expediente de trabalho ? Com certeza não,porque a ética corporativa, o discurso do capitalismo abomina a quebra da desejada normalidade.
As emoções – das mais toscas às mais brutas – foram reservadas à indústria cultural e aos momentos permitidos de lazer: é aceitável que você se emocione assistindo um filme- é o momento e o lugar adequado, mas somente ali, ou em outros lugares permitidos. Porque tempo é dinheiro e não foi feito para que as pessoas passem o tempo a pensar, sentir ou questionar a existência e a sociedade, assim diz o capitalismo.
Mesmo nós,imoralistas – como diria Nietzsche – achamos que a superação da moral não significa a ausência de valores ou escolha, mas sim a escolha pessoal – e não social – dos valores que vão reger a vida dos indivíduos, e mesmo nessa auto afirmação que é determinar os próprios valores, esse exercício de liberdade, não nos livra da dor, porque ela faz parte do nosso confronto com a impermanência do mundo.
De fato, nem nós somos permanentes: a memória é nossa tentativa de coesão entre temporalidades tão distintas, entre sujeitos tão diferentes que somos nós mesmos. E a cada vez que vivenciamos o mundo nos transformamos, mas o mundo nos escapa pelos dedos porque ele é sempre e permanentemente, um caos que a cada dia temos que reorganizar.
Nosso grande confronto, nós que não aceitamos essa permanente idiotice da ideologia burguesa, sem falar na luta contra as estruturas materiais da sociedade,é com o tempo social, com o roubo que se faz da nossa esfera íntima e da nossa privacidade através do tempo de trabalho e também da opressão da indústria cultural, que impõe os mesmos valores da permanente estupidez ianque ao mundo todo; e as pessoas não se cansam de assistir as mesmas cenas de violência ou de sexo coreográfico em diferentes filmes, tão embotadas estão em sua sensibilidade que não são mais capazes de distinguir o que é ou não uma obra de arte e um filme tão ruim quanto 300 chega a ser elogiado pelas suas qualidades técnicas, como algumas pessoas vieram me falar.
A ideologia da época precisa justificar essa escalada sem sentido para o abismo, essa vertigem consumista para o nada, essa glorificação do dinheiro e da violência como avatares da liberdade.
Em outros tempos, o pintor e gravurista alemão Albrecht Durer fez uma gravura chamada a melancolia- tenho ela à minha frente -; nela, um anjo feminino olha pensativo para o vazio; quase a seus pés, um carneiro,acima de sua cabeça,o quadrado mágico de Júpiter, à esquerda uma pedra cúbica, uma escada de sete degraus e mais outros tantos objetos e símbolos. A melancolia é concebida como uma qualidade ativa do indivíduo, oriunda de Saturno, e que leva o indivíduo à capacidade de refletir, de pensar; porque outras eram as perspectivas da época quanto aos sentimentos e o outro era o tempo social dos indivíduos.
É como a saudade, sentimento tão nosso que criamos uma palavra para designá-lo, e que expressa a falta – única e intransferível- que sentimos de pessoas, tempos e lugares, de uma maneira que nenhum medicamento,bebida ou oração poderá remediar a falta que sentimos.
Sinto saudades de pessoas que estão longe e de pessoas que estão perto mas que é como se estivessem longe, e sentir saudades é ser marcado a fogo pela presença do outro, e a saudade propriamente é o vento que atiça o fogo interior das lembranças e não há nada que possa nos remediar.
Assim como a dor que nos vem com a morte, são experiências que nos transtornam e nos transformam,porque nos tornam capazes de compreender a vida de maneira mais profunda, nos faz questionar nossas temporalidades, nos faz enxergar o universal humano da dor e muitas vezes buscar a causalidade correta dos fatos.
Aldous Huxley previu como ninguém essa sociedade fútil e fria, no livro Admirável Mundo Novo; me sinto como Popé, o personagem índio que vai até essa civilização vazia e a critica pela sua falta de horizontes e valores; mais ainda, porque Popé tinha a tranqüila certeza da ficção, e estou num mundo cada vez menos admirável, imerso na solidão comum a todos os que buscam determinar seu próprio destino, sua própria história.
Não saio em defesa da dor como quem faz sua apologia ou como quem nunca a sentiu e por isso a defende: na realidade o que defendo é a presença do psíquico e o direito de vivenciá-lo, e a dor é um vetor para a vivência da interioridade. Já passei por muitas dores – físicas e morais – em idades tênues ou não, da morte de uma filha a outras dores morais, da dor nos rins à quebra de um dedo, e sei que nada disso em si determina a interioridade dos sujeitos, mas sim a maneira que reagimos é que determinará o que somos ou seremos.
A geração atual costuma fugir da dor, muitas vezes fugindo das decisões, das responsabilidades, como se a fuga de um problema o resolvesse: a vida é permanentemente dialética, cada vez que dizemos sim afirmamos um não, uma escolha num plano é uma recusa em outro, e entre sins e nãos crescemos em direção a nós mesmos; o que determina esse crescer ? A vontade de poder, como queria Nietzsche ?
Spinoza achava que não éramos livres como imaginávamos, que não éramos agentes de nós mesmos. Prefiro acreditar que a escolha se dá mesmo entre os limites: há liberdade mesmo quando escolhemos a maneira como vamos ser executados.
Então, a dor nos exercita para liberdade; mas prefiro apostar na via revolucionária do amor. Mas defendo a dor e o direito de sentí-la, frente o vazio crescente e homogeneizador dessa sociedade de mercado, que tenta apagar, no homem, os vestígios de sua própria e real natureza.

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