"Eu havia pensado em muitas coisas desde que a conhecera,
mas nunca na morte dela.
A despeito de sua idade, ela alimentava um amor em mim.
Agora aquilo se fora.
Agora que ela estava morta, eu não podia mais pensar nela.
Solucei, me lamentei e pranteei até que tudo se fosse,
tudo aquilo, e como sempre me descobri sozinho no mundo."
de Sonhos de Bunker Hill, de John Fante, p. 164
A imago hollywoodiana não possuía substância: cada foto, cada pose dos atores ou diretores era uma composição, uma construção - técnica e eficiente - cuja função era erguer uma imagem afim ao padrão da indústria cultural, disseminada pelos estúdios; nessa imago coletiva, Hollywood era um lugar de glamour, festas e felicidade contínuas, uma espécie de axis mundi por onde girava o inconsciente dos Estados Unidos, e nem é possível separar a imago hollywoodiana da auto-projeção do país, pois ambas se confundem e chegará o momento em que a própria política resvalará para o espetáculo.
Uma imago sem substância é um simulacro e às vezes o simulacro é revelado, quando a imago é quebrada, quando o discurso construído para alicerçar essa imago é desmentido pelas evidências da vida real - sempre tão inesperada, tão atribulada, tão sem controle. Por isso que, no auge da era dos grandes estúdios (até os anos 50), estes impunham rígidas condições aos atores, controlavam suas vidas, seus encontros, impunham fatos - tudo para manter a paz entre as colinas de Hollywood, tudo para que os simulacros - sustentáculos da poderosa indústria cultural - não se desfizessem ao sol sob as palmeiras da Califórnia.
Marylin Monroe era uma vítima desses artifícios, de uma imagem construída apesar de si mesma. Como dizem os organizadores do livro Fragmentos (publicado no Brasil o ano passado pela editora Tordesilhas)
É evidente, entretanto, que, durante sua vida, os meios de comunicação
inventaram, sob a pressão dos estúdios, a imagem de uma mulher alegre,
radiante, à custa de mostra-la como uma loira um tanto boba.
Pense-se em seus papeis em Os Homens Preferem as Loiras, Adorável Pecadora,
O Pecado mora ao lado. Diante desse imaginário
artificial, qualquer desafinar era inadmissível.
Não havia lugar para uma Marylin melancólica.
O ícone não devia permitir nenhuma contradição.
(Fragmentos, p. 7)
Uma imago projetada em torno do corpo, à custa dele, de sua vitalidade, de suas energias. Marylin era uma mulher sensual, naturalmente, mas a imagem projetada era a de uma mulher sempre disponível, sempre solicita, como de fato nenhuma mulher é.
Mas Marylin tinha substância, diferente do simulacro, era habitada por uma interioridade atormentada, cheia de dúvidas e sonhos, exigente e diáfana, como se a muito custo conseguisse se encaixar no mundo, responder não somente aos apelos da imagem projetada, mas também dos papeis sociais, do lugar real no mundo, o qual somos obrigados a ocupar.
Lendo a coletânea de cartas, trechos de diários e poemas publicados em 2011 (Fragmentos, ed. Tordesilhas), a imagem que se destaca contra o pano de fundo tumultuado de sua vida assemelha-se mais a de Arturo Bandini que a de uma musa sexy. Para quem não lembra, Arturo Bandini é o alter ego de John Fante, escritor do clássico Pergunte ao Pó; pensamos no Bandini dos Sonhos de Bunker Hill, transitando pelos arredores de Hollywood, tentando sobreviver como escritor numa cidade marcada pelo vazio. As semelhanças são evidentes por si mesmas:Bandini cedo sai da casa dos pais (no Colorado) e vai tentar a vida de escritor na meca dos Sonhos (Los Angeles); trabalha como garçom, tem um conto publicado numa revista, tem um romance com uma mulher mais velha que sua mãe, vive o sonho e o pesadelo de ser contratado como roteirista de um estúdio. É, como ele próprio se define, um caipira, um desajustado social que não encontra seu lugar no mundo. Marylin não era uma caipira (nasceu em Los Angeles), era uma órfã que teve a infância dividida entre vários lares, que se casa aos 17 anos para conquistar alguma independência, que posa nua para uma revista para poder comprar comida, até que um dia consegue pequenos papeis em filmes e entra de vez no mundo do cinema.
Não são os acidentes de percurso que marcam a vida de ambos, mas o desamparo, o estar só no mundo, um mundo hostil, cheio de armadilhas, onde a custo procuramos um sentido para as coisas. Quase ao final de Sonhos de Bunker Hill, depois de visitar sua cidade natal, Bandini retorna à Los Angeles e procura sua antiga amante, a Sra. Brownell e descobre que ela morreu e ele fica desolado (citação da epígrafe). Sentado num banco de praça, fica cerca de duas horas lamentando a morte dela e ao final se descobre como sempre sozinho no mundo. O texto é seco, Fante não apela a um sentimentalismo barato, mas realmente Bandini está só, e a imagem daquele garoto sozinho, com 17 dólares no bolso em uma cidade hostil, é comovente sem ser piegas.
No início dos anos 50, numa caderneta preta, Marylin anota:Sozinha!!!!!! Eu estou sozinha. Eu estou sempre sozinha, não importa o que aconteça. É a sensação do puro desamparo, do sujeito lançado no mundo, o puro ser tentando se formar ou se conformar ao mundo, cercado de dúvidas, rodeado de nãos, à espreita do medo que pode paralisá-lo. Na mesma página ela anotou: Não existe nada a temer, exceto o próprio medo.
A Marylin que se revela nesses escritos está a muitos anos luz de distância da imagem projetada pela mídia: Marylin era uma criatura atormentada, que questionava seu lugar no mundo, sua própria identidade, seu ser e estar. Na verdade, Marylin sentia-se dividida entre a imago projetada e sua natureza real, entre a pressão hollywoodiana e a liberdade novaiorkina.
A partir de 1955 Marylin passa a fazer os famosos cursos do Actors Studio, em Nova York, com Lee e Paula Strassberg, que formaram toda uma geração de jovens atores como Marlon Brando e Paul Newmann. Nova York passa a encarnar então o antípoda moral de Hollywood, o lugar onde ela tenta desenvolver sua sensibilidade de acordo com suas aspirações artísticas e não somente para atender aos chamados da indústria cultural.
Isso não a tranquiliza. Marylin possuía uma extrema desconfiança de si mesma, típica das criaturas desamparadas que sem nenhum sopro divino erguem-se do barro em direção a algum lugar. É o que revela o sonho pesadelo que ela registra em 1955. No sonho, Strassberg é um cirurgião que vai operá-la, para trazê-la de volta à vida, e curá-la de uma doença terrível(não identificada); Strassberg a abre com um bisturi e não há nada lá dentro, ele fica decepcionado, pois esperava encontrar muito, mas a única coisa que saiu foi uma serragem finíssima - como a de uma boneca de pano - e a serragem se espalha pelo chão e pela mesa(...).
O sonho é uma alegoria muito bem elaborada pelo inconsciente e de certa forma revela aquilo que num primeiro momento Marylin pensa de si mesma; foi em 1955 que ela começou a ter aulas com os Strassberg, e também começou a fazer sessões de psicanálise: ela não se sente à altura do desafio que Strassberg representa e imagina-se como uma boneca vazia cheia de serragem. Mas a boneca de pano, facilmente manipulável e vazia, não é o que ela é, mas aquilo que projetavam dela: a imago duramente construída pela indústria cultural ameaça tomar conta para sempre da Marylin real, a menina desamparada, a Bandini solitária, posando nua para não passar fome e questionando-se sobre a verdade, não a deusa deslumbrante com as pernas e a calcinha à mostra de O Pecado Mora ao Lado, mas a mulher de olhar triste, perdido, como aparece numa foto de André de Diennes: o olhar assustado, os cabelos em desalinho, mas ainda assim tão bela quanto um espírito das águas escondendo-se do temporal.
A percepção do sonho indica justamente a resistência de Marylin à imago que tentava se apoderar dela; o conflito só existe onde há resistência e o sonho dela era justamente a expressão de um conflito. Outros sentiram-se bem no círculo vicioso de Holywood, nas rodas de fofoca e escândalos, no álbum nada quixotesco de sorrisos fingidos e poses medidas que aparecia nas revistas e nos jornais, como a roteirista Velda Van Der Zee, com quem Bandini tenta escrever o roteiro do faroeste Sin City: enquanto Velda passa o dia desfiando as fofocas e os bastidores de Hollywood, Bandini tenta escrever um roteiro honesto, uma peça íntegra que é transformada numa série de clichês baratos, o que faz com que Bandini retire seu nome do filme e a única coisa sua que sobre no roteiro são duas interjeições: eia! e ooôh!
O sonho de Marylin, mais do que o de tornar-se uma grande atriz, era encontrar seu lugar no mundo; em outra anotação sua não datada, ela diz: Para a vida - é uma determinação e tanto não me sentir sufocada. Não sufocar, manter-se à tona, apesar das pressões. Uma boneca de pano afundaria logo no primeiro instante, ainda mais cheia de serragem. Manter-se à tona foi não somente uma demostração de determinação, mas uma vitória, talvez pequena, mas no fundo todas as vitórias são pequenas, grandes vitórias são fraudes.
A imagem que queria suplantar a Marylin real era a imagem da mulher sexy e boba, o perfeito estereótipo da mulher imaginada e desejada pelo ego machista, a boneca de pano, como a própria Marylin percebe em seu sonho: se ela ajudou a plasmar essa imagem, o foi contra a sua vontade, o esforço em construir essa imagem não é dela.
Porque a Marylin que emerge dos diários, das cartas, é uma mulher frágil, angustiada, com dúvidas e a alma partida por tantos abandonos, ainda é a criança rejeitada que vive timidamente no corpo da mulher, tão belo e tão delicado que nos fazia sonhar, porque sua beleza trazia em si uma vertigem, que era um soco no cotidiano, na mesquinharia, no cálculo.
A indústria cultural rouba sua imagem, tenta se apropriar de sua alma, e ela tenta, à sua maneira, resistir. O suicídio não é também uma forma de resistência?
A publicação dos Fragmentos não é um acontecimento literário, é um acontecimento humano; com eles a alma atormentada de Marylin emerge das sombras do anonimato da indústria cultural e ao emergir revela o rosto sempre mais humano, the lost girl por trás das vestes de mulher fatal, a criança sob o rosto de deusa.
E calam-se os superlativos, e brigam os rostos, brigam as imagens mesmo dentro de nós e nossa mão resiste à maciez da foto e escutamos somente a voz que diz: Estou sempre sozinha, não importa o que aconteça.
Um comentário:
Se fosse escolher uma palavra para expressar a minha opinião sobre o texto acerca de Marylin Monroe, diria: SURPREENDENTE. Nunca havia pesquisado algo sobre a sua biografia, porém o retrato que passa o texto é algo que nos leva a refletir até que ponto sou EU, em relação aquilo que querem que sejamos.
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