Passo a publicar a partir de hoje um novo texto, na verdade uma obra em processo, O TRATADO DA PEDRA, uma alquimia do sonho e da revolução, uma abertura, como se o horizonte houvesse sido rasgado, na surpresa de uma noite...
I
Diria que a nossa pedra é a raiz sem gelo do âmbar. Como um sal vertical que se acumula pela purificação e ascensão da bondade.
II
Tem o mesmo sumo das flores estivais, a mesma secreção sobre a qual se pode erguer uma casa. Lenta, cresce qual o anel das árvores, a seiva mineral secreta bailando entre o canal de cobre e cristal.
Sem nome quais os rostos das crianças, bela feita a asa vermelha da fênix cruzando a manhã, essas pombas no altar de Vênus, os peitos da deusa na ansiedade do fruto em gestação.
Mil noites tivesse não acabaria de dizer seus nomes, mas é ela, a pedra, sobre ela os fundamentos do mundo, sobre ela as intenções, os desejos de porvir, sobre ela o orvalho que escorre das flores em compasso ternário, triângulo de respostas.
III
Alguma vez, nos muros de pedra pomes de uma cidade antiga, gravei palavras a essa similares, tão longe no tempo que o espaço entre as memórias assemelha-se a uma pausa numa sinfonia de milênios.
Outros rostos e a areia se ressentia de sal, de nossos passos não restavam vestígios; por quê o fiz ? Porque a escrita de fora emulava a de dentro: gravando nas pedras o segredo da pedra, fixava em meus ouvidos o martelo da verdade, que nascimento algum poderia acabar. Porque pedras-pomes são ossos do mar, dos vulcões, e neles circula o sangue da pedra, esperando o vento redentor.
IV
Chamarei as testemunhas, que bebem diariamente do fogo líquido que anima a pedra. Elas dirão que esse é o fogo selvagem que precisa ser purgado de sua bílis até ganhar o vibrato de uma trompa de caça. A da direita diz doces são os mistérios da carne e as esquerda lembra que a haste fincada no triângulo conecta a terra ao céu e que anjos se formam quando a haste avança sobre o fogo e o triângulo se inunda de orvalho: a pedra molhada, o broto do pão.
V
Preciso de palavras para a fornalha ? O testemunho da verdade acelera o rio: a água polida, os seixos-letras amplificam o eco; no moinho das coisas, a água se acelera em fogo, o dúplice testemunho reverbera o dito: nossa pedra é antiga e sempre nova - à porta de Ishtar, um casal arrulha na pedra cúbica.
VI
Cada nome é passagem, cada imagem, mosaico. O que se diz pedra é a soma de muitas subtrações. Bruta, beira o rês do chão; lavrada, escoa a voz em eco de dimensão em dimensão. Pulsar que a escritura captura. O grafite de sêmen nunca poderá ser apagado. Outros pedem nomes com registros e identidade, como se os nomes portassem sendas de ruas claras, chamam de obscura a fala que não se abala pela claridade. Bem sei que os caminhos onde as palavras escorrem rebeldes são vias onde a vida se procria, onde a pedra fecunda a pedra, onde o musgo aninha o pássaro, onde o orvalho desce da teia para os olhos das estátuas: nomes são passagens do cheio para o infinito, o caminho é selva de sargaços onde as palavras se emaranham: água ventre novelo.
Os que conhecem a pedra saberão seu rosto de plasma, sua alma de flecha, seus olhos de falcão e não será minha boca a portadora de fórmulas: estou entre os inocentes e a morte prefiro a deduzir a raiz cúbica de Pi de um Cm³ da pedra. Seu peso é de água e ar, seu peso é de água e ar, seu peso é de ar e fagulha - lança no labirinto.