Uma lírica ensaística, um espaço para o pensar individual, para a literatura e para as aspirações de transformação, pessoal e coletivas.
10 novembro 2007
O Labirinto do Fauno - Um exercício de crítica
Porque o Labirinto do Fauno, desde a primeira vez em que o assisti, me impressionou pela quantidade de elementos simbólicos presentes no filme, bem como pela interação entre esses elementos e aquilo que é o plano concreto em que a história se desenvolve. A história é simples: uma menina, órfã de pai, se muda com a mãe para uma casa de campo onde próximo há um labirinto antigo; sua mãe se casou com um capitão fascista - estamos na Espanha no ano de 1944 - e a pequena Ofélia vai enfrentar os dilemas do mundo adulto, o clima de guerra - seu padrasto, o Capitão Vidal , tenta destruir um foco de guerrilha - ao mesmo tempo em que descobre, no labirinto, um fauno que lhe diz que ela é uma princesa do mundo subterrâneo, e que ela terá de passar por três provas para ver se ela não perdeu sua essência. Em suma, essa é a história.
Mas os elementos simbólicos da história ampliam a tensão dramática, porque a cada evento do mundo material, daquilo que aparenta ser o real, há outro ou há uma correspondência no outro plano da existência.
A começar pela ideia do labirinto: o labirinto é um símbolo complexo e antigo. Associado sempre à figura do labirinto de Creta e da lenda do Minotauro, o símbolo do labirinto era associado também ao mundo dos mortos e à senhora do labirinto, Ariadne. A imagem do labirinto aparecia também nos túmulos, e há uma clássica imagem do labirinto da cidade africana de Hadrumentum, onde sobre um túmulo foi desenhada a figura de um labirinto onde no centro há um Minotauro agonizante, e em um dos lados, um navio, e a inscrição hic inclusus vitam perdit, quem aqui entra perde a vida, associando o meandro, o labirinto, com uma passagem para um outro mundo, e a morte como uma viagem.
Logo no início do filme, Ofélia acha uma pedra que é o olho de uma escultura, espécie de quebra-cabeça e mensagem do universo em que ela vai entrar. A descida ao centro labirinto é, assim uma condição para que Ofélia reencontre sua verdadeira natureza. Porque no centro do labirinto há um portal para o outro mundo, para o reino subterrâneo, de onde ela saiu há muito tempo e onde ela é a princesa, filha do rei do mundo subterrâneo.
Entre os dois mundo vai se desenvolvendo uma tensão dialéctica, cheia de opostos e contradições: aqui, Ofélia é uma órfã de pai, submetida à autoridade despótica do padrasto; no outro mundo ela é uma princesa ardentemente esperada pelos seus pais; cada prova pela qual ela passa significa um contato com a sujeira, com a morte, com a negação: quando ela passa na primeira prova, em que ela tem que recuperar uma chave que está no estômago de um sapo, ela entra em contacto com insetos, se suja de lama, barro, baba de sapo, enfim, com um lugar sujo, subterrâneo, de onde ela resgata uma chave dourada; na segunda prova, é a morte espelhada no terrível homem pálido, imagem mesma da materialidade absoluta, ao ponto em que seus olhos ficam na palma da mão - ou seja, aquele que é um dos sentidos mais sutis, espiritual, está deslocado, misturado ao sentido mais brutal, mais animal, que é o tato - e na terceira prova, o sacrifício, a negação de si mesma em nome do pequeno irmão. E para cada prova, para cada vitória, representa um avanço para ela no outro plano, no outro mundo.
São iniciações, mas a própria vida da Ofélia é uma iniciação, o tempo todo.
Então temos: descida ao labirinto para encontrar a si mesma; o fauno como conselheiro ou guru, a renúncia de si como condição sine qua non para avançar espiritualmente.
A imagem do fauno como conselheiro, como guia, é emblemática. Porque o fauno é a imagem da própria natureza, das forças instintivas da psique, que conduzem até um limite, até o limite em que a consciência passa ser parte ativa do processo espiritual e pode então escolher o caminho a tomar. É o que acontece com Ofélia: desde o primeiro momento, ela obedece aos conselhos e pedidos do fauno, mas sempre desconfiando, porque a natureza dele é estranha - porque as forças instintivas inconscientes são realmente estranhas para nós, para nossa estrutura consciente. Mas ela se deixa levar , porque realmente o fauno é a representação de uma força interior, nossa ligação com a terra, as forças psíquicas, que são nada mais nada menos que manifestação da própria natureza em nós.
Não somos somente sujeitos sociais, somos também sujeitos naturais, com uma psique que é nossa principal herança da natureza.
Mas a vida também exige escolhas conscientes: podemos nos deixar levar por essas forças, que se manifestam como intuições fulgurantes, às vezes amores fulminantes, iluminações, inspiração, ou seja, sempre como forças que nos são interiores mas que nos parecem exteriores porque não estão sob nosso controle, até o ponto em que essas manifestações vão exigir de nós a escolha consciente.
Por isso que a imagem do fauno é ambígua o tempo todo, não sabemos se ele quer realmente o bem de Ofélia ou se ele está a usá-la para outros propósitos, não porque ele em si seja mal, mas porque nosso ego o sente assim, nossa racionalidade desconfia dessas forças. Naquele que é um dos momentos mais bonitos do filme, quando Ofélia, só, a mãe já faleceu e o capitão Vidal a ameaça de morte - ela está trancada num quarto e chora sozinha, o fauno chega e ela corre para abraçá-lo, porque naquele momento ela se sente esgotar, sente perder suas forças, por conta de tanto sofrimento.
Isso é que torna o filme tão dramático e ao mesmo tempo tão belo, porque os dois planos da existência, aquele da interioridade e o outro do mundo social e histórico, se cruzam de maneira violenta, exigindo da pequena Ofélia seu corpo, sua alma, seu tudo: Ofélia é crucificada no tempo e renasce na pura interioridade: naquela cena que não posso evocar sem sentir uma grande emoção, quando, renunciando sua condição de princesa para preservar a vida do irmão, ela entrega o irmão ao padrasto e depois é assassinada por este, naquela última cena, quando o sangue escorre pelas suas mãos e ela está caída ao solo, ela acorda no outro mundo, e lá seu verdadeiro pai e sua verdadeira mãe estão a aguardá-la, porque ela passou na última prova, ela renunciou à própria vida pela vida do irmão, e há um trono à sua espera, onde ela completará uma trindade: pai, mãe e filha. É uma cena de uma beleza comovente.
A história é sempre social, não há como fazer uma história da interioridade; mas o sujeito histórico sente a história em toda a sua dramaticidade, como uma clivagem entre o dentro e o fora, como uma luta para conciliar o mundo interior com o exterior, pela busca de uma totalidade do sujeito que em si é uma impossibilidade, assim como é uma impossibilidade a perfeição, porque nossa vida será sempre incompleta e transitória, mas é a busca pela perfeição e pelo absoluto que nos leva a encontrar na vida sua tragicidade e seu sentido: a eterna incompletude, a eterna busca que torna a vida uma chave para os sentidos, que só se revelam em plenitude com a própria morte.
O filme é muito belo; não é um cinema de vanguarda, mas um filme completo esteticamente, de uma narrativa sóbria, de grande equilíbrio, cheio de um forte tônus emocional. Não sei até que ponto o diretor Guillermo Del Toro tem consciência de todos os elementos simbólicos do filme, porque há elementos da alquimia, há elementos de uma simbólica iniciática e há um diálogo entre esses diversos símbolos. Sei que ele vislumbrou cada detalhe desse labirinto, do roteiro à direção, da produção ao figurino, ele participou de tudo, se envolveu com tudo, e fez, assim, uma obra prima genial, um dos grandes filmes desse início de século XXI, como se dissesse que o cinema ainda vale à pena. Quem tem ou teve curiosidade, pode visitar o site www.panslabyrinth.com e acompanhar toda a elaboração do filme, além de poder ouvir a trilha sonora, que é belíssima.
Enfim, é um filme que vale à pena ver, como realização artística, como elemento discursivo, como algo mais que cinema, pelo prazer de encontrar uma obra que dialogue tanto com a vida.
Esse é somente um esboço de ensaio, porque voltarei a ele numa análise mais complexa da sua simbologia alquímica.
Fica somente a certeza de que a vida é mais do aquilo que nos acontece socialmente, que a interioridade, nosso espaço íntimo, nosso mundo interior, é a porta por onde podemos compreender e superar o mundo; e também a outra certeza, de que estamos frente a grande filme, do qual não conseguiremos esquecer.
02 novembro 2007
Príamo
os poetas lamentam por Heitor
os homens estão sós pelas florestas
saem a noite procurando um caminho
tudo é escuro, tudo é imenso
os homens estão sós
lançam dados, consultam o fogo
pensam numa justiça infindável
aproximam-se de abismos, tecem infinitos
os deuses derrubam muralhas
os homens estão sós em pequenas jaulas, nos automóveis
canibalizam a esperança
Sim, Príamo
os poetas lembram de ti e de Heitor
nossa solidão é cósmica
a rota que traçamos
de um a outro cosmos
é árdua de fogo e sal
algumas vezes fundamos cidades
outras contemplamos
a chama de nossas esperanças
os homens estão sós, Príamo
os deuses também.