15 outubro 2009

A memória, as memórias, o indivíduo

a Gilvan - In Memorian

A individualidade é formada não somente por sedimentos do si mesmo, mas também de sedimentos do outro - amigos, família, etc -; somos cada um desaguadouro de rios dos que nos antecederam no tempo.
Sempre refleti sobre o como nos formamos, o como nos constituímos como sujeitos, como indivíduos. Nietzsche - que tanto lutou para achar a si mesmo-, fazia uma distinção entre a primeira e a segunda natureza de cada um, sendo a primeira natureza aqueles traços que herdamos do ambiente familiar e a segunda natureza aquela que é decorrente das nossas decisões e escolhas como sujeitos autônomos.
Mas nada é tão simples assim: como falei no início, somos resultado da sedimentação de diferentes forças que desaguam em nós, somos quais árvores que temos raízes e folhas - as raízes são nossas heranças, o chão comum em que crescemos -, e as folhas e flores e frutos são a expressão da nossa autonomia, mas ambos estão misturados no mesmo sujeito; a individualidade é um produto híbrido e dinâmico, somos quais células cuja membrana permite a entrada daquilo que nos alimenta e nos faz crescer. Nossas naturezas estão misturadas e em processo ao longo do tempo.
Mas esse não é um texto de filosofia, é mais um recorte da memória e uma indagação sobre o que sou e sobre a ação daqueles que amei e amo sobre mim; é uma tentativa de seqüestrar o tempo com palavras para que ele trabalhe a nosso favor.
Sempre, desde as lembranças mais remotas que possuo, sempre tive uma ligação visceral com a música, ela sempre foi para mim um alimento - às vezes mais importante que a comida do dia a dia. Mas isso não foi algo inato, foi herança do ambiente em que cresci, mas principalmente herança de uma pessoa da qual estou muito longe - porque ela já se foi de entre nós e nós deixou com interrogações e esse vazio da ausência. Essa pessoa se chamava Gilvan. Ainda me lembro,quando, em 1978 - eu tinha seis anos - quando Milton Nascimento lançou o Clube da Esquina 2, e mal havia sido lançado e nós já o ouvíamos em casa, assim como ouvíamos Bob Dylan, Beethoven, Led Zepellin, Deep Purple e Elomar. Uma das marcas de Gilvan era seu bom gosto e ecletismo musical, o que o fazia ouvir o mais recente LP do Belchior e do Raíces de América ao mesmo tempo que poderia ouvir Pink Floyd ou Bach. A música, para ele, era também um alimento, principalmente porque ela refletia uma intensa ânsia pela vida, uma vontade de mudar - dentro do seu horizonte possível, o mundo ao seu redor. Éramos, de certo modo, os extremos: ele, o irmão mais velho,eu, o mais novo numa família de nove irmãos; não éramos muito próximos, o que é normal quando há diferenças tão grandes de idade, mas de qualquer forma ele foi uma influência determinante para a formação de uma natureza musical em mim, como se meu corpo fosse tecido não de fibras,músculos, ossos, etc, mas de notas musicais, de intervalos sonoros, de ritmos que, fora de mim,expressavam aquilo que eu carregava dentro.
Um sedimento feito do outro, da terra onde se nasceu, das primeiras palavras que se ouviu, dos primeiros gestos, assim como a água dos rios altera o caminho das margens ao longo do tempo e deposita no mar novos sedimentos da sua longa passagem pelo tempo, assim somos nós.
Cedo me afastei da família em que nasci, movido pela dinâmica interna e externa da vida e depois que vim para São Paulo nunca mais o vi, só nos falávamos por telefone até ele morrer.
Curioso é que um mês antes dele morrer sonhei que andávamos os dois juntos e ele encontrava enterrado uma estátua do deus Sobek – o deus crocodilo egípcio – e ela virava um crocodilo de verdade e tentava lhe engolir; e mais curioso ainda foi que, no dia da sua morte, aliás, mais ou menos na hora em que ele morria lá no Maranhão, sonhei, aqui em São Paulo, com minha mãe a chorar dizendo que era triste ver sua família se desfazer por que as pessoas estavam morrendo.
De qualquer maneira, ele deixou essa herança indelével e perene que todos nós que vivemos com ele assimilamos. Queria muito ter conversado com ele e saber dele o que ele acharia da obra de um Philip Glass ou que ele acharia do violão do Yamandu Costa. Quais seriam as impressões dele sobre o Madredeus ou o que ele diria sobre o rock de hoje (para mim um lixo). São conversas que não conseguimos ter, onde poderia discutir com eles esses que são músicos da minha segunda natureza, fruto das escolhas que fiz no longo caminho pela realização da autonomia e da liberdade.
Além dele, outros – do passado e do presente – deixaram suas marcas em mim – alguns, mesmo aqueles dos quais por uma ou outra razão me afastei, deixaram suas marcas ou lembranças, seja quando me ensinaram a ouvir o outro,quando me confessaram suas esperanças ou aquilo que lhes parecia ser o amor, ainda que depois o tempo tenha feito seus estragos sobre nós. É minha maneira de me construir enquanto indivíduo – amar e absorver o amor dos outros enquanto há tempo, mesmo que fiquem as feridas dos desencontros – a ponto de não conseguir pronunciar certos nomes sem sentir dor.
Mas a vida é dinâmica e nada pára. Escrevo esse texto numa pequena pausa da greve dos bancários da Caixa, na qual tenho lutado com insistência. Porque é da nossa natureza não se entregar à estupidez da história e faz parte de nós insistir no amor pelo mundo, pois só assim conseguimos nos salvar e salvar o horizonte das humanas possibilidades.
E a música continua em meus ouvidos. Como se fosse a voz dele.

Fazer a História


Éramos poucos, éramos mil
vaga de sonhadores contra o paredão da história
bandeiras hasteadas contra o tempo
sonhos tremulando
na pura solidão

Éramos poucos, éramos milhões
síntese de corpos em luta pelas ruas
armas em punho contra o medo
palavras, gestos arrancados do fundo do peito
a esperança pelas ruas
cortejo de revoluções

Éramos poucos, éramos todos
acuando a opressão pelos becos
matando a fera insana, dominando o medo
apostando todos os gritos
no vôo do futuro