I
O que vemos quando olhamos para o
espelho? É a nós mesmos que enxergamos ou o que vemos é mais ou
menos de nós? Essa pergunta não é mera retórica; ela visa, isso
sim, quebrar a comodidade das deduções fáceis, fruto da
banalização dos conceitos e da preguiça intelectual. A maioria de
nós diria, sem pestanejar, que ao olharmos para um espelho vemos a
nós mesmos refletidos, como se atrás do pronome “nós” e do
“eu” que ali se esconde houvesse algum grau de certeza oriunda da
gramática e fruto da nossa sensibilidade que num primeiro momento
nos atesta que o que vemos é igual à nossa própria imagem; mas num
segundo momento percebemos que a gramática não consegue unir nossos
eus, nossa interioridade fragmentada, que a imagem que vemos é uma
imago,
ou seja, uma reprodução da nossa materialidade num espaço plano
virtual, e que nossa face, essa marca tão grande de identidade
pessoal, não é só nossa – nossos traços traem a herança dos
nossos ancestrais – somos também a imagem de nossos pais e de
tantos outros que em rio desaguaram em nós. Então, já não fica
tão fácil responder ao “o que vemos no espelho”? Porque nossa
certezas não refletem mais no vidro polido ou no metal: nossa
certeza é uma probabilidade mentirosa.
Nada
melhor do escolher O
Espelho,
entre os filmes de Tarkovski, para começar a falar de sua obra,
porque O Espelho é
provavelmente seu filme mais pessoal e exige de nós um outro olhar,
não o olhar das certezas nem o da dúvida, mas de certa maneira o
olhar de surpresa das crianças, sempre abertas ao porvir.
O
Espelho
foi lançado em 1974 e é considerado como um dos filmes mais
“difíceis” de Tarkovski: essa afirmação não é verdadeira,
essa dificuldade só existe quando contrapomos um filme como O
Espelho
a outros do circuíto comercial; mas de fato não é um filme que
faça concessões – sua narrativa articula-se em torno de
diferentes planos – do sonho, da memória, do real, sem seguirem
uma linearidade e o filme é pontuado por belíssimas tomadas
pontuadas por poemas de Arseni Tarkovski, o pai do diretor.
É
um filme do qual não canso de assistir, mas toda vez que assisto
fico tonto, o que é um dado curioso: diferentes obras despertam em
mim diferentes efeitos: o Dom
Quixote
sempre me emociona, algumas frases de Marina Tsivietaieva parecem que
foram escritas para mim, a música de Bach (O
Cravo Bem Temperado
principalmente) despertam-me uma sensibilidade orgânica e
matemática, mas a tontura só duas obras, aliás, conjunto de obras
a causam: certas igrejas barrocas e O
Espelho de
Tarkovski
As
razões são bem diferentes, ainda que o sintoma seja o mesmo; nas
igrejas barrocas (mesmo por foto), como a Sé de Salvador, o excesso
de ornamentação soa opressivo e todo o dourado e contorcido são
como uma bebida de uma embriaguez rápida que depois já nem permite
mais seguir o fluxo dos detalhes ou distinguir qualquer razão de ser
na profusão. Já no O
Espelho
não há excesso de ornamentação, há sim uma profusão de
elementos essenciais e referências que se cruzam como num jogo de
xadrez que se joga através de espelhos confrontados: é a tontura da
essencialidade. E da beleza.
Mas
deixemos nos guiar pelo caudal das imagens. As duas primeiras cenas
do filme (mesmo antes do letreiro) são peças fundamentais, sendo
que a segunda cena a considero uma epígrafe de todo o filme: na
primeira cena um garoto liga uma televisão (é Ignat, filho do
Alexei, personagem principal); esse simples ato de ligar a televisão
é na verdade a anunciação de um mundo, a abertura para um outro
mundo – que é o da própria interioridade do personagem principal
– ele mesmo um alter-ego de Tarkovski, cujas evidências são
dadas ao longo do filme, mas que ficam claras quando a mãe de
Tarkovski interpreta a mãe do personagem e o pai de Tarkovski declama (em off)
ao longo do filme.
Ignat liga a televisão
Na segunda cena aparece um programa
de televisão (o que Ignat está vendo) onde um jovem de
aparentemente uns 15 anos é entrevistado por uma médica; ele é
gago e responde com dificuldade às perguntas feitas (qual seu nome?,
onde você estuda?). A médica começa a fazer uma série de
exercícios de sugestão mental para tentar curá-lo da gagueira.
Primeiro, pede que ele fique de costas e encosta sua mão direita na
cabeça dele e diz-lhe que à medida que ela for tirando a mão ele
se inclinará para trás, o que de fato acontece.
Depois, de frente a ele, pede-lhe
que estenda ambas as mãos para a frente e ao comando dela seus dedos
ficarão duros, sem poder se movimentarem, o que também acontece.
Após isso e ainda com as mãos estendidas, ela fala que ele
concentrará em suas mãos, em seus dedos, todo seu irresistível
desejo, e quando ela contar até três, não só suas mãos voltarão
à mobilidade, mas ele conseguirá falar falar em alto e bom som “eu
sei falar”, ao que ela conta e quando chega ao três ele diz, sem
gaguejar: “eu sei falar”.
Aí logo depois entra o letreiro com o nome O
Espelho.
A
mensagem é clara: superei o que me impedia de falar de mim mesmo, o
que me bloqueava. Essa cena realmente funciona como uma epígrafe,
pois ela anuncia não os fatos que virão, mas a tônica do que virá,
não um diário, mas uma caixa de recordações familiares onde
sonhos, lembranças e expectativas se misturam e ganham a dimensão
da arte pela universalidade das imagens e símbolos e pelo poder da
beleza.
Ainda
que a beleza das imagens pareça seguir a máxima de Breton (A
beleza ou será convulsiva ou não será beleza)
e que todo o filme seja imerso num prolongado clima onírico, O
Espelho está
longe do surrealismo, assim como um quadro de De Chirico está para
um quadro de Ashile Gorki (do primeiro Gorki). Há um ordenamento
entre as imagens e não a assunção de um inconsciente de sonho.
Mas
admiro que Tarkovski tenha conseguido filmar tal coisa na União
Soviética. A linguagem do filme era aquilo que no auge do realismo
socialista era chamado pejorativamente de arte
hermética,
decadente, burguesa. Essa denominação genérica abrangia desde o
abstracionismo até a literatura de Joyce. Mas ao longo da historia
da URSS essas qualificações serviram para criar uma arte
normatizada, submetida ao Estado. O Cinema do Tarkovski, reúne, no
plano narrativo, diversos procedimentos comuns às vanguardas –
como o deslocamento narrativo, a mudança de sujeito, a narrativa
circular e não linear, a presença do sonho, de imagens oriundas do
inconsciente. Mas diferente das vanguardas, o cinema de Tarkovski não se encerra na proposta, na realização formal e no compromisso
que se assume: tais procedimentos são reelaborados em nome de uma
lírica. Ao mesmo tempo, a existência de um diretor como Tarkovski e que ele ainda tenha conseguido realizar sete filmes na Rússia
comunista é um paradoxo. Se Tarkovski era censurado, como o foi com
Andrei
Rublev,
ainda conseguiu filmar (depois de Rublev)
Solaris,
O Espelho, e
Stalker.
Mas tenho minhas dúvidas se ele teria conseguido filmar no ocidente;
a URSS dispensava as exigências de mercado; já que o estado
controlava a produção e a distribuição do filme, que eram
exibidos gratuitamente, ainda, é claro, que ele sofresse censuras
constantes do partido comunista e essa foi uma das razões dele ter
vindo para o ocidente, o não poder trabalhar livremente. No filme
Melancolia
de Moscou,
sobre os últimos anos da vida de Tarkovski, Sukurov fala que ao
vir para a Itália, onde filmou Nostalgia,
Tarkovski teve liberdade mas não facilidades. E um dos elementos que trazia
dificuldades para ele era, além do conteúdo espiritual-simbólico
dos seus filmes, aquilo que ele fala para o Tonino Güerra (no mesmo
documentário), que é o compromisso moral que os cineastas devem ter
com os filmes que fazem: essa é uma idéia no mínimo estranha, num
meio dominado por estratégias de mercado. O cinema de Tarkovski é
um contínuo compromisso – sem concessões – com a arte.
Esse
cinema sem concessões recebe um exemplo no O
Espelho.
Passamos da segunda cena, estamos frente ao espelho que Tarkovski pôs a nossa frente. E espelhos não faltam, estão presentes em
quase todas as cenas.
Numa analogia que chega a ser quase
uma metáfora, Bergson compara a percepção à reflexão:
Quando
um raio de luz passa de um ponto a outro, ele o atravessa geralmente
mudando de direção. Mas podem ser tais as densidades respectivas
dos dois meios que a partir de um certo ângulo de incidência, não
aja mais refração possível. Então produz-se a reflexão total. Do
ponto luminoso forma uma imagem virtual, que simboliza, de algum
modo, a impossibilidade dos raios luminosos prosseguirem seu caminho.
A percepção é um fenômeno do mesmo tipo. O que é dado é a
totalidade das imagens do mundo material juntamente com a totalidade
de seus elementos interiores (…) a percepção assemelha-se
portanto aos fenômenos de reflexão que vêm de uma refração
impedida; é como um efeito de miragem.
Matéria
e Memória, páginas 34/35
O
que percebemos então são os limites estabelecidos pela nossa ação
sobre as coisas, que força à distinção para melhor exercer seu
poder sobre elas. Estabelecendo uma analogia com o narcisismo, no
narcisismo, não deixamos que as coisas emitam sua luz, qualquer
reflexão será somente da nossa luz. A percepção enquanto tal já
uma expressão do nosso modo egocêntrico de encararmos o mundo, o
narcisismo então é a absoluta opacidade.
Mas
Tarkovski procura, no O
Espelho,
não sua ferida narcisista, mas os rostos que estão sob o rosto, as
mãos que erguem o passado à altura de nossos olhos. E da fala do
garoto gago, que recuperou sua fala correta, passamos depois do
letreiro, a uma recordação de infância de Alexei (o alter ego de
Tarkovski).
É
difícil distinguir o que é ficcional e o que é biográfico em O
Espelho,
tantas são as semelhanças com a vida real: o personagem que narra a
história, Alexei, lembra da infância – com sua mãe, com sua
irmã, lembra quando o pai os deixou, lembra da casa que eles
possuíram no campo – e todas essas situações aconteceram com
Tarkovski O uso de sua mãe como atriz no papel da mãe do Alexei
reforça o elo biográfico, ainda que invalide o aspecto simbólico
da mãe, presente em muitos outros filmes de Tarkovski.
Alguém poderia
objetar: mas qual é a graça de alguém assistir um filme recheado
de dados autobiográficos do diretor? Isso por si já não é a perca
da vida privada? Uma exposição desnecessária da intimidade? Na
realidade, sabemos desses elementos porque os pesquisamos; no filme
não há nenhuma evidência personalista; o que importa não é o
factual, mas como a memória organiza as lembranças e como a memória
pode servir de espelho para reconstruirmos nossa face.
A primeira recordação
de Alexei é dele, sua mãe e sua irmã na casa de campo, no dia em
que aconteceu um incêndio no palheiro: ele acorda com o telefone
tocando – percebemos que era um sonho – é sua mãe que lhe
telefona para avisar que uma antiga colega de trabalho morrera, e aí
já estamos em presença de uma recordação da própria mãe, ainda
jovem, revisora de uma tipografia de um jornal estatal, correndo
apressada para a gráfica com receio de ter deixado passar alguma
gralha no jornal do dia; e todo o filme vai se desenvolvendo em torno
das lembranças, sonhos e do presente um tanto nebuloso do próprio
Alexei.
A recordação do
Incêndio
O espelho não traz
respostas, mas enigmas. O olhar sobre si mesmo é uma tentativa de
achar respostas, tentar desvendar a si mesmo, achar entre tantos
rostos o próprio rosto. O processo de formação do indivíduo é
algo impossível de descrever – uma genética da mente individual
teria que ter a mesma natureza da psique – dinâmica, instável, em
permanente mutação. O que somos, o que resta de nós quando chega a
matemática da morte? Somos às vezes como esses pequenos animais
cuja fina membrana permite que eles absorvam elementos do mundo
exterior mudando seu próprio corpo. A memória é nosso maior elo
conosco mesmo, e, como diria Bergson, memória é imagem – temos
lembranças de cheiros, sentimentos, emoções, mas sempre essas
recordações nos aparecem como imagens – quadros de uma totalidade
que um dia percebemos e dos quais isolamos aqueles elementos e/ou
episódios que para nós – por uma ou outra razão – adquiriram
uma significação particular.
Alexei tem um sonho
recorrente: nesse sonho ele tenta entrar em casa, ainda criança, mas
a porta está fechada, e ele é obrigado a dar a volta e entrar por
trás. Ao entrar, ele encontra um espelho (?), mas esse sonho se
repetirá outras vezes e o final do sonho mudará.
Nessa cadeia de
recordações, aparecem as imagens de um passado comum, coletivo:
quando Alexei recorda das aulas de tiro que tivera na infância
lembra-se de um colega cujos pais morreram no cerco de Leningrado –
e ao terminar esse quadro da memória aparecem o que parece ser
imagens da época – de exércitos em marcha pelos campos gelados da
Rússia; assim como quando na casa do Alexei adulto, onde ele recebe
a visita de um amigo espanhol, que fala encenando sobre o toureiro
Palomo Linares. Logo após essa recordação aparecem imagens da
Espanha republicana sendo bombardeada, assim como aparecem as
crianças em fuga e entre as imagens das pessoas a correrem e a
fugirem, a de uma mulher andando apressada carregando um espelho
partido.
Não
há talvez imagem melhor a nos representar: a história nos divide, a
história nos quebra; somos fragmentos em meio ao caos e à
convulsão, que nos arrasta em direções inesperadas. A mulher que
carrega o espelho é a própria imagem-metáfora do indivíduo que
quer se preservar frente à história, e não é se preservar no
sentido de guardar uma reserva psicológica de si mesmo, mas se
preservar como pessoa, como humano que tem um lar, uma vida, que as
guerras vêm destruir, se preservar como o velho de A
Infância de Ivan (o
primeiro longa metragem de Tarkovski), de cuja casa só resta a
lareira e a porta, e mesmo assim ele a limpa, e mesmo assim fecha a
porta, esperando que um dia sua mulher, que já morreu nas mãos dos
nazistas, volte para casa.
Há
uma ambigüidade no espelho enquanto símbolo: por um lado, foi
considerado símbolo da vaidade e do narcisismo que, analogamente à
metáfora bergsoniana, é o turvamento dos meios, a refração
impedida, de modo que só conseguimos perceber a nós mesmos; mas
desde uma remota antiguidade os espelhos eram usados na magia como
meios para visualizar o futuro ou as coisas ocultas. A virtualidade
do espelho trazia em si a possibilidade de enxergar o mundo real,
além do aparente. No Livro
Supremo dos Ensinamentos Mágicos de
Paracelso ele ensina a preparar o espelho mágico, feito da amálgama
de vários metais, nos intervalos astrológicos devidos. A função
do espelho mágico é facultar a visão do que está acontecendo à
distância ou do outro mundo, o mundo além, ou então ao próprio
ser interior. A condição para contemplar ao ser interior é estar
livre do ego, pois só assim será possível acessar às portas do
outro mundo, ou o que Blake chamaria de as
portas da percepção,
senão o espelho só mostrará o turvo mundo interior do ego.
Paracelso chama de constelação
do espelho,
e na realidade dá a forma para compor três espelhos: Num
espelho refletem-se as imagens dos homens, assim como ladrões,
inimigos e outros, bem como as figuras de pastor, armas, combates,
assédios...
no outro, refletem-se
os escritos, discursos,palavras, conselhos, o lugar e o momento em
que são elaborados ou registrados, como tudo aquilo que foi
decretado e concluído;
no terceiro espelho aparecerá o que foi escrito nas letras e nos
livros e fixado pela pena, embora secreto e ignorado.
(Sétimo
Livro Supremo dos Ensinamentos Mágicos, p.70).
A criação do espelho é basicamente uma operação alquímica, da
fusão de diferentes metais, que permitirá vislumbrar os
acontecimentos acima.
Esse
espelho mágico está longe, muito longe, do narcisismo primário,
ele abre as portas para o outro mundo, para o real.
O
Espelho
de Tarkovski também não é uma expressão do narcisismo, tanto que
do Alexei, que é o alter ego de Tarkovski, do mesmo quase nunca
aparece a imagem: não é a si mesmo que Tarkovski quer ver, mas às
raízes, ao que lhe forma – acontecimentos, gestos, situações,
estados; os episódios que ele lembra têm a diversidade da vida –
o pai que abandona a família, a mãe que vai vender suas jóias para
fazer frente às despesas da casa, o incêndio do paiol – ao mesmo
que as imagens dos acontecimentos do presente também se revestem de
diversidade e mistério: como quando o filho de Alexei, ao ficar
sozinho no apartamento, vê uma mulher fantasma que pede que ele leia
um trecho de um discurso de Rousseau (ou Puchkin?) que fala sobre o
papel da Rússia na historia da Europa.
Esse é também um
espelho mágico.
II
Não
sem razão Tarkovski dedicou O
Espelho
à sua mãe: sua presença no filme é uma constante e seu papel é
ampliado pelo fato de que ela interpreta a ela mesma; a imagem dos
pais é uma constante nos filmes de Tarkovski, eles são mais
simbólicos que reais, mesmo quando não renunciam sua cotidianidade;
a mãe de A
Infância de Ivan,
dando água para Ivan no início do filme e também no final, antes
que ele saia a correr em direção ao mar (a impressão que tive é
que ela lhe deu água do mar para beber); o reencontro com o pai, que
é ao mesmo tempo um encontro com o outro, no final de Solaris,
a mãe no Espelho,
como lembrança, como imagem, como símbolo, os pais em Stalker
(uma das últimas cenas é a belíssima cena em que o stalker está a
carregar a filha deficiente nas costas); a recordação da mãe em
Nostalgia
(que dialoga – e muito – com O
Espelho)
e pai em O
Sacrifício,
quase que uma imagem alquímica do pai, com seu quimono preto com o
símbolo do yin e yang.
A
irmã de Tarkovski (Marina Tarkovskaia) em uma entrevista publicada
no site espanhol www.andreitarkovski.org
disse que sua mãe só aceitou fazer o papel por causa do filho, mas
que ela era muito tímida e não ficava nenhum pouco à vontade com a
equipe de produção, é curioso porque o filme se chama O
Espelho,
e o espelho enquanto objeto aparece diversas vezes, mas o narrador
nunca aparece frente ao espelho, a não ser enquanto criança: é
sempre a mãe ou a esposa quem se olha no espelho – ele se vê
através dos outros.
Nesse sentido, de
olhar para os outros para tentar se enxergar, a história também é
um espelho, e as imagens da história são como um grande espelho
coletivo, onde enxergamos nosso passado, sabemos um pouco quem somos:
há, no filme, uma série de registros históricos, imagens
históricas – da guerra civil espanhola, do exército soviético
(no cerco de Leningrado?), da revolução cultural chinesa – e eles
compõem um dos planos (o plano histórico, o plano lírico, o plano
real e o da memória), que são atravessados pela consciência do
narrador ou por sua memória, que assim os unifica num tempo contínuo
– como se não houvesse passado ou futuro, só o tempo presente que
unifica as experiências nesse tempo, formado também por imagens, a
imagem da mãe é a mais presente.
Qual
o sentido do Espelho?
O filme é um olhar de Tarkovski sobre si mesmo, mas ele transcende
o biográfico por inseri-lo numa ordem universal, simbólica; longe
do narcisismo primário, o olhar sobre si mesmo do Espelho
é uma procura por respostas que digam da nossa existência as teias
da trama, os fios do enredo – é preciso olhar para si mesmo, olhar
para trás, identificar marcas, parcelas de uma soma da qual não
saberemos o resultado: para nós ainda é sempre soma de resultado
parcial. Mas fica-nos a impressão de que há a infância foi a
detentora dos principais termos da soma, talvez porque éramos mais
ávidos por somar, ávidos por saber, ávidos por viver, porque a
inocência dá a infância seu fogo mais forte e qualquer descoberta
– assim como qualquer perda – é a descoberta ou perda do mundo.
Curiosamente, o Alexei do filme só aparece como criança, como
adulto ele é quase um fantasma, um ausente.
Tarkovski buscou a vida toda por respostas, por sentidos para a existência.
Seus filmes são ao mesmo tempo uma procura por respostas e também a
resposta possível do mundo da arte; ele buscava e construía, se
preguntava e respondia – à sua maneira, com novas indagações –
às grandes questões da existência. Talvez O
Espelho
seja a síntese e metáfora de toda sua obra – e esse espelho é
mágico, abre as portas para um outro mundo, como o espelho de Alice
– um outro cosmos que se esconde por trás do aparente, à nossa
espera, à espera de que lhe demos as mãos ou entremos no quarto
mágico – como em Stalker,
onde tudo pode se realizar.