01 outubro 2013

Tarkovski - O Espelho

I

O que vemos quando olhamos para o espelho? É a nós mesmos que enxergamos ou o que vemos é mais ou menos de nós? Essa pergunta não é mera retórica; ela visa, isso sim, quebrar a comodidade das deduções fáceis, fruto da banalização dos conceitos e da preguiça intelectual. A maioria de nós diria, sem pestanejar, que ao olharmos para um espelho vemos a nós mesmos refletidos, como se atrás do pronome “nós” e do “eu” que ali se esconde houvesse algum grau de certeza oriunda da gramática e fruto da nossa sensibilidade que num primeiro momento nos atesta que o que vemos é igual à nossa própria imagem; mas num segundo momento percebemos que a gramática não consegue unir nossos eus, nossa interioridade fragmentada, que a imagem que vemos é uma imago, ou seja, uma reprodução da nossa materialidade num espaço plano virtual, e que nossa face, essa marca tão grande de identidade pessoal, não é só nossa – nossos traços traem a herança dos nossos ancestrais – somos também a imagem de nossos pais e de tantos outros que em rio desaguaram em nós. Então, já não fica tão fácil responder ao “o que vemos no espelho”? Porque nossa certezas não refletem mais no vidro polido ou no metal: nossa certeza é uma probabilidade mentirosa.
Nada melhor do escolher O Espelho, entre os filmes de Tarkovski, para começar a falar de sua obra, porque O Espelho é provavelmente seu filme mais pessoal e exige de nós um outro olhar, não o olhar das certezas nem o da dúvida, mas de certa maneira o olhar de surpresa das crianças, sempre abertas ao porvir.
O Espelho foi lançado em 1974 e é considerado como um dos filmes mais “difíceis” de Tarkovski: essa afirmação não é verdadeira, essa dificuldade só existe quando contrapomos um filme como O Espelho a outros do circuíto comercial; mas de fato não é um filme que faça concessões – sua narrativa articula-se em torno de diferentes planos – do sonho, da memória, do real, sem seguirem uma linearidade e o filme é pontuado por belíssimas tomadas pontuadas por poemas de Arseni Tarkovski, o pai do diretor.
É um filme do qual não canso de assistir, mas toda vez que assisto fico tonto, o que é um dado curioso: diferentes obras despertam em mim diferentes efeitos: o Dom Quixote sempre me emociona, algumas frases de Marina Tsivietaieva parecem que foram escritas para mim, a música de Bach (O Cravo Bem Temperado principalmente) despertam-me uma sensibilidade orgânica e matemática, mas a tontura só duas obras, aliás, conjunto de obras a causam: certas igrejas barrocas e O Espelho de Tarkovski
As razões são bem diferentes, ainda que o sintoma seja o mesmo; nas igrejas barrocas (mesmo por foto), como a Sé de Salvador, o excesso de ornamentação soa opressivo e todo o dourado e contorcido são como uma bebida de uma embriaguez rápida que depois já nem permite mais seguir o fluxo dos detalhes ou distinguir qualquer razão de ser na profusão. Já no O Espelho não há excesso de ornamentação, há sim uma profusão de elementos essenciais e referências que se cruzam como num jogo de xadrez que se joga através de espelhos confrontados: é a tontura da essencialidade. E da beleza.
Mas deixemos nos guiar pelo caudal das imagens. As duas primeiras cenas do filme (mesmo antes do letreiro) são peças fundamentais, sendo que a segunda cena a considero uma epígrafe de todo o filme: na primeira cena um garoto liga uma televisão (é Ignat, filho do Alexei, personagem principal); esse simples ato de ligar a televisão é na verdade a anunciação de um mundo, a abertura para um outro mundo – que é o da própria interioridade do personagem principal – ele mesmo um alter-ego de Tarkovski, cujas evidências são dadas ao longo do filme, mas que ficam claras quando a mãe de Tarkovski interpreta a mãe do personagem e o pai de Tarkovski declama (em off) ao longo do filme.


Ignat liga a televisão

Na segunda cena aparece um programa de televisão (o que Ignat está vendo) onde um jovem de aparentemente uns 15 anos é entrevistado por uma médica; ele é gago e responde com dificuldade às perguntas feitas (qual seu nome?, onde você estuda?). A médica começa a fazer uma série de exercícios de sugestão mental para tentar curá-lo da gagueira. Primeiro, pede que ele fique de costas e encosta sua mão direita na cabeça dele e diz-lhe que à medida que ela for tirando a mão ele se inclinará para trás, o que de fato acontece.




Depois, de frente a ele, pede-lhe que estenda ambas as mãos para a frente e ao comando dela seus dedos ficarão duros, sem poder se movimentarem, o que também acontece. Após isso e ainda com as mãos estendidas, ela fala que ele concentrará em suas mãos, em seus dedos, todo seu irresistível desejo, e quando ela contar até três, não só suas mãos voltarão à mobilidade, mas ele conseguirá falar falar em alto e bom som “eu sei falar”, ao que ela conta e quando chega ao três ele diz, sem gaguejar: “eu sei falar”.





Aí logo depois entra o letreiro com o nome O Espelho.

A mensagem é clara: superei o que me impedia de falar de mim mesmo, o que me bloqueava. Essa cena realmente funciona como uma epígrafe, pois ela anuncia não os fatos que virão, mas a tônica do que virá, não um diário, mas uma caixa de recordações familiares onde sonhos, lembranças e expectativas se misturam e ganham a dimensão da arte pela universalidade das imagens e símbolos e pelo poder da beleza.

Ainda que a beleza das imagens pareça seguir a máxima de Breton (A beleza ou será convulsiva ou não será beleza) e que todo o filme seja imerso num prolongado clima onírico, O Espelho está longe do surrealismo, assim como um quadro de De Chirico está para um quadro de Ashile Gorki (do primeiro Gorki). Há um ordenamento entre as imagens e não a assunção de um inconsciente de sonho.

Mas admiro que Tarkovski tenha conseguido filmar tal coisa na União Soviética. A linguagem do filme era aquilo que no auge do realismo socialista era chamado pejorativamente de arte hermética, decadente, burguesa. Essa denominação genérica abrangia desde o abstracionismo até a literatura de Joyce. Mas ao longo da historia da URSS essas qualificações serviram para criar uma arte normatizada, submetida ao Estado. O Cinema do Tarkovski, reúne, no plano narrativo, diversos procedimentos comuns às vanguardas – como o deslocamento narrativo, a mudança de sujeito, a narrativa circular e não linear, a presença do sonho, de imagens oriundas do inconsciente. Mas diferente das vanguardas, o cinema de Tarkovski não se encerra na proposta, na realização formal e no compromisso que se assume: tais procedimentos são reelaborados em nome de uma lírica. Ao mesmo tempo, a existência de um diretor como Tarkovski e que ele ainda tenha conseguido realizar sete filmes na Rússia comunista é um paradoxo. Se Tarkovski era censurado, como o foi com Andrei Rublev, ainda conseguiu filmar (depois de Rublev) Solaris, O Espelho, e Stalker. Mas tenho minhas dúvidas se ele teria conseguido filmar no ocidente; a URSS dispensava as exigências de mercado; já que o estado controlava a produção e a distribuição do filme, que eram exibidos gratuitamente, ainda, é claro, que ele sofresse censuras constantes do partido comunista e essa foi uma das razões dele ter vindo para o ocidente, o não poder trabalhar livremente. No filme Melancolia de Moscou, sobre os últimos anos da vida de Tarkovski, Sukurov fala que ao vir para a Itália, onde filmou Nostalgia, Tarkovski teve liberdade mas não facilidades. E um dos elementos que trazia dificuldades para ele era, além do conteúdo espiritual-simbólico dos seus filmes, aquilo que ele fala para o Tonino Güerra (no mesmo documentário), que é o compromisso moral que os cineastas devem ter com os filmes que fazem: essa é uma idéia no mínimo estranha, num meio dominado por estratégias de mercado. O cinema de Tarkovski é um contínuo compromisso – sem concessões – com a arte.

Esse cinema sem concessões recebe um exemplo no O Espelho. Passamos da segunda cena, estamos frente ao espelho que Tarkovski pôs a nossa frente. E espelhos não faltam, estão presentes em quase todas as cenas.

Numa analogia que chega a ser quase uma metáfora, Bergson compara a percepção à reflexão:

Quando um raio de luz passa de um ponto a outro, ele o atravessa geralmente mudando de direção. Mas podem ser tais as densidades respectivas dos dois meios que a partir de um certo ângulo de incidência, não aja mais refração possível. Então produz-se a reflexão total. Do ponto luminoso forma uma imagem virtual, que simboliza, de algum modo, a impossibilidade dos raios luminosos prosseguirem seu caminho. A percepção é um fenômeno do mesmo tipo. O que é dado é a totalidade das imagens do mundo material juntamente com a totalidade de seus elementos interiores (…) a percepção assemelha-se portanto aos fenômenos de reflexão que vêm de uma refração impedida; é como um efeito de miragem.
Matéria e Memória, páginas 34/35

O que percebemos então são os limites estabelecidos pela nossa ação sobre as coisas, que força à distinção para melhor exercer seu poder sobre elas. Estabelecendo uma analogia com o narcisismo, no narcisismo, não deixamos que as coisas emitam sua luz, qualquer reflexão será somente da nossa luz. A percepção enquanto tal já uma expressão do nosso modo egocêntrico de encararmos o mundo, o narcisismo então é a absoluta opacidade.
Mas Tarkovski procura, no O Espelho, não sua ferida narcisista, mas os rostos que estão sob o rosto, as mãos que erguem o passado à altura de nossos olhos. E da fala do garoto gago, que recuperou sua fala correta, passamos depois do letreiro, a uma recordação de infância de Alexei (o alter ego de Tarkovski).

É difícil distinguir o que é ficcional e o que é biográfico em O Espelho, tantas são as semelhanças com a vida real: o personagem que narra a história, Alexei, lembra da infância – com sua mãe, com sua irmã, lembra quando o pai os deixou, lembra da casa que eles possuíram no campo – e todas essas situações aconteceram com Tarkovski O uso de sua mãe como atriz no papel da mãe do Alexei reforça o elo biográfico, ainda que invalide o aspecto simbólico da mãe, presente em muitos outros filmes de Tarkovski.

Alguém poderia objetar: mas qual é a graça de alguém assistir um filme recheado de dados autobiográficos do diretor? Isso por si já não é a perca da vida privada? Uma exposição desnecessária da intimidade? Na realidade, sabemos desses elementos porque os pesquisamos; no filme não há nenhuma evidência personalista; o que importa não é o factual, mas como a memória organiza as lembranças e como a memória pode servir de espelho para reconstruirmos nossa face.

A primeira recordação de Alexei é dele, sua mãe e sua irmã na casa de campo, no dia em que aconteceu um incêndio no palheiro: ele acorda com o telefone tocando – percebemos que era um sonho – é sua mãe que lhe telefona para avisar que uma antiga colega de trabalho morrera, e aí já estamos em presença de uma recordação da própria mãe, ainda jovem, revisora de uma tipografia de um jornal estatal, correndo apressada para a gráfica com receio de ter deixado passar alguma gralha no jornal do dia; e todo o filme vai se desenvolvendo em torno das lembranças, sonhos e do presente um tanto nebuloso do próprio Alexei.



A recordação do Incêndio

O espelho não traz respostas, mas enigmas. O olhar sobre si mesmo é uma tentativa de achar respostas, tentar desvendar a si mesmo, achar entre tantos rostos o próprio rosto. O processo de formação do indivíduo é algo impossível de descrever – uma genética da mente individual teria que ter a mesma natureza da psique – dinâmica, instável, em permanente mutação. O que somos, o que resta de nós quando chega a matemática da morte? Somos às vezes como esses pequenos animais cuja fina membrana permite que eles absorvam elementos do mundo exterior mudando seu próprio corpo. A memória é nosso maior elo conosco mesmo, e, como diria Bergson, memória é imagem – temos lembranças de cheiros, sentimentos, emoções, mas sempre essas recordações nos aparecem como imagens – quadros de uma totalidade que um dia percebemos e dos quais isolamos aqueles elementos e/ou episódios que para nós – por uma ou outra razão – adquiriram uma significação particular.

Alexei tem um sonho recorrente: nesse sonho ele tenta entrar em casa, ainda criança, mas a porta está fechada, e ele é obrigado a dar a volta e entrar por trás. Ao entrar, ele encontra um espelho (?), mas esse sonho se repetirá outras vezes e o final do sonho mudará.

Nessa cadeia de recordações, aparecem as imagens de um passado comum, coletivo: quando Alexei recorda das aulas de tiro que tivera na infância lembra-se de um colega cujos pais morreram no cerco de Leningrado – e ao terminar esse quadro da memória aparecem o que parece ser imagens da época – de exércitos em marcha pelos campos gelados da Rússia; assim como quando na casa do Alexei adulto, onde ele recebe a visita de um amigo espanhol, que fala encenando sobre o toureiro Palomo Linares. Logo após essa recordação aparecem imagens da Espanha republicana sendo bombardeada, assim como aparecem as crianças em fuga e entre as imagens das pessoas a correrem e a fugirem, a de uma mulher andando apressada carregando um espelho partido.

Não há talvez imagem melhor a nos representar: a história nos divide, a história nos quebra; somos fragmentos em meio ao caos e à convulsão, que nos arrasta em direções inesperadas. A mulher que carrega o espelho é a própria imagem-metáfora do indivíduo que quer se preservar frente à história, e não é se preservar no sentido de guardar uma reserva psicológica de si mesmo, mas se preservar como pessoa, como humano que tem um lar, uma vida, que as guerras vêm destruir, se preservar como o velho de A Infância de Ivan (o primeiro longa metragem de Tarkovski), de cuja casa só resta a lareira e a porta, e mesmo assim ele a limpa, e mesmo assim fecha a porta, esperando que um dia sua mulher, que já morreu nas mãos dos nazistas, volte para casa.

Há uma ambigüidade no espelho enquanto símbolo: por um lado, foi considerado símbolo da vaidade e do narcisismo que, analogamente à metáfora bergsoniana, é o turvamento dos meios, a refração impedida, de modo que só conseguimos perceber a nós mesmos; mas desde uma remota antiguidade os espelhos eram usados na magia como meios para visualizar o futuro ou as coisas ocultas. A virtualidade do espelho trazia em si a possibilidade de enxergar o mundo real, além do aparente. No Livro Supremo dos Ensinamentos Mágicos de Paracelso ele ensina a preparar o espelho mágico, feito da amálgama de vários metais, nos intervalos astrológicos devidos. A função do espelho mágico é facultar a visão do que está acontecendo à distância ou do outro mundo, o mundo além, ou então ao próprio ser interior. A condição para contemplar ao ser interior é estar livre do ego, pois só assim será possível acessar às portas do outro mundo, ou o que Blake chamaria de as portas da percepção, senão o espelho só mostrará o turvo mundo interior do ego. Paracelso chama de constelação do espelho, e na realidade dá a forma para compor três espelhos: Num espelho refletem-se as imagens dos homens, assim como ladrões, inimigos e outros, bem como as figuras de pastor, armas, combates, assédios... no outro, refletem-se os escritos, discursos,palavras, conselhos, o lugar e o momento em que são elaborados ou registrados, como tudo aquilo que foi decretado e concluído; no terceiro espelho aparecerá o que foi escrito nas letras e nos livros e fixado pela pena, embora secreto e ignorado. (Sétimo Livro Supremo dos Ensinamentos Mágicos, p.70). A criação do espelho é basicamente uma operação alquímica, da fusão de diferentes metais, que permitirá vislumbrar os acontecimentos acima.

Esse espelho mágico está longe, muito longe, do narcisismo primário, ele abre as portas para o outro mundo, para o real.

O Espelho de Tarkovski também não é uma expressão do narcisismo, tanto que do Alexei, que é o alter ego de Tarkovski, do mesmo quase nunca aparece a imagem: não é a si mesmo que Tarkovski quer ver, mas às raízes, ao que lhe forma – acontecimentos, gestos, situações, estados; os episódios que ele lembra têm a diversidade da vida – o pai que abandona a família, a mãe que vai vender suas jóias para fazer frente às despesas da casa, o incêndio do paiol – ao mesmo que as imagens dos acontecimentos do presente também se revestem de diversidade e mistério: como quando o filho de Alexei, ao ficar sozinho no apartamento, vê uma mulher fantasma que pede que ele leia um trecho de um discurso de Rousseau (ou Puchkin?) que fala sobre o papel da Rússia na historia da Europa.
Esse é também um espelho mágico.

II
Não sem razão Tarkovski dedicou O Espelho à sua mãe: sua presença no filme é uma constante e seu papel é ampliado pelo fato de que ela interpreta a ela mesma; a imagem dos pais é uma constante nos filmes de Tarkovski, eles são mais simbólicos que reais, mesmo quando não renunciam sua cotidianidade; a mãe de A Infância de Ivan, dando água para Ivan no início do filme e também no final, antes que ele saia a correr em direção ao mar (a impressão que tive é que ela lhe deu água do mar para beber); o reencontro com o pai, que é ao mesmo tempo um encontro com o outro, no final de Solaris, a mãe no Espelho, como lembrança, como imagem, como símbolo, os pais em Stalker (uma das últimas cenas é a belíssima cena em que o stalker está a carregar a filha deficiente nas costas); a recordação da mãe em Nostalgia (que dialoga – e muito – com O Espelho) e pai em O Sacrifício, quase que uma imagem alquímica do pai, com seu quimono preto com o símbolo do yin e yang.

A irmã de Tarkovski (Marina Tarkovskaia) em uma entrevista publicada no site espanhol www.andreitarkovski.org disse que sua mãe só aceitou fazer o papel por causa do filho, mas que ela era muito tímida e não ficava nenhum pouco à vontade com a equipe de produção, é curioso porque o filme se chama O Espelho, e o espelho enquanto objeto aparece diversas vezes, mas o narrador nunca aparece frente ao espelho, a não ser enquanto criança: é sempre a mãe ou a esposa quem se olha no espelho – ele se vê através dos outros.

Nesse sentido, de olhar para os outros para tentar se enxergar, a história também é um espelho, e as imagens da história são como um grande espelho coletivo, onde enxergamos nosso passado, sabemos um pouco quem somos: há, no filme, uma série de registros históricos, imagens históricas – da guerra civil espanhola, do exército soviético (no cerco de Leningrado?), da revolução cultural chinesa – e eles compõem um dos planos (o plano histórico, o plano lírico, o plano real e o da memória), que são atravessados pela consciência do narrador ou por sua memória, que assim os unifica num tempo contínuo – como se não houvesse passado ou futuro, só o tempo presente que unifica as experiências nesse tempo, formado também por imagens, a imagem da mãe é a mais presente.

Qual o sentido do Espelho? O filme é um olhar de Tarkovski sobre si mesmo, mas ele transcende o biográfico por inseri-lo numa ordem universal, simbólica; longe do narcisismo primário, o olhar sobre si mesmo do Espelho é uma procura por respostas que digam da nossa existência as teias da trama, os fios do enredo – é preciso olhar para si mesmo, olhar para trás, identificar marcas, parcelas de uma soma da qual não saberemos o resultado: para nós ainda é sempre soma de resultado parcial. Mas fica-nos a impressão de que há a infância foi a detentora dos principais termos da soma, talvez porque éramos mais ávidos por somar, ávidos por saber, ávidos por viver, porque a inocência dá a infância seu fogo mais forte e qualquer descoberta – assim como qualquer perda – é a descoberta ou perda do mundo. Curiosamente, o Alexei do filme só aparece como criança, como adulto ele é quase um fantasma, um ausente.


Tarkovski buscou a vida toda por respostas, por sentidos para a existência. Seus filmes são ao mesmo tempo uma procura por respostas e também a resposta possível do mundo da arte; ele buscava e construía, se preguntava e respondia – à sua maneira, com novas indagações – às grandes questões da existência. Talvez O Espelho seja a síntese e metáfora de toda sua obra – e esse espelho é mágico, abre as portas para um outro mundo, como o espelho de Alice – um outro cosmos que se esconde por trás do aparente, à nossa espera, à espera de que lhe demos as mãos ou entremos no quarto mágico – como em Stalker, onde tudo pode se realizar.

16 fevereiro 2013

Bodas de Latão ou o Coração do Mundo no Site do Hermeto Pascoal

Ano passado, depois de assistir ao espetáculo Bodas de Latão, de Hermeto Pascoal e Aline Morena, escrevi um artigo e enviei para eles (publiquei também aqui na ESFERA), como homenagem mesmo à aventura musico-espiritual que o espetáculo foi. Mas só recentemente percebi - falha minha - que o artigo foi publicado por eles no site do Hermeto Pascoal - o que para mim foi uma honra. O link da postagem no site deles é http://www.hermetopascoal.com.br/noticias_detail.asp?id_noticias=143 

Lá, o mesmo artigo, na casa do Hermeto.

Abs,

Gledson

15 fevereiro 2013

O Sonho de Marylin

"Eu havia pensado em muitas coisas desde que a conhecera,
 mas nunca na morte dela.
 A despeito de sua idade, ela alimentava um amor em mim.
 Agora aquilo se fora.
 Agora que ela estava morta, eu não podia mais pensar nela.
 Solucei, me lamentei e pranteei até que tudo se fosse,
 tudo aquilo, e como sempre me descobri sozinho no mundo."
de Sonhos de Bunker Hill, de John Fante, p. 164
 
A imago hollywoodiana não possuía substância: cada foto, cada pose dos atores ou diretores era uma composição, uma construção - técnica e eficiente - cuja função era erguer uma imagem afim ao padrão da indústria cultural, disseminada pelos estúdios; nessa imago coletiva, Hollywood era um lugar de glamour, festas e felicidade contínuas, uma espécie de axis mundi por onde girava o inconsciente dos Estados Unidos, e nem é possível separar a imago hollywoodiana da auto-projeção do país, pois ambas se confundem e chegará o momento em que a própria política resvalará para o espetáculo.
Uma imago sem substância é um simulacro e às vezes o simulacro é revelado, quando a imago é quebrada, quando o discurso construído para alicerçar essa imago é desmentido pelas evidências da vida real - sempre tão inesperada, tão atribulada, tão sem controle. Por isso que, no auge da era dos grandes estúdios (até os anos 50), estes impunham rígidas condições aos atores, controlavam suas vidas, seus encontros, impunham fatos - tudo para manter a paz entre as colinas de Hollywood, tudo para que os simulacros - sustentáculos da poderosa indústria cultural - não se desfizessem ao sol sob as palmeiras da Califórnia.
Marylin Monroe era uma vítima desses artifícios, de uma imagem construída apesar de si mesma. Como dizem os organizadores do livro Fragmentos (publicado no Brasil o ano passado pela editora Tordesilhas)
É evidente, entretanto, que, durante sua vida, os meios de comunicação
inventaram, sob a pressão dos estúdios, a imagem de uma mulher alegre,
radiante, à custa de mostra-la como uma loira um tanto boba.
Pense-se em seus papeis em Os Homens Preferem as Loiras, Adorável Pecadora,
O Pecado mora ao lado. Diante desse imaginário
artificial, qualquer desafinar era inadmissível.
Não havia lugar para uma Marylin melancólica.
O ícone não devia permitir nenhuma contradição.
(Fragmentos, p. 7)
Uma imago projetada em torno do corpo, à custa dele, de sua vitalidade, de suas energias. Marylin era uma mulher sensual, naturalmente, mas a imagem projetada era a de uma mulher sempre disponível, sempre solicita, como de fato nenhuma mulher é.
Mas Marylin tinha substância, diferente do simulacro, era habitada por uma interioridade atormentada, cheia de dúvidas e sonhos, exigente e diáfana, como se a muito custo conseguisse se encaixar no mundo, responder não somente aos apelos da imagem projetada, mas também dos papeis sociais, do lugar real no mundo, o qual somos obrigados a ocupar.
Lendo a coletânea de cartas, trechos de diários e poemas publicados em 2011 (Fragmentos, ed. Tordesilhas), a imagem que se destaca contra o pano de fundo tumultuado de sua vida assemelha-se mais a de Arturo Bandini que a de uma musa sexy. Para quem não lembra, Arturo Bandini é o alter ego de John Fante, escritor do clássico Pergunte ao Pó; pensamos no Bandini dos Sonhos de Bunker Hill, transitando pelos arredores de Hollywood, tentando sobreviver como escritor numa cidade marcada pelo vazio. As semelhanças são evidentes por si mesmas:Bandini cedo sai da casa dos pais (no Colorado) e vai tentar a vida de escritor na meca dos Sonhos (Los Angeles); trabalha como garçom, tem um conto publicado numa revista, tem um romance com uma mulher mais velha que sua mãe, vive o sonho e o pesadelo de ser contratado como roteirista de um estúdio. É, como ele próprio se define, um caipira, um desajustado social que não encontra seu lugar no mundo. Marylin não era uma caipira (nasceu em Los Angeles), era uma órfã que teve a infância dividida entre vários lares, que se casa aos 17 anos para conquistar alguma independência, que posa nua para uma revista para poder comprar comida, até que um dia consegue pequenos papeis em filmes e entra de vez no mundo do cinema.
Não são os acidentes de percurso que marcam a vida de ambos, mas o desamparo, o estar só no mundo, um mundo hostil, cheio de armadilhas, onde a custo procuramos um sentido para as coisas. Quase ao final de Sonhos de Bunker Hill, depois de visitar sua cidade natal, Bandini retorna à Los Angeles e procura sua antiga amante, a Sra. Brownell e descobre que ela morreu e ele fica desolado (citação da epígrafe). Sentado num banco de praça, fica cerca de duas horas lamentando a morte dela e ao final se descobre como sempre sozinho no mundo. O texto é seco, Fante não apela a um sentimentalismo barato, mas realmente Bandini está só, e a imagem daquele garoto sozinho, com 17 dólares no bolso em uma cidade hostil, é comovente sem ser piegas.
No início dos anos 50, numa caderneta preta, Marylin anota:Sozinha!!!!!! Eu estou sozinha. Eu estou sempre sozinha, não importa o que aconteça. É a sensação do puro desamparo, do sujeito lançado no mundo, o puro ser tentando se formar ou se conformar ao mundo, cercado de dúvidas, rodeado de nãos, à espreita do medo que pode paralisá-lo. Na mesma página ela anotou: Não existe nada a temer, exceto o próprio medo.
A Marylin que se revela nesses escritos está a muitos anos luz de distância da imagem projetada pela mídia: Marylin era uma criatura atormentada, que questionava seu lugar no mundo, sua própria identidade, seu ser e estar. Na verdade, Marylin sentia-se dividida entre a imago projetada e sua natureza real, entre a pressão hollywoodiana e a liberdade novaiorkina.
A partir de 1955 Marylin passa a fazer os famosos cursos do Actors Studio, em Nova York, com Lee e Paula Strassberg, que formaram toda uma geração de jovens atores como Marlon Brando e Paul Newmann. Nova York passa a encarnar então o antípoda moral de Hollywood, o lugar onde ela tenta desenvolver sua sensibilidade de acordo com suas aspirações artísticas e não somente para atender aos chamados da indústria cultural.
Isso não a tranquiliza. Marylin possuía uma extrema desconfiança de si mesma, típica das criaturas desamparadas que sem nenhum sopro divino erguem-se do barro em direção a algum lugar. É o que revela o sonho pesadelo que ela registra em 1955. No sonho, Strassberg é um cirurgião que vai operá-la, para trazê-la de volta à vida, e curá-la de uma doença terrível(não identificada); Strassberg a abre com um bisturi e não há nada lá dentro, ele fica decepcionado, pois esperava encontrar muito, mas a única coisa que saiu foi uma serragem finíssima - como a de uma boneca de pano - e a serragem se espalha pelo chão e pela mesa(...).
O sonho é uma alegoria muito bem elaborada pelo inconsciente e de certa forma revela aquilo que num primeiro momento Marylin pensa de si mesma; foi em 1955 que ela começou a ter aulas com os Strassberg, e também começou a fazer sessões de psicanálise: ela não se sente à altura do desafio que Strassberg representa e imagina-se como uma boneca vazia cheia de serragem. Mas a boneca de pano, facilmente manipulável e vazia, não é o que ela é, mas aquilo que projetavam dela: a imago duramente construída pela indústria cultural ameaça tomar conta para sempre da Marylin real, a menina desamparada, a Bandini solitária, posando nua para não passar fome e questionando-se sobre a verdade, não a deusa deslumbrante com as pernas e a calcinha à mostra de O Pecado Mora ao Lado, mas a mulher de olhar triste, perdido, como aparece numa foto de André de Diennes: o olhar assustado, os cabelos em desalinho, mas ainda assim tão bela quanto um espírito das águas escondendo-se do temporal.
A percepção do sonho indica justamente a resistência de Marylin à imago que tentava se apoderar dela; o conflito só existe onde há resistência e o sonho dela era justamente a expressão de um conflito. Outros sentiram-se bem no círculo vicioso de Holywood, nas rodas de fofoca e escândalos, no álbum nada quixotesco de sorrisos fingidos e poses medidas que aparecia nas revistas e nos jornais, como a roteirista Velda Van Der Zee, com quem Bandini tenta escrever o roteiro do faroeste Sin City: enquanto Velda passa o dia desfiando as fofocas e os bastidores de Hollywood, Bandini tenta escrever um roteiro honesto, uma peça íntegra que é transformada numa série de clichês baratos, o que faz com que Bandini retire seu nome do filme e a única coisa sua que sobre no roteiro são duas interjeições: eia! e ooôh!
O sonho de Marylin, mais do que o de tornar-se uma grande atriz, era encontrar seu lugar no mundo; em outra anotação sua não datada, ela diz:  Para a vida - é uma determinação e tanto não me sentir sufocada. Não sufocar, manter-se à tona, apesar das pressões. Uma boneca de pano afundaria logo no primeiro instante, ainda mais cheia de serragem. Manter-se à tona foi não somente uma demostração de determinação, mas uma vitória, talvez pequena, mas no fundo todas as vitórias são pequenas, grandes vitórias são fraudes.
 
A imagem que queria suplantar a Marylin real era a imagem da mulher sexy e boba, o perfeito estereótipo da mulher imaginada e desejada pelo ego machista, a boneca de pano, como a própria Marylin percebe em seu sonho: se ela ajudou a plasmar essa imagem, o foi contra a sua vontade, o esforço em construir essa imagem não é dela.
Porque a Marylin que emerge dos diários, das cartas, é uma mulher frágil, angustiada, com dúvidas e a alma partida por tantos abandonos, ainda é a criança rejeitada que vive timidamente no corpo da mulher, tão belo e tão delicado que nos fazia sonhar, porque sua beleza trazia em si uma vertigem, que era um soco no cotidiano, na mesquinharia, no cálculo.
A indústria cultural rouba sua imagem, tenta se apropriar de sua alma, e ela tenta, à sua maneira, resistir. O suicídio não é também uma forma de resistência?
A publicação dos Fragmentos não é um acontecimento literário, é um acontecimento humano; com eles a alma atormentada de Marylin emerge das sombras do anonimato da indústria cultural e ao emergir revela o rosto sempre mais humano, the lost girl por trás das vestes de mulher fatal, a criança sob o rosto de deusa.
E calam-se os superlativos, e brigam os rostos, brigam as imagens mesmo dentro de nós e nossa mão resiste à maciez da foto e escutamos somente a voz que diz: Estou sempre sozinha, não importa o que aconteça.