23 agosto 2008

Prometeu

O que dirão os oráculos
quando souberem
que meu fígado está em paz
mas arrancaram-me o coração

pena das penas, pago o preço
o risco
de abrir o peito no espaço
converter rochas
cobrir de flores
as escrófulas do mundo

o que dei em versos
era fogo nas palavras

não me queimei
mas abutres e toda classe de rapinas
atacam-me
troco por meu sangue a liberdade
e o amor.

16 agosto 2008

Grafites

Os ciganos chegaram de manhã
e crianças nuas desenhavam no céu
grafites e poemas de amor

acordamos como saltimbancos
dançamos na corda sobre o abismo
a esperança era
navalha sobre o coração
e crianças nuas desenhavam no céu
grafites e poemas de amor

palavras-flechas se espalham
não seguramos nada em nossas mãos
o amor, os gestos de rancor, a palha dos ninhos
a linha das espirais
nem
o olhar de gelo do tempo

olhamos a parede a espada
amor, pedra tão rara
e crianças nuas desenham pelo céu
grafites e lembranças do futuro.

Pássaros

Eis que a partir de agora somos pássaros
diante do presente e da eternidade

honramos nossas asas com gritos rasgando o espaço
renascemos sob a lua cheia

o céu é esfera de mercúrio
membrana que recobre outro útero

rompemos véus, ares, palavras
trazemos
primavera sob as asas

ah, tão distante
estamos
do que não nos fala

tão próximos
da poesia dos hipocampos
da dança das algas nas marés

eis que partir de agora sou pássaro
albatroz que sobrevoa o cosmos e retorna
para algum lugar do coração.

Sinais de um Planeta Distante

Veja bem
a cor dos olhos dos que amam
é aurora véspera da noite
conjunções de ventos, pétalas no céu
palavras se estilhaçam em vapores

amor é
sinais de uma fronteira ausente

e fomos por caminhos
que escolhemos na escuridão
cruzar o túnel em silêncio
derrubar muros, abrir espaços
amor é gesto de pluma contra o aço
na distância
não te comove meu silêncio
a fórceps extraio
da garganta um sol
febre horizontal
de galáxias antigas, de cartas perdidas, siderais
não lamento o sal sobre as feridas
bico de fênix
rasgo minha pele
para renascer.

13 agosto 2008

Em Busca do Absoluto

Não considero a busca pelo absoluto uma necessidade metafísica; se entendermos o absoluto como a superação das contradições - um território onde o humano se plenifica, o absoluto é na realidade uma necessidade existencial. Superar as contradições não significa acabar com as diferenças, mas conciliá-las num todo harmônico. Não se trata de buscar um além, mas de encontrar aqui, na terra, as condições de realizar esse estado de plenitude: superar as contradições sociais, as contradições psicológicas, as divisões que tornam o humano a criatura incompleta que é.

Sem mistificações ou mitomanias, buscar esse absoluto é procurar formas de epifanias com a natureza, é encarnar nossa humanidade em nosso sangue, nossas vísceras, nossa naturalidade máxima; é pisar a terra com os pés descalços e beber a água assim que sai da fonte.

Sempre achei que o amor fosse uma fonte do absoluto, mas sei que não podemos vivenciar o outro plenamente enquanto nós mesmos não atingimos essa plenitude, esse estar cheio de si, ou seja, cheio de possibilidades, latências, que realizamos com e pelo o outro. Uma sede de viver como não se vive mais, tornando a si mesmo um epicentro das vivências mais raras, tornando-se o locus mágico onde o amor, a revolta e a esperança se fundem em perpétua combustão. Uma vontade que não se dobra nem se entrega, que resiste nem que seja para ao fim, num ato de liberdade, determinar seu próprio fim: Catão em Útica...
É preciso fazer sexo com a terra, fecundar suas planícies, beber seus mares, aspirar de seu yoni* os sumos que tornam possível a existência; beber do leite que se espalha de seus seios siderais e tornam a via: branca.
Caminho de Santiago, caminho de estrelas, meu lingam é uma bandeira cravada entre estrelas, nave espacial entre os pelos púbicos da terra, entre a generosidade sem limites do útero e a doçura terrível da morte.
A transição dos átomos é cesura na matéria, mas nós somos seres plenamente transitórios, o absoluto é a fusão dos corpos num instante, o roçar do lingam nos lábios do cosmos, a soma cujo resultado é menor que os termos.
A todo instante somos mais e menos que ontem, a todo instante nos perdemos e nos achamos: o absoluto é o olho de fora que traça a rota do caminhar.
O absoluto é uma paisagem sempre por desenhar.
A lógica social pede que nós sejamos parte de algo e assim deve ser, quando entendemos a sociedade como um tecido composto por uma trama cujos fios somos todos nós; mas isso não impede que procuremos dar à vida possibilidades muito mais amplas, aumentar sua rede de significações e sentidos, de maneira que não precisemos reclamar do cotidiano, da rotina, já que tudo pode ser plenitude.

Eu sou irremediavelmente o outro.

Eu sou o olhar distante que só vê no espelho o rosto do amor.
Entre os corações pulsam sóis que transitam entre o azul e o vermelho.
Entre os corpos há música de câmara nos sexos.
Sou a melodia que nunca se completa; moto contínuo harmônico, sou a língua que lambe os olhos do mistério.
Amor.


* Yoni: nome indiano do órgão genital feminino, assim como Lingam é o nome indiano do órgão genital masculino.