27 abril 2011

O Tratado da Pedra

VII

Os homens dessa época só reconhecem aquilo que se submete a seus caprichos, à ânsia devoradora de tudo submeter ao controle de uma ganância sem tamanho: querem uma natureza dócil, submissa à violência, complacente com a falta de sentidos e propósitos que tomou conta do humano; cometem o absurdo de imaginar uma natureza totalmente subjugada pela violência de explosivos e metais como sendo um ideal a ser alcançado - a natureza desfeita pela fúria da mecânica.
Não sabem que os dias de fúria que virão são o fruto da falta de amor. A ignorância eloquente dos senhores desconhece a simplicidade do amor: ele sustenta os elementos, organiza o tempo, estabelece as convenções dos astros e o desejo do futuro.
Por isso não reconhecem a Pedra ou mesmo a renegam, porque desconhecem o que não seja artifício, pirotecnia, vagido da aparência; nossa pedra é simples, às vezes somente gota de sal num oceano de miasmas. Mas o universo é perpétua espiral, enlace de espirais onde as coisas se alternam no tempo-espaço: a gota é um universo para planctons e outros, o Everest é mera pedra, há rios nos corpos, corpos nos rios, do arco-íris ao olho há puro diálogo entre pares.
Nossa pedra é simples, magna. Quando fecundada se multiplica em pedras, quando guardada se liquefaz em fogo, de fogo em ave, de ave em anjo. À noite, clama pelo sol da galáxia, de dia aspira o perfume das flores da lua; mistura o sutil ao denso, coagula o tempo para extrair dele os sinais de sua libertação; enquanto faz-se pedra engendra novas vestes para as núpcias da liberdade, tecidos de musgo, pele de serpente - na aurora brilha a pedra-sol.

VIII

Estive a ver o fastio como um sintoma dos dias presentes; as gentes se cansam de tanta letras, do deus morto e do nonsense que a vida tornou-se em sua infatigável rotina; querem sair para algum lugar, mas nada lhes apetece, porque nada faz sentido: seus olhos estão fechados para tudo que não seja dinheiro ou não se venda, pensam que podem comprar o sentido das coisas com drogas baratas, com a sordidez dos pequenos vermes. O sentido das coisas está nas próprias coisas; palavras são fulgurações do real, elas não o falsificam, são a luz que dele emana, refletida num mosaico de espelhos. As palavras dizem do sentido sua chave possível. O tempo passa e as chaves aumentam, o real cresce e com ele as possibilidades de sentido. Damos novos nomes às coisas novas, renomeamos as antigas tentando estender a mão para a verdade. O vulgo só quer imitar  o movimento das máquinas, nada vêem do muito que paira ao redor: nem os cabelos das nuvens nem as espirais nem a língua dos beija-flores.
Grande coisa é perder o medo de sonhar, deixar-se levar pelo jogo cósmico, aventurar-se pelas ruas, tomar de assalto nossa própria cidadela: forjamos nossas prisões e as religiões aumentam seus muros.
Somos parentes dos pássaros, amigos das serpentes, não precisamos de túmulos nem de igrejas, não precisamos de corpos trucidados nem do apego à dor, o que precisamos é de espaço - para abrir as asas, para correr, para testemunharmos que a curvatura do tempo-espaço é a mesma do útero, para gritarmos como as aves e baleias quando incontidas pela felicidade.
Tudo é vasto e infinito, dos dedos às galáxias há fios que reúnem o homem às estrelas. Um dia seremos chamados para um grande banquete, quando a pedra nos houver convertido em faunos-poetas, com pernas de bode e a sabedoria de quem já foi fera, sentados a mesma mesa onde os deuses apreciam o vapor das lembranças, onde as estrelas acendem suas chamas, onde a escuridão decide seu silêncio. Seremos cúmplices de grandes auroras.
pois a Pedra não nos deixa sós.

IX

As pessoas arrancavam pedras para barricadas, movidas apelo desejo incandescente de transformar a vida em aurora. Queriam a redenção de fora por um desejo de dentro - essa ânsia de que nada nos detenha, esse anseio por lugares sem muros ou fronteiras - é o pulsar da própria vida a instigar os seres.
Acontece que as pessoas são velhos morcegos - preferem a escuridão das cavernas à incerteza da liberdade - e procuram fora o que clama dentro. Às vezes o que clama é a natureza naturada e fabricamos corpos buscando a união pela continuidade; outras é a natureza naturante e aí o que queremos é a natureza dentro de nós - a potência dos rios, a grandeza dos ventos, a antiguidade das rochas, a paciência do fogo; tudo num grande carnaval. A ordem vem assim, com mulheres de pernas nuas carregando estandartes, a beleza dos ventos, a beleza dos nomes, a beleza dos seios.

X
O quid das coisas é um quid vital, mesmo o das palavras. As coisas não precisam de justificativas para existirem, o próprio existir é a razão; expansão e continuidade são a tônica da pedra. Para alguns, o mais longe é o caminho desejado, e quando ele o percorre encontra pistas e sinais de sua própria existência em lugares onde nunca passou - procurando o longínquo emula a natureza mais profunda, a profusão de aves. libélulas e baleias desconhecem o que quer que seja fronteira - e encontrando-a, vê a si mesmo. Para outros, só o próximo é reconhecível, o que vem com os ventos é estranho, temem a abundância e se guardam criando pequenos caminhos que possam repetir sem cessar.
Em ambos a razão vem de fora: a conexão que se cria entre novas formas de vida e novos seres, a razão está em descortinar horizontes ou em confinar a esperança para que não perca em tempos sombrios.
O quid das coisas é a Pedra, seja numa estrela de neutrôns ou num planeta d'água. A Pedra é escorregadia, cheia de pernas e caudas, ela é moto-perpétuo.

XI

Não acredito no progresso, não acredito nos tabeliães, não acredito no destino manifesto nem nas doutrinas de salvação; não acredito no inferno, não acredito na ausência da dor, não acredito em deuses ou idéias fixas; não acredito na métrica ou na retórica. Não acredito em qualquer silêncio maior que zero nem em qualquer sexo maior que dois; não acredito no homem sem a palavra, não acredito em ascensões mecânicas nem em músicas mecânicas nem em amores mecânicos nem em sexo  e afetos mecânicos, não acredito na humanidade das máquinas, não acredito no silêncio das máquinas. Não acredito numa terra sem chuvas, não acredito em nomes com muralhas, não acredito em trevas eternas.
Só acredito na Pedra, a pedra úmida, o orvalho encharcando o mineral, o bater das asas das libélulas cruzando a tarde da África.