Gledson, Vitória (filha), Hermeto Pascoal e Aline Morena, Ariadne(filha) após
o espetáculo BODAS DE LATÃO, no Espaço Cultural da Caixa -SP, em
05/05/2012
Bodas de Latão ou
O Coração do Mundo
Michelangelo queria libertar a forma
que estava nas pedras, Hermeto libertou a música das coisas. A
música de Hermeto e Aline Morena foge de qualquer rótulo. Não é
erudita ou popular, é música, pura música: a mais completa
substantivação do som em movimento. É difícil dizer o que é
Bodas de Latão:
não é um show ou espetáculo – categorias da cultura de massas
que nem de longe se aproximam do que eles fazem. A forma mais
aproximada seria o happening
– porque traduz uma experiência coletiva de arte – se a palavra
happening não
fosse tão datada; mas a expressão mais apropriada é experiência
espiritual – no sentido
mais amplo que essas duas palavras possam ter, livres de conotações
históricas ou religiosas: a maestria dos sons de Hermeto Pascoal e
Aline Morena se traduz para o público numa vivência de alto nível
– os sons estão livres pelo espaço, tocam-nos, nos levam para
outros lugares, outras dimensões. A sensibilidade e as proezas
musicais de Hermeto são notórias: é música pura em alto grau,
seja improvisando uma peça ao piano – peça de imensa delicadeza e
beleza -, tocando escaleta ou acordeom de oito baixos; mas a presença
de Aline Morena é marcante, seja fazendo do próprio corpo um
instrumento, tocando com mãos e pés, batucando na água ou
encarnando a rainha da noite
da Flauta Mágica de
Mozart: também multi-instrumentista, vai da viola caipira ao piano,
passando pela percussão na água ou no corpo, sem perder o senso
musical ou a beleza. Se com toda razão Hermeto foi apelidado de
bruxo – pois ele liberta a magia da música -, Aline parece uma
fada, uma criatura da floresta de voz doce e cativante, batubailando
como uma bacante tomada pelo espírito da música. Não há nada
teatral – o que eles fazem, ELES SÃO, como se fossem um yin e yang
musical a se completarem no palco.
No século XIX, o grande escritor e
crítico musical alemão E.T. Hoffmann cunhou o termo música
absoluta, para falar
daquilo que ele considerava uma música pura, desligada de
referenciais externos, e toda uma geração romântica discutiu
sobre, e ele mesmo e Wagner diziam que Beethoven fora um que
alcançara a música absoluta. Ora, em primeiro lugar, isso não
existe como concebido: sempre há um referencial – interno ou
externo - à música, e a música absoluta seria, para mim, não
aquela desligada de referenciais, como se estivesse fora do mundo,
mas aquela que é recuperada das coisas e que assim transforma a
vivência do mundo numa vivência absoluta, pois encontra a música
em todos os lugares – a música absoluta está em Hermeto Pascoal:
na sua total liberdade criadora parece livrar a música de qualquer
contingência- do papel pautado, das caixas de som, do feio, do
bonito. Como diria Guimarães Rosa, na
panela do pobre, tudo é tempero.
E tudo vira alimento espiritual nesse grande caldeirão que é o
Bodas de Latão
– um xote, letras escritas num idioma universal (que lembram o
experimento do poeta Russo Klebnikov com a linguagem Zaum,
transmental), gritos, brinquedos de crianças. A música mostra que a
beleza está em todos os lugares e abre nossos ouvidos para
percebê-la, não como uma experiência banal, mas como generosa
dádiva de uma natureza sem limites. Sim, o paraíso existe e está
aqui: a beleza do mundo está ao nosso redor.
Palavras são vastas. E belas. Mas há
vivências que são difíceis de serem traduzidas em palavras. A
música de Hermeto Pascoal e Aline Morena é assim – fada e bruxo,
amor e sonho – parece que estamos ouvindo o coração do mundo.