21 setembro 2007

Os Aforismos de Pan - II

Morre-se de fome, morre-se de sede; morre-se também de orgulho.

Felicidade da águia na hora da conquista: o que se devora, mais alto chegará.


Barulho do mar numa concha vazia: ilusão ? Não, nostalgia.


Felicidade de se esculpir lentamente. De si mesmo ser, o criador e a criatura.


Poucos homens procuram a verdade. Seu sabor acre os desagrada, e na verdade construímos nosso mundo sobre teias invisíveis de ilusão, de modo que tememos que o peso da verdade desfaça nossas suposições de aranha.


O amor é um pássaro, estranho, híbrido, mistura de terra e ar: seu maior vôo pode levar para dentro de si mesmo e pode-se ser desagradável consigo mesmo para se amar alguém. Voamos para buscar o sol para o outro.


Há um quantum muito grande de solidão quando se quer criar o próprio caminho, não por orgulho, mas porque sabemos que onde queremos chegar não há um caminho ainda que nos leve para lá.


Supõe-se que os mistérios se desfarão à medida que o conhecimento avance, e o que há é a cada avanço do conhecimento aparecerão novos mistérios. O mistério é inato à linguagem e à essência das coisas. Sua última fronteira.


Onirocrítica: as estrelas nos dizem que nossas melhores esperanças estão no nosso céu, nosso espaço interior. Tal como é dentro é fora.


Amanhecer: o sol desperta no canto dos bem-te-vis.


Nem todo silêncio é criador - a fala, a palavra, é que traz a epifania até o homem.


Faca-corte; corte-sangue; sangue-fuga; fuga-cicatriz; cicatriz-concentração; concentração-poesia.


Poesia, música silenciosa do fogo.


Sede tu, bode, nosso guia, à areia inominável da alegria.


É preciso criar dentro de si uma cápsula do não tempo, para em si mesmo, isolado, poder recriar o humano.


Poder das flores num campo de trigo: matéria não para o corpo, mas para o espírito.


A inimizade mais profunda e mais difícil, é a inimizade contra si mesmo.


Saber ser alegre é também um dom. A mais profunda alegria transparece num leve sorriso. Sempre.


Não há excesso de luz para quem dela se alimenta.


A cultura é um horizonte onde os pássaros humanos põem seus ovos de sóis e estrelas, que nem sempre brotam.

15 setembro 2007

Os Aforismos de Pan - I


Mil olhos vezes mil não alcançam a verdade.


Palavras não cruzam fronteiras de vidro.


Pan é um ponto com espirais periféricas. O ponto está em todos os lugares.


O corpo da mulher amada e o vinho têm o mesmo sabor.


A calêndula reproduz-se sol.


O sol, calêndula.


O mar, com sua voz, nos diz que além, além do tempo, algo permanece.


O passado não serve como mapa do futuro.


O futuro é um acontecer ai:presente realizado.


Nem a filogenia nem a ontogenia, mas a pangenia pode nos servir de guia para um futuro maior do indivíduo. E da espécie.


Os quasares, galáxias-antenas, bólidos celestiais, estrelas marinhas, não serão também mistérios no homem?


O limite do corpo nos diz aquilo que a alma não quis.


A maior liberdade é aquela alcançada nas contingências. A borboleta que morre ao atingir o fogo é mais feliz.


A mão do nada se insinua na angústia, mas quem move a mão é o ser.


Poesia, serpente que se auto-devora.


Não sabemos de nós o que devemos, mas o que queremos. Não queremos de nós o que devemos, mas o que sabemos.


Há aranhas que se lançam de montanhas ao vento e do vento ao nada. Alturas em que poucos homens conseguem chegar.


Sabedoria de poetas e grilos: cantar ao invisível.


A trama secreta do mundo é música. Mas é preciso silêncio para ouví-la.


Morremos aos poucos, desde o primeiro dia em que nascemos. Mas vivemos também a cada morte, minha ou tua: átomos primordiais que somos, espalhados no todo.


Há um porto onde Pan tem morada, mas aonde nem sempre o homem chega: o coração humano.

08 setembro 2007

Dois Poemas, um em prosa

Autógeno

Tua boca emergiu na primavera
quando os galos anunciavam
diferentes auroras

do vácuo entre estrelas
teu alento
cortando o espaço

abrias clareiras no tempo

longe de ti, também roubamos fragmentos da eternidade
miríades de palavras
turbilhões de sentidos

para renascermos sem deuses
glorificarmos o presente
fomos terra e semente
para sermos mais que
humanos.


Terra
Nem tudo o que desejo é cósmico, nem tudo tem asas nos pés: quase sempre um cheiro de terra, folha molhada, vapor d'água, suor, pulsações, suavidade.
As hexagonais das teias de aranha reproduzem as vibrações das borboletas; no lugar do silêncio, murmúrios, gritos, sussurros, de criaturas sob as folhas secas, de cópulas nos galhos das árvores, de festas sazonais.
Porque sou floresta não posso silenciar a noite - quando estou escuro, sou arena de caça, muitos vão e vem, hordas de piratas e um exército sem nome; há mil dias nessa noite, mas o sol não se põe.
Estar sozinho é não escutar quando amanhece o sol, é não ouvir a glossolalia da luz, que fala ideogramas escuros: homem sentado, uraeus, pilar erguido - eis que vem a companhia...
Senhor dos mortos, senhor dos subterrâneos, nem tudo o que desejo é cósmico, bastam flores, o aroma do sexo das mulheres, as essências olorosas banhando o falo da terra.
Não estamos sós - deciframos sinais nas pedras, desenhos nas costas das montanhas, raios iluminando a noite - tudo é voz quando se pode ouvir.
Sob um casulo, brotava um cosmo. Tenho olhos de nitrato de prata: tudo o que é terra é luz.

01 setembro 2007

Dois Poemas

Amor Fati

Lavei dos olhos toda areia
planetas escorrendo em lágrimas
claridade das claridades ante mim:
amo-te, vida
amo mesmo meus amores desafortunados
meus horizontes frios
e teu amor obscuro
amo as mulheres de olhos negros
todos os cabelos
todos os sorrisos
todos os desvelos
todos os sóis, ventos horizontes
toda rubra luz, todos os montes
que surgem na aurora dos tempos

amo-te bella femina
cheia de mistérios

aguardo sempre na ribalta
as cortinas se abrirem
e te ver surgir sempre:
outra vez.


Canto em Fragmentos

I

Dunas estreitas de silício à frente
de nosso coração aberto
a vida vem em sal e feno
em sol de trevas e esperança
caminhamos e somos fragmentos
nossa voz, coda
nossa mão, espada
que tira a palavra
da pedra bruta que a guarda
dias em que fui silêncio de mármore
luz no punhal suicida
dias de caminhar alegre em outros Saaras
além do coração

mar à vista, a vida
sempre tão bela quanto
no ínicio da viagem


II

Não há cartas-portulano com os amigos
nem a noite
nos guiará pelo seu véu de estrelas
somo o que de nós fazemos
somos a bússola e nosso próprio guia.


III

Estrelas oblíquas num mar de feldspato
vim de uma terra onde não havia mais ninguém
homens de metal fundiam-se ao sol do passado
na muda vastidão de outros confins
vim de uma terra onde não havia mais ninguém

terra desconhecida de homens-pássaros
terra desconhecida de cítaras e magmas
curvas de basalto no olho do vulcão
oh terra estranha de áspero amor
por ti deixei a solidão, os cântaros do passado
vim de uma terra onde não havia mais ninguém
pela promessa de teu horizonte vertical

Terra de plantas e espadas
terra de gelo e canções ciganas
trago-lhe de mim os fragmentos
oferendas dispersas pelo tempo
pois vim de uma terra
onde não havia mais ninguém.


IV

Não somos a angústia do eclipse
pedra de mosaico em meio à multidão
nossas pupilas traem os segredos do mundo
somos arautos do que não se anuncia
angústia da beleza presa no mármore
da palavra engastada em algum diapasão:
seja nossa voz sopro de letras
cinzel de flores a libertar a fala

a viagem desdobra-se como lençol de nuvens
astros espalhados no imenso:
pedaços de nós
terras abandonadas, amores guardados
em malas vazias:
dunas de silêncio, praias estreitas
dias de ser aurora, sempre
pois vim de uma terra
onde não havia mais ninguém.